Lobby
e democracia no Brasil
Wagner Pralon
Mancuso
O conjunto de
decisões políticas capazes de interferir sobre a
atividade de qualquer ator social é muito abrangente. De fato, a
atividade dos atores sociais é regida por uma miríade de
decisões tomadas por indivíduos que ocupam
posições de autoridade nos poderes executivo, legislativo
e judiciário em âmbito local, estadual e federal. A
percepção de que as decisões tomadas nestas
instâncias são relevantes para o desempenho de suas
atividades é o motivo que leva os atores sociais a desenvolverem
ações políticas durante os processos
decisórios, com a intenção de promover os seus
interesses. A palavra lobby, de origem inglesa, foi
incorporada ao nosso vocabulário justamente para designar todas
essas ações políticas de defesa de interesses.
Neste artigo
focalizo o lobby
que é realizado sem violar as leis do país. Esta ressalva
é importante, porque a interação dos atores
sociais com os atores do poder público durante processos
decisórios pode assumir uma forma degenerada, criminosa –
a corrupção.
É o que ocorre quando está em jogo a
obtenção de vantagens ilícitas para ambas as
partes; por exemplo, quando atores sociais oferecem dinheiro e/ou
outros benefícios aos tomadores de decisão, em troca de
diversos tipos de recompensas ilegais. Naturalmente, detectar e
investigar os episódios de corrupção, assim como
punir os culpados, são atitudes da maior importância para
a defesa do interesse público. A mídia brasileira tem
oferecido uma contribuição muito valiosa neste sentido,
ao denunciar e acompanhar diariamente numerosos eventos de
corrupção. Este artigo, no entanto, destaca a parcela do
lobby que não é feita de forma ilegal. Esta parte do
lobby também é um objeto importante para a
análise política. Além disso, como irei argumentar
em seguida, essa parcela das atividades de defesa de interesses pode e
deve ser submetida a mecanismos que a tornem mais transparente e
acessível aos diversos segmentos sociais – portanto, que a
tornem mais compatível com valores democráticos.
Mais
especificamente,
quero destacar neste artigo o lobby realizado pelos atores
sociais durante a produção legislativa de nível
federal. O lobby, ou pressão política em defesa
de determinado interesse, geralmente é a ação em
que culmina todo um processo de envolvimento do ator social com a
produção legislativa, processo cujas etapas anteriores
são o monitoramento dos projetos apresentados, a análise
técnica das propostas e a tomada de
posição diante das proposições mais
relevantes.
A
produção
legislativa de nível federal se desdobra em diferentes
estágios: (i) a formulação das
proposições analisadas pelo parlamento; (ii) a discussão
das proposições no âmbito das comissões
e/ou do plenário da Câmara dos Deputados, do Senado
Federal, ou do Congresso Nacional; (iii) a votação
das proposições discutidas; (iv) o pronunciamento do
presidente da República sobre o texto
aprovado[1]; e (v) a votação dos parlamentares sobre
vetos eventualmente interpostos pelo presidente. O lobby
pode ocorrer em qualquer um destes estágios da
produção legislativa.
Por exemplo, o lobby
remonta ao estágio em que a proposição está
sendo formulada. O lobby neste estágio precoce da
produção legislativa acontece de muitas maneiras.
Há casos em que os atores sociais são oficialmente
convidados a participar de colegiados que irão preparar
anteprojetos de lei, que posteriormente serão apresentados por
parlamentares ou pelo poder executivo. Também há casos em
que o autor de uma proposta, ciente do impacto daquela proposta sobre
determinado segmento social, toma a iniciativa de ouvir os
representantes daquele segmento antes de definir o conteúdo
final do projeto. Há casos ainda em que os parlamentares
são ligados a certos grupos de interesse, e optam por adotar
projetos elaborados pelo corpo técnico daqueles grupos. Em todos
esses casos, os interesses do ator social são promovidos antes
mesmo que se inicie a tramitação da
proposição legislativa.
O lobby
também ocorre nos estágios de discussão e
votação das proposições legislativas, seja
nas comissões, seja no plenário.
De fato, uma
parte
significativa do trabalho legislativo é realizada nas
comissões da Câmara dos Deputados, do Senado Federal e nas
comissões mistas. Naturalmente, grande parte do lobby
é dirigida para este fórum. No espaço das
comissões, o lobby freqüentemente acontece em
eventos tais como audiências públicas, seminários e
reuniões de trabalho, que são convocados para
proporcionar aos representantes de um segmento social a oportunidade de
ficar face a face com os tomadores de decisão, debater com eles
a proposição legislativa em análise e manifestar,
diante deles, as suas demandas. Contudo, o lobby no
nível das comissões não se restringe aos eventos
de caráter oficial. Em inúmeras situações,
a iniciativa do contato não é tomada pelos parlamentares,
mas pelos próprios atores sociais. O relator do projeto na
comissão usualmente torna-se o alvo privilegiado do lobby,
enquanto não conclui seu parecer. A idéia é
garantir de antemão que o conteúdo do parecer do relator
espelhe os interesses do ator social. Após a
apresentação do parecer, o foco do lobby se
desloca para os membros da comissão em geral, para que eles
aprovem, rejeitem ou modifiquem o parecer do relator, em
função dos interesses defendidos.
