Roboamor
Carlos
Vogt
A
solidão começava a incomodá-lo. Não em si, por
si mesma, de modo absoluto, mas por ter de compartilhá-la com estranhos.
E mais do que estranhos, estrangeiros no país de sua geografia cotidiana,
nos acidentes de suas divagações, no roteiro de sua permanência.
Na
casa ampla e abandonada da intenção de qualquer outro abandono
senão o seu, livros espalhados, empilhados, dispostos e cruzados em
estantes como em um universo.
Era
de propósito, como ele costumava cortar qualquer pergunta admirada
do estranho-estrangeiro que ocasionalmente freqüentava e invadia sua
solidão. E era mesmo, como ele acreditava, desse modo, reproduzir na
escala da casa uma espécie de aleph da biblioteca ilimitada e periódica
que a leitura do conto de Borges lhe inspirara.
Outra
presença literária e, nesse caso, também cinematográfica,
no imaginário de seu quarto, bem na parede acima da cabeceira da cama
era a reprodução em pôster do quadro do aventureiro Giacomo
Girolano Casanova com sua amante-autômato sobressaindo num pedestal
sobre um fundo do mar de Veneza congelado. A boneca dançarina mecânica
representada por Adele Angela Lojodice no filme de Fellini que ele vira na
Itália em 1977, no mesmo ano de seu lançamento, sendo a conquista
final deste Casanova protagonizado por Donald Sutherland, conquistara-o também
de modo definitivo e silencioso.
Reprodução |
|
Casanova
dança com boneca mecânica, em filme de Fellini |
Várias
vezes sonhara com a materialização da boneca e com o aconchego
frio de sua presença sem perguntas, sem respostas.
Evitava
o quanto podia as visitas de quem quer fosse, no limite das necessidades e
das fraquezas insuperáveis.
Tentara
algumas vezes compensar o que ele próprio chamava, com ironia e uma
certa dose de desprezo, os dilemas da carne, recorrendo, na Internet, a sítios
de comércio eletrônico de bonecas infláveis. Adquirira
vários modelos por preços que variavam, da mais barata, de 20
dólares, à mais cara, perto de 200 dólares.
Acompanhava
com avidez curiosamente gulosa as novidades, os últimos lançamentos,
os atributos, os movimentos, os prazeres anunciados. Todas as iniciativas
resultavam, contudo, frustrantes em relação à expectativa
de que pudesse ter, senão a dançarina de Fellini, ao menos um
simulacro de sua discreta e ausente compreensão.
Queria
a boneca mecânica. Se Casanova a tivera no século XVIII, com
mais razão ele poderia tê-la no século XXI com a revolução
tecnológica, os avanços da informática, da mecatrônica,
da robótica. Por que não uma lovedoll, uma boneca do
amor, uma robolove, uma roboamor? Que soubesse e pudesse não
só dançar, mas estar junto, fazer-lhe companhia, acompanhá-lo
à mesa, ouvir suas lembranças, lembrar com ele detalhes esquecidos
de sua história de vida, ajudá-lo a elegê-los, refiná-los,
purificá-los do excesso de peso da realidade, ser amada, amar.
Vesti-la,
cortejá-la, despi-la à noite devagar e apaixonado, deitar-se
com ela sob as cobertas no acalanto efusivo das investidas sem contestação!
Tê-la
e não ser incomodado. Estar com ela e não se sentir acompanhado.
Seria isso possível? De que modo conseguí-lo? Em que loja comprá-la?
Em que oferta eletrônica, em que comércio virtual torná-la
realidade?
Inútil
querer encontrá-la pré-fabricada e pronta para o amor. As que
adquirira, todas, mesmo as mais caras com dispositivos eletrônicos de
mobilidade e aquecimento nas partes sexuais, embora silenciosas, como queria,
eram também idiotamente quietas na sua indiferença.
Era
preciso construí-la, fazê-la original, singular, exclusiva. Mas
como? Percorria as prateleiras da biblioteca distribuídas de modo caótico
pela casa e lia. Lia com paciência feroz e obstinada. Os clássicos,
os modernos, os cultos, os vulgares, os refinados e os banais. Lia em busca
da idéia, do conceito, da hipótese fecundante, do método,
do manual de procedimentos.
