América Latina em
ebulição
A deposição
do presidente equatoriano (abril de 2005), Ernesto Gutierrez, e a
renúncia do presidente boliviano (junho de 2005), Carlos Mesa,
são os casos mais recentes de instabilidade política que
atinge alguns países do continente latino-americano. Os
problemas relacionados ao questionamento da legitimidade de governos
também atingem países como Argentina, Venezuela e
Colômbia. No entanto, mais do que uma crise política, este
momento pode revelar uma oportunidade de maior
participação popular e aperfeiçoamento das
instituições democráticas e dos sistemas
políticos.
Para Marco Aurélio
Garcia, historiador e assessor especial de relações
internacionais da presidência da República, um ponto de
partida para entender as crises recentes é o fato de não
haver, historicamente, na América Latina, uma
correspondência direta entre democracia política e
democracia econômica e social. “Nós tivemos avanços
importantes, nos últimos 20 anos, em matéria de
democracia política, com o fim das ditaduras militares e
processos eleitorais isentos, mas a situação das maiorias
é muito precária, devido às políticas
econômicas ocorridas no mesmo período”, afirma.
Os episódios
recentes demonstram uma frustração de grandes segmentos
da população com relação ao atendimento de
demandas por parte dos governos, analisa Alcides Costa Vaz, professor
do Instituto de Relações Internacionais da Universidade
de Brasília (UnB). “São problemas de governabilidade
bastante graves e tem a ver com uma certa impermeabilidade das elites e
das próprias instituições democráticas com
relação às expectativas da
população”, diz. Entre as expectativas, pode-se destacar
a questão distributiva, relacionada a uma perspectiva de
melhoria econômica das camadas baixas. No entanto, estudos feitos
pela Comissão Econômica para a América Latina e o
Caribe (Cepal), órgão da Organização das
Nações Unidas (ONU), apontam que o desempenho
econômico e social da América Latina, desde a
década de 90 até os dias atuais, se manteve
estável ou piorou.
Os dados do estudo,
chamado de Panorama Social da América Latina,
divulgados em dezembro de 2004, mostram a existência de cerca de
224 milhões de latino-americanos considerados pobres (43,2% da
população) e 98 milhões de indigentes. A
análise também aponta o descumprimento dos Objetivos do
Milênio –
um documento da ONU que estabelece que todos os
países signatários devem se comprometer, até 2015,
a gradativamente reduzir seus índices de pobreza pela metade,
quando comparados aos de 1990. O Chile foi o único país
que cumpriu essas metas. O relatório também confirma a
América Latina como uma das regiões mais desiguais do
planeta, com o Brasil liderando o ranking.
Há também
motivações conjunturais, específicas de cada um
dos países em crise, como no caso de Bolívia e Equador.
Segundo o economista Victor Hugo Klagsbrunn, coordenador do programa de
pós-graduação em relações
internacionais da Universidade Federal Fluminense (UFF), trata-se da
inexistência de canais institucionais efetivos de
participação de uma parcela preponderante da
população. “Pode-se concluir que, nesses países,
as instituições políticas não se
constituíram prevendo contemplar os direitos e os interesses das
amplas camadas de camponeses, sobretudo indígenas”, lembra.
“Mais do que as
instituições, o sistema político desses
países não estava preparado para esta mudança,
pois abrigava um número restrito de forças”,
contrapõe Marco Aurélio Garcia, que menciona uma
ampliação significativa da participação das
massas populares na vida política dos países andinos,
como Equador, Bolívia e, em certa medida, na Venezuela.
No caso da Venezuela,
havia um sistema bipartidário, com forças
políticas que, durante muito tempo, se revezaram no poder e
ocupavam todo o aparelho do Estado, incluindo o poder judiciário
e os cargos públicos. O início da mudança ocorreu
no final da década de 1980, quando o governo de Carlos
Andrés Perez fechou um acordo com o Fundo Monetário
Internacional (FMI), em 1989, impondo duras medidas à
população. “Houve uma revolta generalizada que causou,
segundo os cálculos mais conservadores, cerca de mil mortos”,
conta Garcia. A partir daí, houve uma tentativa de golpe (1992)
do então coronel Hugo Chávez, desestabilizando todo o
sistema político venezuelano. Desde então, as
eleições nunca mais tiveram como favoritos os candidatos
do bipartidarismo. Embora Hugo Chávez seja apontado como um
governante autoritário pelos EUA e por algumas potências
européias, Garcia lembra que Chávez foi eleito
democraticamente em 1994 e constituiu instituições que
deram solidez ao governo, criando inclusive, nas
disposições da nova Constituição, um
mecanismo revogatório que poderia destituí-lo.
