Sociedade civil: quem
é esse ator?
O Brasil vive um processo
crescente de abertura à participação da sociedade
civil nas discussões e tomadas de decisão relacionadas
com políticas públicas desde o fim da ditadura militar. A
Constituição de 1988, a experiência do
Orçamento Participativo de Porto Alegre, que hoje já se
espalha por mais de cem cidades brasileiras, a criação
dos Conselhos Gestores, dos Comitês das Bacias
Hidrográficas e, mais recentemente, no âmbito do combate
à
biopirataria, do Conselho de Gestão do Patrimônio
Genético (CGEN), são marcos importantes desse
avanço do processo de democratização.
Entretanto, pesquisadores
alertam para a redefinição que a noção de
sociedade civil tem sofrido devido aos ajustes que as políticas
neoliberais imprimiram no ritmo da democratização, e
apontam a emergência de duas questões: a freqüente
categorização como sociedade civil de representantes do
governo, de partidos políticos e das classes produtoras,
fortalecendo o trânsito destes junto ao Estado; e o
predomínio maciço das ONGs nos espaços destinados
à participação da sociedade civil que, cada vez
mais, têm abandonado os vínculos com movimentos sociais e
aumentado as “parcerias” com o Estado e as agências
internacionais. Para os pesquisadores, é preciso analisar com
mais cuidado as conseqüências das
transformações na noção de sociedade civil
sobre a capacidade de mobilização e
organização políticas dos setores populares, e
perceber as diferenças e a diversidade interna que existem,
tanto
na sociedade civil quanto no Estado.
Crise de
representatividade
A representatividade
é uma questão central quando se fala em sociedade civil.
Afinal, quem é representado por esse conceito? Em cada contexto
surgem problemas diferentes. Nos Comitês das Bacias
Hidrográficas, por exemplo, a antropóloga Maria
Lúcia de Macedo Cardoso encontrou uma
interpretação bastante variada do que é sociedade
civil que pode ser vista em seu artigo
“Desafios e potencialidades dos comitês de bacias
hidrográficas”.
As maiores
críticas feitas estão no fato dos membros dos conselhos
municipais e câmara de vereadores, embora pertencentes ao governo
municipal, também serem considerados como sociedade civil; e, na
mesma direção, a possibilidade das
associações e sindicatos, que representam muitas vezes os
interesses dos grandes usuários das bacias, também
entrarem nessa categoria. Isso sem contar casos, como o do governo do
Bahia, que insiste em não criar os comitês, mas apenas
associações de usuários, nos quais não
estão presentes organizações da sociedade civil.
Esses casos têm
sido relatados por representantes da sociedade civil nos mais diversos
espaços públicos criados no país, e demonstram
como as instâncias tradicionalmente privilegiadas de
representação e aglutinação de interesses
têm conseguido manter o privilégio, e colocar sob seu
controle a representação da sociedade civil.
No caso das ONGs o
problema é mais complexo e tem provocado um amplo debate no meio
acadêmico. Infiltradas em todos os setores da sociedade, assumem
a posição de representantes da sociedade civil na maioria
das instâncias de discussão e decisão, e ganham
cada vez mais legitimidade junto ao Estado. Para Marcelo
Camurça, autor do livro Estado e ONGs: uma parceria
possível?, as ONGs não são
instituições representativas da sociedade civil, porque
não se apóiam em processos tradicionais de
representatividade como os partidos políticos. “De um lado,
fazem o movimento de reivindicação, de denúncias,
lutam pela garantia de direitos, pela melhoria das
condições de vida da população;
porém, tudo isto sem que esta população esteja
envolvida".
Levantam as
questões do povo, porém, sem consulta popular, sem
participação democrática da
população”, argumenta.
