[an error occurred while processing the directive] Reportagens

Democracia na África

Lourenço Ocuni Cá

Pretender construir uma imagem completa do processo da democratização no continente africano seria demasiado ambicioso. Vou limitar-me a alguns apontamentos que permitam situar certas coordenadas fundamentais nos Países Africanos de Língua Oficial Portuguesa (PALOPs), de modo a expor em seguida, a gênese do processo democrático e/ou abertura ao pluripartidarismo nesses países.

Limitar-me-ei aos cinco países africanos da expressão oficial portuguesa na África, nomeadamente Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe, porque não se tentou fazer valer em algum tempo, a idéia grotesca em si, que o Egito não era parte integrante da África? E isso por ser impossível negar o seu esplendor cultural que fecundaria a civilização romana num momento em que Roma era ainda socialmente menor. Assim, o Egito cessaria de pertencer à África para formar um vago continente marginal possuindo, esse sim, uma cultura extraordinária. Toda a gente conhece a cultura e a civilização do Magreb; tanto basta para que se afirme haver duas Áfricas: a África ao norte do Saara e a África ao sul do Saara, separadas por esse "imenso vazio saariano" que imediatamente quiseram anexar à Europa. O mal disso tudo é que havia gente ensinando tais elucubrações em escolas de alguns países.

O continente africano tem sido vítima do seu próprio passado, palco de intermináveis ajustes de contas, daí a dificuldade em se situar em um presente de tolerância e a democracia e, ao mesmo tempo, em projetar-se em desenvolvimento.

O continente africano (África Subsaariana) tem sido um lugar de gente desesperada, cansada da miséria e de tudo. No continente tudo está indo mal. Na própria democracia forçada pelo ocidente, aliás, quase todos os países africanos foram obrigados a aderir ao sistema multipartidário, mas continuavam a mercê de manipulações de golpes de seus dirigentes. Apesar disso, alguns países obtiveram vitórias nas eleições, isto é, beneficiaram-se da proliferação dos partidos políticos de oposição e da incapacidade destes em se unirem para derrotar os partidos no poder nas urnas.

Um partido que foi forçado a democratizar-se rodeado por altos índices de descontentamento, dificilmente é um paradigma de bom comportamento. Ainda em se tratando de partidos que se acostumaram a resolver seus conflitos pela via da violência. Lamentavelmente, o continente africano está cheio desses exemplos. O Ocidente está ciente do problema, mas fecha os olhos e nos momentos de crise detém-se nas declarações de princípios e custa-lhe buscar as causas do fracasso das experiências democráticas.

As causas da crise político-africana foram imensas. Começando pela forma como os partidos conduziram a luta pela independência nacional, passando pelo tipo de regime que se queria seguir à independência e, recentemente, na forma como a democracia representativa foi introduzida e, principalmente, no modo como o continente tem sido governado.

O continente africano é um dos protótipos de países que foram incapazes de gerir corretamente os desafios do desenvolvimento tornando-se sinônimo de incompetência, corrupção, miséria e outras mazelas que fazem da África um continente condenado, para a vergonha dos seus mártires e deleite daqueles que pensam que os africanos são incapazes de caminhar pelas próprias pernas.

Embora o continente seja basicamente de analfabetos, os esforços empreendidos nos primeiros anos da independência eram para a melhoria cultural (no sentido lato do termo) da sua população e tiveram alguns resultados positivos. O que significa que existe uma parcela de intelectuais no continente, constituída essencialmente por jovens recém-formados (tal como é o continente). Esses jovens, na sua maior parte de origem camponesa, são confrontados com o debate sociológico, incluindo aspectos políticos e culturais. Vale lembrar que não nos mereceram toda atenção as manifestações de afirmação étnicas que entram em contradição com o nacionalismo nascente. O conjunto desta realidade obriga o jovem ou o intelectual africano, em geral, a um posicionamento difícil entre os seus interesses de afirmação pessoal ou defesa da construção nacional.

Se indagarmos onde está a incompatibilidade, podemos dizer que, na maior parte dos casos, a afirmação pessoal passa pela utilização dos recursos que a classe política facilita e que são, neste caso, quase sempre incompatíveis com o modelo de nação preconizado pelos movimentos de libertação nacional. Estes obrigam à utilização dos conhecimentos de uma forma diferente, mais modesta e mais utilitária, o que nem sempre é sinônimo de criatividade. Não restam dúvidas de que o papel que o intelectual é chamado a assumir em países como Angola, Cabo Verde, Guiné-Bissau, Moçambique e São Tomé e Príncipe seja fundamental na procura da identidade nacional. O intelectual é um ator privilegiado do processo porque através da sua ação pode influenciar os comportamentos sociais da esfera ativa.

