Percepções
públicas do Congresso Nacional:
o paradoxo da democracia brasileira
Rachel Meneguello
A crise que afeta o
país desde maio de 2005, com as denúncias de
corrupção que atingem partidos, parlamentares e o poder
público, coloca as instituições representativas e
o funcionamento do Estado brasileiro na rota de profunda
desmoralização pela opinião pública. Dados
recentes de pesquisa de opinião realizada em junho, logo
após as denúncias, traduzem um forte descrédito da
população com relação ao governo e ao
Congresso: 70% dos brasileiros acreditam na existência de
corrupção, por volta de 50% avaliam de forma muito
negativa o desempenho dos parlamentares[1] . Esses dados não
surpreendem. A percepção negativa da
população sobre os políticos e o parlamento
é um aspecto que se constata há anos. No entanto, as
mesmas pesquisas que constatam a desconfiança generalizada nos
políticos e no sistema representativo, também constatam o
apoio e a adesão da população brasileira ao regime
democrático. Além disso, se observarmos nosso
desenvolvimento político recente, a democracia brasileira
está relativamente consolidada, as distinções
políticas são acolhidas por uma dinâmica de
competição regular e há relativa harmonia entre as
instituições.
Esse é o quadro
paradoxal que nossa democracia enfrenta: se por um lado
construímos patamares cada vez mais sólidos para o
funcionamento do sistema democrático, por outro, apresentamos
níveis altos, generalizados e continuados de desencanto e
desconfiança dos cidadãos para com os políticos e
a representação política.
Na verdade, a
erosão da confiança no sistema representativo é um
fenômeno que atinge as várias sociedades
democráticas há pelo menos duas décadas. Embora a
democracia mantenha o estatuto de melhor forma de regime existente para
a organização e o funcionamento da vida política
dos vários países, a perda de credibilidade no
parlamento, nos partidos e nos políticos em geral é uma
tendência crescente. Dentre as razões desta falta de
confiança e descrédito, a percepção de que
as instituições são ineficientes para responder
às demandas da sociedade, e de que as motivações
de grande parte dos políticos são meramente individuais e
egoístas concentra as principais críticas dos
cidadãos.
Para a opinião
pública, a avaliação da trajetória dos
políticos e da capacidade de resposta das
instituições são alguns dos vetores que
condicionam o grau de envolvimento com o sistema representativo. Os
estudos mostram, nessa direção que, em parte, o
desencanto com as instituições democráticas, o
distanciamento da política e dos assuntos públicos,
enfim, o desengajamento cívico, traduzem o esgotamento do modelo
de governo representativo[2].
As pesquisas
também apontam a convivência de lógicas distintas
entre a valorização da democracia e a emergência de
cidadãos cada vez mais críticos e exigentes com
relação ao funcionamento das instituições
democráticas. Esse padrão observado tanto em democracias
consolidadas, quanto nas consideradas ‘semi-democracias’, pode resultar
em cenários distintos, como a produção de efeitos
desestabilizadores no corpo político, ou o estímulo ao
potencial de recuperação da capacidade das
instituições. Para esses dois cenários
possíveis, um dos principais domínios relacionados
é o das bases do engajamento cívico dos cidadãos,
seus interesses e formas de relação com a
política. Assim, a valorização da
ação política e das instituições
representativas são alguns dos aspectos potencialmente
relacionados à valorização da democracia.
Como o caso brasileiro se
enquadra nesse cenário? Se analisarmos os dados dos
últimos 20 anos, veremos que o experimento da Nova
República não foi capaz de redimensionar a
relação dos cidadãos com a política
representativa, limitada pelos anos da ditadura implantada em 1964,
mesmo tendo havido uma intensa e regular dinâmica eleitoral que
marcou todo o processo de democratização.
Ao longo do
período democrático pós-85, os dados de pesquisas
mostram que a percepção pública geral do Congresso
e da atuação dos políticos é
predominantemente negativa, e indicam uma persistente visão
crítica e insatisfeita sobre o funcionamento das
instituições.
Sob uma perspectiva
histórica, podemos dizer que o descrédito e a
desconfiança são aspectos constantes da
relação entre os cidadãos brasileiros e o sistema
representativo. Desde o início do período pós-85
as tendências de opinião refletiam, sobretudo nos grandes
centros urbanos, uma generalizada crise de representatividade,
estreitamente associada à ausência de credibilidade nas
instituições. Esta foi uma trajetória constante
das tendências nesse período. Em parte, a crescente
percepção negativa seria devida à maior
visibilidade dos conflitos no parlamento, levando a que
população redimensionasse sua avaliação dos
políticos e da política a partir do acesso ao seu
funcionamento real.
Por outro lado, a
própria retórica da transição, ao ter
privilegiado as eleições diretas como mecanismo central
do resgate democrático, definiu um segundo plano para o
estabelecimento de estruturas representativas. Uma pesquisa realizada
na capital paulista logo no início do novo regime, em 1985,
mostrava que apenas 35,4% dos eleitores consideravam que na nova
conjuntura democrática o poder do Congresso e dos parlamentares
deveria aumentar. Apenas em 1987, sob a perspectiva dos avanços
democráticos da Assembléia Nacional Constituinte, essa
opinião se alteraria para 51%. Mas na sequência dessa
conjuntura, em pesquisa realizada também na cidade de São
Paulo em 1988 sobre as bases da transição do regime, a
eleição direta para a presidência da
República emergiu como referencial básico da
construção democrática [3].
Em um cenário em
que o desgaste das instituições alimentava o
descrédito e o desencanto dos cidadãos com
relação aos políticos e à política,
como a população percebia o funcionamento do parlamento e
avaliava sua atuação?
