A democracia no
Brasil
Luis Felipe
Miguel
Há mais
de 20 anos, em março de 1985, os civis voltaram a exercer o
poder no Brasil, depois de uma longa ditadura militar. O retorno do
governo civil é um dos marcos da redemocratização
do país, seguido pela promulgação de uma nova
Constituição, em 1988, e da eleição direta
para a presidência da República, em 1989. Para as
ciências sociais, assim como para a mídia, para os
políticos e para o próprio senso comum, nós hoje
vivemos numa democracia. Mas em que democracia nós estamos
vivendo?
De acordo com a
etimologia da palavra, “democracia” quer dizer
“governo do povo”. Herdamos não só a palavra,
mas a própria idéia de democracia, da Grécia
antiga. Lá, nos séculos V e IV antes de nossa era,
floresceu um regime de governo no qual as decisões
políticas eram tomadas pelo conjunto dos cidadãos,
reunidos em assembléia. O “governo do povo” tinha,
então, um sentido bastante literal: cada cidadão
participava diretamente das decisões de governo. Os cargos
públicos permanentes eram, em geral, preenchidos por sorteio.
Hoje, tal forma
de organização política é considerada
inviável. Entre os problemas, que em geral são apontados,
está o tamanho dos Estados nacionais contemporâneos e de
suas populações: não dá para reunir todo
mundo numa assembléia. Além disso, as questões de
governo teriam se tornado mais complexas, exigindo maior
especialização. Há um ponto adicional. A
democracia grega excluía da cidadania a maioria dos habitantes;
estavam de fora mulheres, escravos e estrangeiros, além das
crianças. Com isso, o nível de conflito potencial na
arena política ficava bem reduzido. Uma das
características mais importantes das experiências
democráticas atuais é a crescente
incorporação dos vários grupos sociais à
cidadania. A diversidade de interesses é muito grande e,
portanto, mecanismos de mediação são
necessários para evitar que o conflito social atinja
níveis explosivos.
Nossas
democracias são, então, democracias representativas.
Mas a familiaridade com que a expressão “democracia
representativa” é recebida não deve obscurecer o
fato de que ela encerra uma contradição. Trata-se de um
governo do povo no qual o povo não está presente no
processo de tomada de decisões. De maneira um pouco mais
sistemática, é possível observar que a
construção de uma ordem democrática, qualquer que
seja ela, coloca uma série de desafios. Afinal, é
necessário gerar uma “vontade coletiva” partindo de
um grupo de pessoas com preferências diferenciadas. É
necessário permitir a livre expressão dos interesses em
conflito, mas sem ameaçar a manutenção de uma
unidade mínima, sem a qual nenhuma sociedade pode existir.
É necessário garantir que indivíduos desiguais, no
que se refere aos recursos de que dispõem, partilhem de uma
igualdade política.
São
desafios que estão presentes mesmo em situação de
“democracia direta”. Mas a representação
política coloca um novo e gigantesco conjunto de problemas,
tão ou mais grave que o primeiro. São ao menos três
problemas fundamentais, estreitamente ligados entre si:
(1) a
separação entre governantes e governados, isto é,
o fato de que as decisões políticas são tomadas de
fato por um pequeno grupo e não pela massa dos que serão
submetidos a elas;
(2) a
formação de uma elite política distanciada da
massa da população, como conseqüência da
especialização funcional acima mencionada. O
“princípio da rotação”, crucial nas
democracias da Antiguidade – governar e ser governado,
alternadamente –, não se aplica, uma vez que o grupo
governante tende a exercer permanentemente o poder; e
(3) a ruptura do
vínculo entre a vontade dos representados e a vontade dos
representantes, o que se deve tanto ao fato de que os governantes
tendem a possuir características sociais distintas dos
governados (são quase sempre mais ricos e mais instruídos
do que a média) quanto a mecanismos intrínsecos à
diferenciação funcional, que agem mesmo na ausência
da desigualdade na origem social. Isto é, os governantes
têm interesses distintos do povo, pelo simples fato de serem
governantes.