Para Ilse Scherer-Warren,
do Núcleo de Pesquisa em Movimentos Sociais da Universidade
Federal de Santa Catarina, as modalidades de
representação dos partidos políticos e das ONGs
são diferentes e ambas são válidas. Para ela, a
representatividade das ONGs está relacionada às formas de
atuação de cada uma. As ONGs denominadas de ativistas
cidadãs, ou advocacy, e as produtoras de conhecimento,
ou thinktanks, assumiriam mais a representação
da sociedade civil do que as ONGs prestadoras de serviços e
assistencialistas. “A representatividade dessas
organizações é fruto da participação
ativa nas formas mais expressivas da sociedade civil organizada e de
criação do pensamento crítico tendendo, por isso,
a ser legitimada pelos pares”, diz. Nesse sentido, essas entidades
seriam porta-vozes legítimos dos coletivos organizados da
sociedade civil dos quais participam.
Já Evelina
Dagnino, do Departamento de Ciência Política da
Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), conclui em seu artigo
“Sociedade
civil, participação e cidadania: de que estamos
falando?” que as ONGs detêm uma representatividade peculiar
relacionada aos conhecimentos específicos que detêm sobre
determinados grupos – povos indígenas, jovens, negros, mulheres
– ou temas – violência e problemas ambientais. “Ao darem voz a
esses interesses difusos da sociedade se constituiria uma forma
particular de representatividade, que advém muito mais de uma
coincidência de interesses, do que de uma
articulação explícita, ou orgânica, entre as
ONGs e os portadores desses interesses”, analisa. Para a cientista
política, as ONGs representam na maioria das vezes os interesses
do seu grupo diretivo.
Na mesma
direção que Dagnino, o estudo
"Rio abaixe essa arma: Um estudo sobre
a forma de
fazer política da sociedade civil", da antropóloga
Ana
Paula Moraes da Silva, mostra que a representatividade da ONG Viva Rio
se reduz à grande visibilidade de seus integrantes na sociedade
carioca. O seu Conselho Coordenador é formado por industriais,
artistas, advogados e proprietários dos três maiores
jornais da cidade,
ou seja, por “pessoas públicas e influentes economicamente, que
estão constantemente na mídia, mas que não
representam a diversidade da sociedade carioca”, relata Silva.
A etnografia realizada
pela antropóloga mostra que o resultado dessa
formação é uma entidade que não tem como
objetivo central a ação política de
transformação das relações sociais, mas a
organização da sociedade civil no sentido de suprir as
carências oriundas dessas diferenças, respondendo aos
problemas mais imediatos que afetam a vida de seus integrantes. Para
Silva, o Viva Rio é um exemplo de organização
não-governamental que se inseriu no crescente processo de
profissionalização
das ONGs, ao se transformar de um
movimento de pessoas preocupadas com a violência social para uma
“empresa social gestora de políticas públicas”.
Agências
internacionais promovem "ONGuização" da sociedade civil
A
transformação de movimentos sociais em ONGs é um
fenômeno crescente desde a década de 1980. As
agências internacionais são apontadas como as maiores
responsáveis por esse deslocamento. Aline Bruno Soares,
professora de Relações Internacionais do Centro
Universitário UMA, explica que, naquela época, os
movimentos sociais evitavam as parcerias com o Estado ou com empresas
privadas e encontraram na cooperação internacional uma
possibilidade de obtenção de recursos. As
responsabilidades que assumiram para atender as exigências dos
financiadores estrangeiros, a influência das agendas
internacionais na construção dos problemas brasileiros e
os novos contornos, mais profissionais e empresariais, que as ONGs
adquiriram ao ganhar estrutura, competência técnica e
conhecimento, aumentaram a distância entre muitas dessas
entidades e os movimentos que as originaram.
Em algumas áreas,
como dos direitos de crianças e adolescentes, defesa do meio
ambiente e da epidemia de aids, a atuação das ONGs se
tornou mais significativa e visível do que dos movimentos
sociais. Dotadas de conhecimento e aparato técnico, as ONGs se
tornaram nos “parceiros ideais do Estado e das agências
internacionais, que buscam confiabilidade e temem a
politização da interlocução com os
movimentos sociais”, analisa Dagnino. O confronto e antagonismo que
marcaram a relação entre as ONGs e o Estado nas
décadas de 1960, 1970 e 1980, deram lugar a uma
atuação conjunta na década de 90. O resultado
disso é uma crescente identificação entre
sociedade civil e ONGs, denominada alguns pesquisadores de
"ONGuização" da sociedade civil.