Chávez foi confirmado presidente por esse mecanismo em 2004.
Já na
Bolívia, a realidade é mais complexa. Seu presidente,
recém eleito em apenas um turno de eleição direta,
Sanchez de Lozada, com uma base social muito frágil, foi
obrigado a renunciar em outubro de 2003. O vice-presidente, Carlos
Mesa, assumiu, mas se viu diante de uma agenda extremamente complexa, o
que o levou a renunciar há cerca de um mês. Abriram
mão do cargo os presidentes da Câmara e do Senado,
assumindo o presidente da Suprema Corte, Eduardo Rodríguez. Para
Marco Aurélio Garcia, os principais fatores que
contribuíram para a crise recente são a necessidade de
superação de uma clássica situação
de dependência econômica, de um modelo de uso dos recursos
naturais e uma pressão social para refazer as
instituições democráticas bolivianas, incluindo
uma nova Constituição. “Neste último ponto
não há acordo entre as forças políticas
atuantes, nem sobre as formas, nem sobre o conteúdo de uma nova
Constituição”, diz o historiador, que esteve recentemente
na Bolívia e buscou criar canais de mediação junto
às principais lideranças políticas. A
definição de eleições gerais, no
início deste mês, proporciona uma certa resposta aos
problemas institucionais vigentes, o que só teria sido
possível, acredita Garcia, graças a uma
irrupção social muito forte, podendo gerar um
declínio das forças políticas tradicionais,
assemelhando-se à Venezuela.
O caso argentino é
bastante emblemático porque não está tão
associado às instituições democráticas em
si, como o os poderes legislativo, executivo e judiciário e todo
aparato estatal de maneira geral. Porém, o impacto de
políticas neoliberais foi tão profundo que gerou uma
forte mobilização popular, tão intensa como nos
países andinos, que chegou a gerar a sucessão de cinco
presidentes em cerca de 15 dias. Segundo Victor Klagsbrunn, a
reação contra as políticas neoliberais permanece e
está sendo contabilizada pelo atual presidente argentino: “A
mobilização popular, estimulada pelo atual presidente
[Néstor Kirchner], é resultado da luta contra essas
políticas”, explica.
Controle
internacional
O papel dos organismos
internacionais no processo de manutenção e
aperfeiçoamento da democracia –
como a Organização
das Nações Unidas (ONU) e a Organização dos
Estados Americanos (OEA) – é um assunto controverso, em
função dos limites até onde eles podem agir sem
ferir o princípio da auto-determinação e da
soberania dos países membros.
Alcides Costa Vaz
acredita que um fator que dificulta a discussão é a
fragilidade desses organismos, cujo exemplo mais claro foi a recente
invasão militar ao Iraque, feita sem qualquer respaldo
internacional. No entanto, ele enfatiza que a atuação dos
mesmos deve seguir uma gradação, iniciando-se com um
diálogo para a construção de consensos
mínimos e convergências que garantam a
manutenção não apenas formal, mas real, de formas
de governabilidade diante de situações de crise. Em
segundo lugar, viria a exigência do cumprimento de
cláusulas democráticas dos países membros,
suspendendo aqueles que não as cumprem: “A OEA, o Mercosul e a
Comunidade Andina, por exemplo, possuem cláusulas
democráticas e punem quem não as cumpre”, explica. Um
exemplo foi a suspensão do Peru da Comunidade Andina, em 1993,
devido ao golpe de estado do ex-presidente Alberto Fujimori. Uma
terceira medida, mais dura, poderia ser a realização de
embargos econômicos. No entanto, o pesquisador realça a
importância da primeira estratégia: o fortalecimento do
diálogo político pela via diplomática. Embora
concorde com Costa Vaz, Klagsbrun chama atenção para o
fato dos órgãos internacionais intermediarem a
resolução de conflitos sociais, “mas seu raio de
ação é muito limitado, pois conflitos
políticos são, em princípio, resolvidos no
âmbito interno de cada país”.
O fator determinante para
legitimar o chamado “direito de ingerência” são casos
evidentes de violações de direitos humanos, com
ações que sejam definidas a partir de organismos
internacionais legítimos, com quorum altamente qualificado.
“Essa é uma das razões pela qual o Brasil defende, hoje,
mudanças no Conselho de Segurança da ONU”, declara Marco
Aurélio Garcia. O Brasil quer uma ampliação do
Conselho e reivindica uma vaga permanente no mesmo.
