À imagem
do homem: robôs, autômatos e pós-humanos no
imaginário tecnológico
Erick
Felinto de Oliveira
Com a
difusão das tecnologias digitais de informação e
comunicação, estamos assistindo ao retorno de um
importante mito característico da experiência
tecnológica. É fato que os robôs e autômatos
passeiam, desde há muito tempo, pelas vastas paragens do nosso
imaginário cultural. Mesmo antes da revolução
industrial ou do pleno desenvolvimento do conceito de tecnologia, na
longínqua antiguidade greco-romana, já proliferavam as
narrativas sobre a criação de seres artificiais, como na
lenda de Pigmalião e Galateia, na qual o escultor apaixona-se
por sua obra, dotada de vida própria graças aos
artifícios mágicos da deusa Afrodite. Contudo, esse
antiqüíssimo tema cultural adquire hoje uma
importância inaudita.
O surgimento
dessas tecnologias digitais, com sua incrível capacidade de
miniaturização e computação, viabilizou a
retomada do arcaico sonho dos seres artificiais. Agora, um sonho
passível de realização, já que, para
muitos, o cérebro não passa de um complexo computador
biológico. Dados os devidos recursos técnicos e
competência, não existiria razão para que
não fosse possível duplicar a complexidade desse sistema
em outro tipo de hardware, como o silício dos computadores. A
ficção científica, bem sabemos, é
pródiga nas fantasias a respeito de ciborgues e máquinas
inteligentes, sempre ameaçando a supremacia do homem como senhor
do planeta.
Não deixa
de ser curioso, entretanto, o fato de que essas promessas da
ficção científica – e mesmo de certas
vertentes da tecnociência contemporânea – reelaborem
continuamente os mesmos temas dos ancestrais mitos sobre as criaturas
artificiais. Em certo sentido, poderíamos dizer que o primeiro
desses mitos encontra-se na própria narrativa sobre a
criação do homem no Gênesis. Afinal, Deus molda o
homem a partir do barro da terra (e por essa razão, o nome
“Adão”, oriundo de “terra”,
Adamá) e depois insufla-lhe o sopro da vida.
Diretamente
decalcada dessa narrativa originária, a mitologia do Golem, uma
criatura artificial da tradição mística judaica,
já antecipa o imaginário que, em fins do século
XIX, tomaria forma perfeita no célebre relato de Frankenstein
por Mary Shelley. Segundo a versão mais popular da
história, a criação do Golem é
atribuída a um personagem histórico real, o rabino Yehuda
Loew, o grande Maharal de Praga (termo que consiste na abreviatura
de Moreinu ha-Rav Lev, ou seja, “nosso mestre, o rabi
Loew”). Essa figura fundamental do mundo judaico no século
XVI foi responsável pela produção de importantes
obras sobre o misticismo hebraico e sua teologia da
revelação. Como explica André Neher em seu belo
livro Faust et le Maharal de Prague, o pensamento todo do Rabi
Loew se situa no intervalo do conflito entre duas teses
contraditórias:
Esse conflito reflete, em certa medida, o dualismo com que
ainda hoje enxergamos a figura dos robôs, autômatos e
ciborgues. São expressões do poder criativo do homem, que
busca imitar a divindade por meio de suas conquistas científicas
e tecnológicas, mas ao mesmo tempo encarnam os temores com que
costumeiramente encaramos nossos duplos artificiais. Na lenda do Golem,
o Maharal de Praga dá vida a uma criatura artifical
confeccionada a partir do barro. Em uma das versões da
história, rabi Loew escreve na testa da criatura a palavra emet
(verdade), vivificando-a através das artes mágicas da
Cabala. Quando este foge a seu controle, provocando
destruição irracional, o rabi apaga a primeira letra da
palavra, ficando assim o termo met (morte).