Pesquisas realizadas nos
anos 90 confirmam que a baixa estima às
instituições políticas e a crítica à
sua atuação são as orientações
marcantes das opiniões gerais. A idéia geral
construída sobre os políticos e as arenas representativas
afirma o distanciamento dos políticos da população
e a dissociação de suas funções originais.
Dados de pesquisa nacional realizada em 1990 apontam que os
políticos eram percebidos como agentes isolados em uma
instância distante da população, incapazes de
acionar os laços de representação. Nesta pesquisa,
52,% dos eleitores consideravam os políticos insensíveis
às demandas da população; 83% afirmavam que os
políticos se orientam por interesses particularistas, e 83,7%
acreditavam que os políticos atuavam voltados à
satisfação dos interesses dos setores privilegiados da
sociedade[4].
Com tal
percepção negativa do desempenho da política
representativa, as bases do descrédito institucional se
traduziram, em parte, na indiferença ou na idéia de que a
presença dos órgãos de representação
é desnecessária para o funcionamento democrático.
Assim é que, em pesquisa realizada em março de 1993,
aproximadamente 30% do eleitorado nacional consideravam que do ponto de
vista de sua utilidade, o Brasil “poderia passar bem sem o Congresso
Nacional” [5], sob argumentos que afirmavam sua ineficiência, o
distanciamento da população, o trabalho em
benefício próprio, as práticas desonestas e
corruptas, além de configurar um gasto público
desnecessário. Na mesma pesquisa, na avaliação do
grau de satisfação com o Congresso eleito em 1990,
aproximadamente 46% dos indivíduos avaliavam seu trabalho com
notas menores que 5, em uma escala de 1 a 10. É surpreendente
que essa percepção tenha se formado cinco meses
após outubro de 1992, quando então o Congresso Nacional
atuara de forma definitiva para recuperar sua credibilidade em uma das
conjunturas mais importantes da história republicana,
através da aprovação do impeachment do
então presidente da República, [Fernando] Collor de Melo.
A cassação do presidente finalizou um processo de intensa
mobilização popular pelo resgate da moral e honestidade
no poder público, mas os dados de avaliação da
atuação do Congresso não pareceram traduzir a
percepção do papel da instituição naquela
conjuntura.
A mesma pergunta sobre a
importância do Congresso foi repetida em pesquisa nacional dois
anos depois, em 1995, e os dados revelam não somente a
manutenção da percepção negativa, mas ainda
seu fortalecimento, aumentando de 30% para 40% os indivíduos que
não consideravam sua importância para o país. A
mesma tendência aparece nos dados de avaliação do
desempenho dos parlamentares, que receberam notas maiores ou iguais a 5
de pouco mais da metade dos entrevistados (58,2%).
Uma análise de
dados mais recentes permite apontar o fortalecimento desse
cenário negativo e de descrédito com
relação ao Congresso brasileiro. Em pesquisa realizada em
2002 logo após a eleição presidencial, para um
conjunto de instituições que tiveram sua
atuação avaliada, os partidos e o congresso foram as
instituições públicas que receberam menor
avaliação positiva, com 35,3% e 38,4%, respectivamente.
Com relação
específica ao Congresso, os dados de avaliação
positiva do desempenho de parlamentares entre 1995 e 2005 [6] mostram
uma trajetória predominantemente descendente, acompanhando a
persistente tendência observada em todo o período.
Avaliação
dos parlamentares do Congresso Nacional
Brasil, 1995-2005
|
1995
|
1998
|
2000
|
2001
|
2005
|
Ótimo/Bom |
19,3
|
24,2
|
14,2
|
15,2
|
15,0
|
Regular |
41,8
|
45,1
|
39,6
|
47,2
|
38,0
|
Ruim/
Péssimo |
28,4
|
26,2
|
39,2
|
29,6
|
42,0
|
Nao sabe |
10,5
|
4,4
|
7,0
|
8,0
|
5,0
|
Total |
100,0
|
100,0
|
100,0
|
100,0
|
100,0
|
Os dados existentes
explicitam o fenômeno da desconfiança sobre o sistema
representativo mas não nos ajudam ainda a entender o descompasso
entre o cenário político presente, marcado pelo
fortalecimento dos mecanismos de funcionamento democrático, e a
manutenção da desconfiança e o descrédito
com relação às instituições de
representação.
Com os olhos em busca de
informações que apontem a consolidação
democrática, preocupa observar que a avaliação da
atuação das instituições representativas
ocupa um espaço negativo de predominante descrédito e
desconsideração. Esse ponto, no entanto, não deve
obscurecer a presença de uma adesão à democracia
que canaliza, através das eleições e da
lógica da alternância, o descontentamento e a
insatisfação com o desempenho de governos.
[1] - Pesquisa do Instituto Datafolha, 17/06/2005
[2] - Pippa Norris, 1999.Critical Citizens.Global Support for
democratic Governance. Oxford.Univ.Press; Norris, Pippa. 1999b.
“Conclusions: the growth of Critical citizens and its consequences”, in
Norris, Pippa(ed.) Critical Citizens, Oxford UP.Ola Listhaug,
1995. “The Dynamics of Trust in Politicians”, in Klingemann & Fuchs
(eds.), Citizens and the State, Oxford Univ.Press.
[3] - Pesquisa Eleitoral São Paulo1985, Coleção
IDESP-CESOP/Unicamp.
[4] - Fonte: Banco de Dados CESOP/Unicamp - DAT/BR90.MAR-00219
[5] - Fonte:Banco de Dados CESOP/Unicamp - DAT/BR93.MAR-00322
[6] - Fonte: Banco de Dados CESOP/Unicamp
-DAT/BR95.DEZ-000475;DAT/DF98.DEZ-00934;DAT/BR00.JUN-01045;DAT/BR01.DEZ-01599;
Pesquisa Datafolha 17/06/2005.