Entretanto, a falta ainda de delineamento do espaço sócio-político desses países faz com que se imprimem visões pessimistas e assustadoras sobre sua governabilidade. Essa situação está relacionada à crise dos Estados e sua recente transição para a democracia parlamentar. Neste caso, o primeiro parâmetro a ser analisado parece ser o da estrutura do Estado. Para isso, há que apontar quatro questões: a) a aplicabilidade do conceito da democracia; b) a erosão do papel do Estado; c) o contexto internacional e o debate sobre o nacionalismo; d) a capacidade de construir um modelo de desenvolvimento alternativo.

O debate vigente sobre a governabilidade nos PALOPs é uma manifestação não só da crise do Estado, mas também da crise do conceito da democracia e desenvolvimento. A constante pressão exercida pela comunidade internacional em relação aos direitos humanos e o sistema de partido único coincidiram, a partir da década de 80, com a evolução de insuportáveis contradições internas resultantes da aplicação de programas econômicos que se tornaram visivelmente desastrosos para a grande maioria dos cidadãos desses países. Para fazer uma análise holística do problema, levar-me-ia a concluir que a luta externa (contra as pressões da população), da mesma forma que ocorreu durante a luta pela libertação, em que o objetivo de conquistar a independência uniu vários grupos étnicos de interesse no país, nesta segunda transição, também deveria ocorrer uma união de forças.

No meu modo de ver, os que estavam no meio tiveram o papel fundamental de interpretar o que deveria ou poderia ser feito para salvar a situação, e nenhuma outra solução estava aberta a eles, com a exceção de embarcar numa transformação política capaz de reconhecer a realidade dos anos 90, como sempre ocorre na construção de modelos e conceitos, desta vez, sobretudo jurídicos, porém com fortes implicações políticas e econômicas. Assim, temos a sorte de sermos capazes de observar que eleições foram realizadas, que separações de poderes legislativo e executivo ocorreram, que autarquias foram criadas e/ou estão em vias de serem criadas, que facções parlamentares e outros grupos representativos foram formados, à imagem do que há nas democracias liberais, comumente referidas como países ocidentais. Ainda parecemos ter sorte quando vemos que a nova Constituição está servindo como uma tela de fundo para a solução de conflitos institucionais nesses países.

Sem nos envolvermos em polêmica sobre os méritos e deméritos que esses processos inegavelmente possuem, é mais importante chamar a atenção para a necessidade de rever a experiência de transição democrática nesses países. Então, não seria difícil reconhecer, sob o manto do modelo liberal-democrático, as pressões que diferem em natureza, dependendo dos países e dos interesses envolvidos. Assim, a Guiné-Bissau é diferente de Cabo Verde, Angola de Moçambique e assim vai. A explicação para essa diferença consiste na opinião de muitos, no modo em que ocorram as pressões internacionais muito mais do que na identidade das forças políticas envolvidas. Neste contexto, Angola parece oferecer o mais óbvio exemplo de intervencionismo excessivo, que tende a ser maior quanto mais rico é o país, mas, acima de tudo, quanto mais desorganizadas são suas forças internas em termos de construção de seus próprios modelos.

As características principais das democracias ocidentais, alternâncias e legitimação de representação estão sendo seriamente questionadas como resultados de experiência histórica. Conquanto haja exceções, a tendência predominante inclina-se pela diminuição das distinções entre os modelos econômicos propostos pelas várias escolas de pensamento nos países ocidentais e em direção a um crescente declínio no número de eleitores que votam em cada eleição, menos em países como Estados Unidos, Japão, ou Suíça, e diminuindo em quase todos os outros países.

Essa usurpação de representatividade política tem conseqüências extremamente sérias. Permite aos eleitores legislar à exclusão de outros, e eles estão mostrando uma crescente falta de moderação em fazê-lo. No caso específico da Guiné-Bissau, claramente a situação ainda está longe de atingir tais proporções. Mas a importância da democracia, conseqüentemente, parece repousar nas eleições e não no resto do modelo liberal, o qual é limitado, embora não entendido, situação que para alguns pode parecer paradoxal. Uma explicação lógica para as limitações do modelo é intrinsecamente encontrada na erosão do Estado. Não porque o fenômeno esteja confinado à Guiné-Bissau ou à África em geral, mas a situação está assumindo contornos perturbadores naquele país. Os princípios básicos da autoridade do Estado mostram uma forte dependência internacional. No que tange às receitas do Estado, o FMI (Fundo Monetário Internacional) e o Banco Mundial estão ditando políticas fiscais na Guiné-Bissau. Isto porque o fim da Guerra Fria e do modelo soviético teve um impacto considerável sobre os países africanos de língua portuguesa em razão da proximidade histórica de regimes associados ao modelo de democracias populares.


Lourenço Ocuni Cá é doutor em Educação pela Universidade Estadual de Campinas.


 

Versão para impressão

Anterior Proxima

Atualizado em 10/07/2005

http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

© 2004
SBPC/Labjor
Brasil