Essa lenda emblemática mostra com clareza nossa
relação ambígua com os autômatos. Em seu
célebre ensaio sobre a sensação da estranheza (das
Unheimliche, 1919), Freud citava a tese de Jentsch segundo a qual
os autômatos poderiam ser arrolados como seres causadores da
sensação de estranheza, já que nos colocam diante
de angústia não saber se um ser animado está de
fato vivo ou morto. E efetivamente, o conto de Hoffman brilhantemente
analisado por Freud no ensaio, “O homem de areia”, envolvia
a participação de um “robô” feminino,
Olympia, pela qual o protagonista da história se apaixona. Mesmo
descartando a idéia de que esse seja o elemento central da
história, como faz Freud, é impossível não
perceber como essas criaturas nos produzem sentimentos de
embaraço, medo, fascínio e estranheza. Os séculos
XVIII e XIX foram inteiramente seduzidos pela figura dos
autômatos, que faziam enorme sucesso nas feiras de
atrações e nos relatos literários – exemplos
nítidos disso são narrativas como O jogador de
xadrez de Maelzel, de Poe, e a Eva futura, de Villiers
de l’Isle-Adam.
Mas imitar o criador é empresa arriscada, e nosso
imaginário tecnológico transborda de fantasias nas quais
o autômato, a exemplo do mito do Golem, escapa ao controle
humano, convertendo-se de serviçal útil em arma de
destruição. No novo horizonte cultural das tecnologias
digitais, boa parte dessa negatividade parece ter se dissipado. Nesse
sentido, é significativo o sucesso de um texto como o Manifesto Ciborgue, de Donna Haraway. Haraway,
historiadora da ciência, defende a idéia de que a figura
do ciborgue constitui-se num mito político vital para nosso
tempo, já que abole as categorias polares com as quais sempre
tentamos organizar o mundo e os seres. O ciborgue não é
exatamente homem ou mulher, orgânico ou inorgânico, natural
ou artificial. Nesse sentido, ele emblematiza, nos tempos de hoje, a
possibilidade de novas subjetividades, já não mais
enquadradas de acordo com nossas tradicionais perspectivas dualistas.
Como afirma Haraway, o ciborgue pode constituir “uma
ficção que mapeia nossa realidade social e
corporal”, além de representar “um recurso
imaginativo que pode sugerir alguns frutíferos
acoplamentos” (2000: 41).
O acoplamento entre homem e máquina, que se encontra
na essência da definição do ciborgue, surge em
nossa imaginação como um destino radical da humanidade
futura. Novas próteses, extensões e implantes
serão desenvolvidas no sentido de tornar cada vez mais nebulosos
os limites que separam o natural do artificial. Em algumas
extrapolações mais radicais, o futuro poderá mesmo
prescindir inteiramente da raça humana, já que as
máquinas e robôs terminariam por suceder o homo sapiens na
escala evolutiva – uma idéia elaborada em AI,
inteligência artificial, filme recente de Steven Spielberg.
O ser humano cederia, então, lugar a suas
criações, capazes de destronar o criador e tomar o rumo
de seu próprio destino.
Não deixa de ser intrigante a relevância que
temas como os dos robôs e ciborgues alcançaram no
imaginário contemporâneo. É fato que eles ainda
estão muito longe de constituir uma realidade cotidiana, sendo
corriqueiros apenas no universo da ficção
científica. Entretanto, no novo domínio cultural que
convencionamos chamar “cibercultura”, eles aparecem como
símbolo fundamental. E nos revelam a existência de uma
certa dimensão “espiritual” dessa cultura. Em outras
palavras, os robôs, ciborgues e autômatos apontam para um
desejo de transcendência humana em relação a suas
limitações materiais. Como sugiro em meu livro A
religião das máquinas (2005), a cibercultura e suas
narrativas tecnológicas estão recheadas de mitologias a
respeito da tecnologia como instrumento de aperfeiçoamento
espiritual do homem. Em certo sentido, é como se a atual cultura
tecnológica viesse realizar hoje os antigos sonhos religiosos de
aproximar o homem da divindade.
Os autômatos e robôs representariam, nesse
cenário cultural, o impulso divino da criação.
Assim como o homem foi feito à imagem e semelhança de
Deus, de acordo com o relato bíblico, engendramos criaturas
artificiais com a finalidade de deixar nossa marca no mundo.