Fica claro que
manter a vinculação da democracia com o sentido original
de “governo do povo”, nas condições dos
regimes representativos, é uma difícil tarefa. Na
definição corrente de democracia, cuja origem, na metade
do século XX, é a teoria de um economista
austríaco, Joseph Schumpeter, há um regime
democrático quando o governo nasce de eleições
populares competitivas. Trata-se de um simples procedimento;
se o governo é eleito pelo método eleitoral, é
democrático, não importa quais políticas adota.
Quando nós focamos na qualidade das democracias
representativas, porém, torna-se importante saber se os
governantes realmente representam as vontades e os interesses do povo
que os elegeu.
De maneira
geral, os regimes democráticos contemporâneos respondem
bastante mal aos desafios ligados à realização do
ideal de um governo do povo. Vários estudos constatam, em
diversos países do mundo, que as pessoas se mantêm
fiéis à idéia de democracia, mas encaram com
desconfiança as instituições representativas. Isto
é, não se sentem realmente representadas nos centros de
poder. Onde o voto é facultativo, esse sentimento se traduz em
taxas crescentes de abstenção eleitoral. Mais ou menos
por toda a parte, a lealdade aos partidos políticos declina e se
amplia o ceticismo quanto às possibilidades transformadoras da
política.
Em países
como o Brasil, existem três agravantes. Primeiro, a recente
experiência do regime ditatorial torna necessário
reconstruir instituições democráticas, antes mesmo
de se pensar em aprimorá-las. Em segundo lugar, a pobreza de
vastos contingentes da população priva-os das
condições materiais mínimas para o
exercício da cidadania. Por fim, o novo cenário mundial
– a chamada “globalização” –
tornou os Estados dos países periféricos muito
frágeis diante das grandes corporações mundiais,
retirando questões cruciais do âmbito da decisão
democrática.
Do ponto de
vista formal, a democracia brasileira avançou bastante. Todos os
principais postos nos poderes executivo e legislativo são
preenchidos através de eleições, nas quais a
competição é ampla. O direito de voto foi
estendido até o limite do que comumente se julga
razoável, com sua concessão aos analfabetos e aos jovens
entre 16 e 18 anos. Os três poderes são formalmente
independentes, ainda que o executivo prepondere (o que é uma
tendência mundial). Mesmo nas relações
civis-militares, uma área crítica no início da
transição do autoritarismo para a democracia, os
avanços foram significativos e hoje a influência
política das forças armadas está bastante reduzida.
O processo
eleitoral se firmou como grande mecanismo de legitimação
do poder, mesmo em meio à crise econômica profunda e a
seguidos escândalos de corrupção. As
soluções das crises passam sempre por novas
eleições, que ainda aparecem como momentos de
renovação da esperança. Mas as regras eleitorais
ainda são marcadas por certa indefinição, sofrendo
adaptações de acordo com as circunstâncias. O caso
mais importante foi a instituição da
reeleição, aprovada pelo Congresso em 1996, visando
permitir a recondução do presidente Fernando Henrique
Cardoso em meio a denúncias de corrupção de
parlamentares.
Entre os
“créditos” da democratização
está a alternância no poder – afinal, transferir o
governo pacificamente para um opositor é uma das
“provas” do funcionamento da democracia. O primeiro
presidente eleito, Fernando Collor, batia de frente no governo de
José Sarney. Fernando Henrique era ministro de Itamar Franco,
que sucedeu Collor após o impeachment, mas após
dois mandatos foi substituído por Luiz Inácio Lula da
Silva, veterano líder oposicionista, à frente de um
partido de base socialista. A campanha eleitoral foi tranqüila e
não houve qualquer ameaça à posse do vencedor.