O papel de mediador de
conflitos não fica restrito às organizações
internacionais, mas tem sido desempenhado de maneira voraz pela maior
potência do mundo, os EUA, e especialmente o governo Bush, avalia
Klagsbrunn, muito embora esta função tenha se revelado na
forma de intervenções políticas e, sobretudo,
militares. Porém, o pesquisador descarta uma
intervenção militar na América Latina, uma vez que
“a grande potência interventora está muito ocupada curando
as feridas decorrentes de intervenções militares ‘pouco
bem sucedidas’ no Afeganistão e no Iraque”.
Mas os norte-americanos
têm aproveitado certas instabilidade na América Latina
para aumentar sua influência na região. Recentemente, o
governo paraguaio autorizou o estacionamento de tropas norte-americanas
em seu território, dando origem à primeira base
permanente na América do Sul. A região é
considerada estratégica, pois situa-se próxima à
tríplice fronteira, à maior represa do mundo (Itaipu), e
está à mesma distância de dois oceanos. Sobre o
episódio, Marco Aurélio Garcia se abstem: “Trata-se de
relações bilaterais entre dois países sobre as
quais não devemos comentar”.
A situação
crítica no Oriente Médio, na opinião de Alcides
Costa Vaz, também levou os EUA a uma tentativa recente de
reforçar os mecanismos de sanção da OEA. Durante a
35a Assembléia Geral da instituição, o país
propôs a criação de um comitê especial de
fiscalização das condições
democráticas dos países membros ou, como vê o
professor da UnB, uma tentativa de legitimar uma possível
intervenção na América Latina por meio da OEA.
Rejeitada pela maior parte dos votantes, a proposta foi vista como uma
ameaça aos princípios da não
intervenção da auto-determinação dos
países.(leia notícia sobre a rejeição da
proposta norte-americana na OEA)
Talvez esse tenha sido um
sinal do fortalecimento da conscientização
política latino-americana, por meio dos crescentes movimentos
populares que promovem a participação de mais camadas
sociais na esfera política. “Uma maior
participação popular está dando um conteúdo
mais pleno de democracia às instituições,
integrando uma parcela bem maior da população no processo
de decisão política”, conclui o economista Victor Hugo
Klagsbrunn.
(DC)
Fatos recentes da
história política de alguns países
latino-americanos
Fevereiro de 1992 – O
general Hugo Chávez comanda uma tentativa de golpe contra o
presidente Carlos Andrés Perez (Venezuela)
Março de 1994 -
Presidente Rafael Caldera (Venezuela) liberta Hugo Chávez da
prisão. Dois meses depois, é decretada a prisão do
ex-presidente venezuelano Carlos Andres Perez
Maio de 1997 - Hugo
Chávez anuncia sua intenção de concorrer à
presidência da Venezuela, sendo eleito em 06/12/1998
Dezembro de 2001 – Crise
econômica se acentua na Argentina; greve geral é iniciada
e governo decreta Estado de Sítio por 30 dias
Janeiro de 2002 – Eduardo
Duhalde assume presidência da Argentina após o país
ter 4 presidentes em cerca de 10 dias
Abril de 2002 - Hugo
Chávez é temporariamente deposto da presidência da
Venezuela, dia 11, e reassume no dia 13. Líderes golpistas
refugiam-se nos EUA
Novembro de 2002 - Lucio
Gutiérrez vence as eleições presidenciais no
Equador; dois meses depois, aumenta preços dos
combustíveis em até 39% e congela salários do
setor público.
Maio de 2003 –
Néstor Kirchner é eleito presidente da Argentina
Outubro de 2003 -
Renúncia do presidente boliviano Gonzalo Sanchez de Lozada, que
se refugia em Miami, e posse do vice Carlos Mesa
Agosto de 2004 -
Vitória do presidente Hugo Chávez em referendo na
Venezuela, que poderia destituí-lo do cargo.
Abril de 2005 –
Manifestações em diversas cidades equatorianas culminam
com a deposição do presidente Lúcio
Gutiérrez, que exila-se no Brasil
Junho de 2005 –
Renúncia do presidente boliviano Carlos Mesa. Eduardo
Rodríguez, presidente da Suprema Corte, assume o poder.
Lúcio Gutiérrez (presidente deposto do Equador) renuncia
ao exílio político no Brasil
Julho de 2005 – Congresso
da Bolívia anuncia eleições gerais para Dezembro
de 2005