Atuaríamos, então, como pequenos demiurgos, provando que
poderemos inclusive, talvez, superar nosso “pai
simbólico” na odisséia da criação.
Por outro lado, as fantasias de desenvolver próteses ou mesmo
corpos robóticos inteiros para nossas consciências
responde ao impulso de prolongar nossa angustiante finitude. Não
seria extraordinário, perguntam alguns defensores desse projeto,
como o cientista Hans Moravec, se pudéssemos transferir nossa
inteligência para corpos robóticos e viver assim
virtualmente para sempre?
Em última instância, como sugere Philippe Breton
em seu livro À l’image de l’homme (1995:
6), as criaturas artificiais nos permitem discernir entre as
múltiplas representações do humano que pontuam e
estruturam as culturas ocidentais. Ou seja, eles nos diriam menos sobre
o futuro do que sobre o passado e o presente. Caberia, portanto,
perguntar o que as ficções sobre os ciborgues e
robôs nos ensinam a respeito de nós mesmos. Nesse sentido,
a noção de “pós-humano”, um dos
referenciais-chaves da nova cultura tecnológica, pode nos
prestar valiosas indicações sobre os modos como iremos
nos “enxegar” nos anos por vir. Pós-humano seria
todo ser humano tecnologicamente aperfeiçoado. A
noção envolve não apenas uma relação
vital de seus proponentes com as tecnologias contemporâneas (da
informática à biotecnologia), como também toda uma
filosofia de vida fundada em determinada espiritualidade
“cibernética”.
Se algum dia conseguirmos chegar efetivamente ao
estágio dessa pós-humanidade, então não
fará tanto sentido distinguir entre nós e nossas
criaturas artificiais. Seremos todos ciborgues, autômatos que
reunirão o melhor dos mundos humano e maquínico. Seremos
os criadores de nós mesmos, senhores de nosso destino, na posse
de um futuro luminoso, no qual a comunicação será
total, a democracia e a igualdade imperarão em todo o mundo e os
antigos medos que sempre impediram nosso desenvolvimento integral
serão finalmente superados. Mas o que essas utopias
pós-humanistas nos ensinam hoje é que estamos muito longe
de resolver o enorme mistério que estava implicado já
desde a narrativa do Gênesis. Falo no mistério da
criação, do surgimento da inteligência (ou do
espírito, se o leitor preferir esse termo) a partir da
matéria. E desse modo, seremos obrigados a continuamente
repensar nossas relações com o mundo, com nosso corpo e
com o enigma da consciência. Como afirma Andy Clark em Natural-born
cyborgs, nós existimos apenas, “como coisas pensantes
que somos, graças a uma complexa dança de
cérebros, corpos e muletas culturais e
tecnológicas” (2003: 11). Buscar a compreensão
dessas intricadas relações será uma tarefa
fundamental no futuro tecnológico que se abre a nós.
Nesse contexto, os seculares mitos sobre as criaturas artificiais
poderão nos ajudar a encontrar respostas interessantes ou, no
cenário mais negativo, enredar-nos em fantasiosas teias de mitos
e utopias desenfreadas.
Erick Felinto de Oliveira é professor do Centro de
Educação e Humanidades, Departamento de Teoria da
Comunicação, da Universidade do Estado do Rio de Janeiro.
Bibliografia:
Breton, Philippe. À l’Image de l’homme:
du golem aux créatures virtuelles. Paris: Seuil, 1995.
Clark, Adny. Natural-born cyborgs: minds,
technologies and the future of human intelligence. New York: Oxford
University Press, 2003.
Felinto, Erick A Religião das máquinas.
Porto Alegre: Sulina, 2005.
Freud, Sigmund. Obras psicológicas completas -
edição standard (Vol. XVII – 1917-1919). Rio
de Janeiro: Imago, 1976.
Haraway, Donna. “Manifesto Ciborgue”, in Tadeu da
Silva, Tomaz (org.). Antropologia do
ciborgue. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
Neher, André. Faust et le Maharal de Prague. Paris:
PUF, 1987.