O trabalho de
pressão política continua quando as
proposições tramitam no plenário da Câmara
ou do Senado. Nessa ocasião, os líderes do governo e dos
partidos políticos tornam-se alvos importantes do lobby
para que o projeto seja repelido, alterado ou aprovado. O lobby
sobre as lideranças é realizado porque há a
expectativa de que essas lideranças irão orientar o voto
de suas bancadas e que as bancadas irão acompanhar sua
orientação. O lobby sobre os líderes
é complementado pela pressão política sobre os
parlamentares, em base individual.
No Brasil, o
poder
executivo desempenha um papel preponderante na produção
legislativa federal, pois é o autor da maior parte das
proposições transformadas em normas jurídicas.
Desta forma, os atores sociais têm um forte estímulo para
realizar o lobby sobre o poder executivo. Na prática, o
lobby sobre o poder executivo vai além dos casos em que
este poder é o autor da proposição sob
análise. A pressão sobre o executivo ocorre também
durante a negociação de projetos de parlamentares em que
o governo se envolve como parte interessada ou como árbitro de
conflitos entre interesses diversos. Nos muitos casos em que os atores
sociais pressionam o executivo, a pressão pode ocorrer no
momento em que a proposição está sendo redigida;
durante o processo de negociação do projeto no parlamento
ou no momento em que o presidente deve decidir se irá sancionar
ou vetar (total ou parcialmente) uma proposição aprovada
pelo poder legislativo. Em caso de insatisfação com os
vetos impostos pelo presidente da República, resta ainda a
alternativa de pressionar os parlamentares pela supressão dos
vetos.
Em nenhum
estágio
da produção legislativa o lobby possui um
caráter predeterminado. Antes, o sentido do lobby
varia conforme a natureza do projeto que está em foco. Há
casos em que o lobby assume um caráter defensivo,
o que acontece quando o objetivo do ator social é evitar os
danos que certas proposições legislativas podem acarretar
para seus interesses. Nessa circunstância, o lobby
é orientado para encerrar a tramitação da
proposta, ou paralisá-la, ou ainda para modificar a proposta,
tornando-a mais aceitável. Em outros casos, o lobby
ostenta um caráter ofensivo, o que ocorre quando a
idéia do ator social é apoiar projetos cuja
aprovação seria capaz de lhe trazer benefícios.
Acredito que
não
é necessário, nem desejável, erradicar a
ação de lobby que não agride as leis do
país. O lobby que obedece às leis é uma
modalidade de ação que inclusive pode ser útil
para o aprimoramento da qualidade das decisões políticas,
ao trazer o ponto de vista de diferentes atores sociais para o interior
do processo decisório.
Isto não
impede,
no entanto, o esforço de formular mecanismos que tornem a
prática do lobby cada vez mais compatível com
valores democráticos. Por exemplo, a transparência do
lobby na produção legislativa seria muito
favorecida se esta ação política fosse regida, no
Brasil, por uma lei equivalente ao Lobbying Disclosure Act
(Lei da Revelação do Lobbying), aprovado pelo Congresso
dos Estados Unidos da América em 1946 e reformado em 1995.
Embora a questão venha à tona regularmente, os
congressistas brasileiros ainda não foram capazes de aprovar uma
lei que regulamente a atividade de lobby no país. Um
projeto nesse sentido, da autoria do senador Marco Maciel (PFL-PE), foi
apresentado em 1989. Aprovado no Senado Federal, o projeto está
engavetado na Câmara dos Deputados há 15 anos, desde 1990.
Entre outras coisas, o projeto (i) cria a exigência de registro
para o lobista que atua no Congresso Nacional; (ii) obriga o lobista a
prestar conta periodicamente dos gastos referentes à sua
atuação dentro e fora da Câmara e do Senado; (iii)
obriga o lobista a informar quem é o seu contratante e que
projetos está acompanhando; e (iv) estabelece
punições para os casos de desobediência às
regras. A aprovação de leis referentes à atividade
do lobby não somente em nível federal, mas
também em nível estadual e municipal, lançaria
muita luz sobre o problema da ligação entre grupos de
interesses privados e o poder público no Brasil.
Outro desafio
é
viabilizar a organização, a mobilização e o
exercício de pressão política por parte de
segmentos sociais numerosos que, no entanto, apresentam um déficit
histórico notável de ação coletiva –
tais
como os pequenos consumidores, os pequenos contribuintes, os
desempregados e as vítimas de exclusão
sócio-econômica. Quanto maior se tornar a capacidade
destes atores de defender seus interesses na arena política,
tanto menor será o desequilíbrio em favor dos interesses
economicamente ou politicamente privilegiados.
[1] - Há
casos em
que o texto aprovado pelo parlamento não é remetido ao
presidente da República. Isso ocorre, por exemplo, quando a
proposição original é uma Proposta de Emenda
à Constituição, um Projeto de Decreto Legislativo
ou uma Mensagem de Acordo Internacional.
Wagner Pralon
Mancuso é professor do curso de gestão de
políticas públicas da Universidade de São Paulo
(campus da Zona Leste).
Este artigo é baseado no capítulo 2 de sua tese de
doutorado: “O lobby da indústria no Congresso Nacional:
empresariado e política no Brasil contemporâneo”,
defendida em 15 de outubro de 2004 no departamento de ciência
política da USP. Leitores interessados na tese podem solicitar
uma cópia pelo endereço eletrônico: pralon@usp.br