O artigo "O
papel das ONGs na construção de políticas de
saúde: a aids, a saúde da mulher e a saúde
mental", de Sílvia Ramos, pesquisadora do Centro de Estudos de
Segurança e Cidadania da Universidade Cândido Mendes, abre
brechas para pensar que a emergência das ONGs não é
um fenômeno negativo em si mesmo. Ramos analisa positivamente o
boom das ONGs que atuavam com
a epidemia da aids, que em 1998 já
somavam 587 entidades, muitas delas originadas de movimentos sociais.
Essas organizações desempenharam um papel fundamental no
desenvolvimento de programas brasileiros de prevenção
à doença, livres de preconceitos contra certos grupos
populacionais e, muitas vezes, contrários às
recomendações das agências internacionais. A
política de distribuição gratuita de medicamentos
anti-retrovirais para a população, por exemplo,
contrariava as determinações do Banco Mundial (BM) e da
Organização Mundial da Saúde (OMS), para os quais
os países pobres deveriam investir recursos na
prevenção de novos casos e não no tratamento dos
doentes.
Mais recentemente, o
governo brasileiro rompeu a parceria com United States Agency for
International Development (USAID) porque a agência se
recusou a financiar as ONGs que atuassem com prostituição
no Brasil. Mesmo com uma avaliação positiva, Ramos
ressalta que essas organizações não escaparam
às críticas feitas às ONGs da década atual:
“de que ‘cooperação’ e ‘parceria’ tornaram-se
‘cooptação’, ‘prestação de serviços’
e ‘substituição do Estado’”.
Projeto
neoliberal distorce sentido de sociedade civil
“A
redefinição da noção de sociedade civil e
do que ela designa talvez tenha constituído o deslocamento mais
visível produzido no âmbito da hegemonia do projeto
neoliberal”, diz Dagnino. Para a pesquisadora, essa
redefinição é resultado de uma “confluência
perversa” entre dois projetos antagônicos. O projeto
democratizante, que resulta em uma abertura cada vez maior à
participação da sociedade civil, e o projeto neoliberal,
que progressivamente isenta o Estado de seu papel de garantidor de
direitos, e transfere para a sociedade civil boa parcela de suas
responsabilidades. “A perversidade” – analisa Dagnino – “se situa
exatamente no fato de que ambos requerem uma sociedade civil ativa e
participativa, criando uma identidade aparente entre os dois projetos”.
A armadilha está
colocada: além da expressão sociedade civil, as
noções de democracia, participação e
cidadania também são utilizadas pelos dois projetos, mas
com sentidos os mais diversos. “Isso gera uma opacidade
construída por referências comuns e o risco – real –
é o de que a participação da sociedade civil nas
instâncias decisórias, defendida pelas forças que
sustentam o projeto participativo democratizante como um mecanismo de
aprofundamento democrático e de redução da
exclusão, possa acabar servindo aos objetivos do projeto que lhe
é antagônico”, diz ela.
No plano transnacional,
Wilhelm Hofmeister, da Fundação Konrad Adenauer, verifica
essa perversidade quando a Organização Mundial do
Comércio (OMC), por exemplo, estabelece diretrizes para as
relações com as ONGs defendendo a transparência, a
cooperação e as consultas, mas prevê para tal fim
apenas a realização de conferências, sem
compromissos, sobre temas específicos e, desde 2001, a
participação de representantes selecionados e registrados
de ONGs nas reuniões plenárias. “Essas diretrizes podem
ser interpretadas, sem dificuldades, como estratégias de
‘legitimação por procedimento’, ou seja, como o
enredamento da sociedade civil em alguns processos decisórios da
OMC para superação da desilusão e
absorção de possíveis protestos”, analisa.
(SD)