Ás
vezes afloravam-lhe à pele pruridos, também éticos. Reforçados,
quem sabe, pelas infinitas discussões e debates sobre o uso de embriões
humanos para as pesquisas com células-tronco e pela certeza e o temor
correspondente de que, mais dia, menos dia, tal como ocorreu com a ovelha
Dolly, na Escócia, com a bezerra Victória, no Brasil e outros
animais em outras partes do mundo, o homem clona o homem e aí adeus
natureza humana!
Mas
isso vinha e ia como coceira, até gostosa de coçar.
Do
Frankenstein, de Mary Shelley, suas versões para o cinema, aos
autômatos vegetais, eletrônicos, escatológicos ou quiméricos
biodegradáveis, lia, relia, via, revia, devorava tudo.
Lia
autores e críticos, conhecia as fases da evolução da
ficção científica estabelecidas por mestres como Asimov
e estudiosos como Campbell para o gênero e não raras vezes acreditava
estar perto de descobrir a palavra mágica, a fórmula, a equação,
o truque que fosse, que o aproximaria, enfim, do Graal de sua existência.
Mas
o tempo passava e nada de encontrar o artifício de seus sonhos, o estranho
e familiar objeto do desejo, ele próprio também passando com
o passar do tempo. De tudo que lia e via, o mais recorrente era que se dedicava
a assistir, por vezes seguidas, ao filme de Fellini e a fazer avançar
e retroceder, em vídeo ou em DVD, as cenas da boneca mecânica
e do amor que a Casanova por ela lhe sobra.
Admira
a atriz por seu desempenho automatizado e pela perfeição da
maquiagem que faz dela uma imitação de estátuas com movimentos
descontínuos como num filme cuja seqüência de quadros fosse
projetada num ritmo de diapositivos em slides.
Tinha
certeza de que era ela a verdadeira musa inspiradora de todos esses artistas
anônimos espalhados pelos passeios das grandes cidades do mundo, imitadores
de estátuas que, assim imitadas, imitam o homem que as imita. A vida
imita a arte, que imita a vida, que imita...
Ocorreu-lhe
que a solução poderia estar onde a via há tanto tempo
e não a enxergava.
E
se suas convidadas ocasionais, ou mesmo uma mais duradoura, quem sabe permanente,
pudessem ser preparadas para, estando juntos, estarem como autômatos.
Isto é, estar sem estar ou sem parecer estar, ou só parecer,
sem estar. Ser simulacro, simulação do ser.
Precisaria
ter aprendido com o chefe da equipe de maquiagem, Rino Carboni, do filme de
Fellini, a arte da transformação de Adele Angela Lojodice no
amado robô de Casanova.
Isso
não sendo mais possível, dedicou-se, com zelo artístico,
disciplina literária e método experimental, a estudar e a treinar
a arte da transformação de si próprio para poder depois
executar a transformação do outro.
Antes
de começar a exercer a robotização de suas ou de sua
eleita, precisava preparar-se e estar tecnicamente apto para o pleno exercício
da maquiagem que o levaria, chagada a hora, à metódica construção
de seu robô amoroso, mesmo que sob o disfarce mascarado da ilusão
passageira.
E
em si mesmo treinava. E quanto mais adestrado estava, mais exigente ficava,
olhando por horas e horas, diante do grande espelho da sala, que antes os
livros ocultavam, a imagem mutante que o ofício de transformar-se impunha
à memória de seu dia-a-dia.
Corrigia-se.
Um detalhe aqui, outro ali, um aperfeiçoamento de linhas de um lado,
um endurecimento de traços do outro e, desse modo, da mesma forma que
o autômato nascia, ela também morria e se modificava.
Com
os exercícios que lhe tomavam os dias, depois as noites, depois ainda
os dias e as noites, foi perdendo a concentração do objetivo
e abandonando, por desvio e esquecimento, o objeto de desejo que o trouxera
à prática exaustiva da transformação do outro
em si mesmo.
De
vez em quando voltava a assistir ao filme de Fellini. Deixava-o agora, correr,
contudo, ao longo de sua comprida duração sem o vai-e-vem obsessivo
das seqüências eleitas da boneca bailarina e do conquistador sem
triunfo.
Tinha
também nessas ocasiões, um sentimento novo, uma desconfiança
talvez de que sempre estivera enganado sobre a verdadeira identidade das personagens
que no filme, por uma trapaça do gênio malicioso do cineasta,
dissimulava no herói apaixonado pelo autômato, a melancolia automática
da razão e na boneca mecânica dançarina, o movimento quebrado
do amor constante, sem razão.