Mas, por
trás da alternância nominal dos governantes, há
muita continuidade. As forças políticas se tornaram muito
parecidas, reduzindo o leque de opções disponível
nas eleições. A esquerda, em especial, foi
“domesticada”, reduzindo seu compromisso com medidas de
justiça social e aceitando o modelo econômico vigente. O
Lula que se elegeu em 2002 era adversário político de
Fernando Henrique, mas seu governo não apresentou propostas
muito diferentes do anterior.
Parece haver um
consenso de que, nas novas condições da economia e da
política globais, não há espaço para uma
gestão diferente de Estados periféricos, condenados a
buscar uma inserção subordinada no mercado mundial e a
internalizar fortemente os interesses dos investidores externos
potenciais. Tais circunstâncias forçam a esquerda a
moderar seu programa, abandonando os diferenciais que a caracterizavam
em prol de um pragmatismo que indicaria sua maturidade e
responsabilidade. Políticas sociais inclusivas, que promovam a
universalização das condições materiais de
acesso à cidadania, são em geral engavetadas ou aplicadas
de forma tímida, já que precisam se submeter aos
imperativos de ajustes fiscais. Direitos trabalhistas e
previdenciários recuaram, após a
redemocratização, pois são considerados
prejudiciais à “competitividade” econômica,
aumentando os custos do trabalho para o capital.
Não
é possível discutir aqui até que ponto a chamada
“globalização” realmente engessa as
políticas governamentais, tema que é motivo de
polêmica. Mas, na medida em que os atores políticos
relevantes acreditam nisso, ou agem como se acreditassem, a
política democrática se transforma num jogo desprovido de
efetividade, até mesmo de realidade. Reduz-se o único
poder do cidadão comum, que é o voto: ele não
indica mais o rumo que deseja para a sociedade, já que as
opções não se diferenciam entre si.
As propostas de
transformação da realidade tendem a se tornar cada vez
mais irrelevantes, guetificadas, vinculadas a grupos com escassa
penetração social, que quase sempre são ignorados
pelos ocupantes das posições centrais do campo
político e pela mídia. Parece que chegamos ou estamos
prontos para chegar a um grau elevado de “maturidade”
política, isto é, de desencanto com as possibilidades
abertas pelas instituições, levando não à
revolta, mas ao conformismo. Isto é, estamos nos aproximando da
posição dos países desenvolvidos, na
América do Norte ou na Europa Ocidental – embora nas
nossas condições de desigualdade social profunda e
pauperização de significativa parcela da
população. Ao mesmo tempo, os padrões tradicionais
da política de clientela continuam vigorando, no interior ou na
periferia das grandes cidades, alimentando a máquina do
caciquismo local, no Brasil.
Não se
trata de negar as conquistas democráticas brasileiras. Com todas
as suas falhas, há um Estado de Direito instituído, com
mecanismos – nem sempre eficientes – de
proteção às liberdades dos cidadãos. Mas
ainda há muito por fazer. Se a preocupação
é apenas com a “consolidação” de um
regime que se reduz, praticamente, à concorrência
eleitoral, então pode ser reconfortante observar que o
descrédito nas instituições não se traduz
em apoio ao autoritarismo. Porém, temos um regime que, embora
nascido de eleições competitivas, parece incapaz de
responder às demandas populares. Até mesmo em algo
tão básico, tão consensual como o combate à
corrupção, fica clara a incapacidade que o povo tem de
impor sua vontade a seus representantes formais.
Os desafios a
serem enfrentados são muitos, incluindo a
redistribuição dos recursos políticos,
democratização da comunicação de massa,
fortalecimento da sociedade civil. Em todos eles, há um
componente que aponta para a redução das desigualdades
sociais. Um povo que não disponha das condições
básicas para uma vida digna não estará em
condição de exercer a soberania – que, segundo o
ideário democrático, é o seu papel.
Luís
Felipe Miguel é professor do Instituto de Ciência
Política da Universidade de Brasília, onde lidera o grupo
de pesquisa “Democracia e democratização”;
pesquisador do CNPq.