Energia social mundial
Antonio Martins
Por que o Fórum
Social Mundial continua atraindo multidões e despertando sonhos,
num tempo em que parte da esquerda parece tragada pelo desânimo e
mesmice?
Assim como liquidam
ilusões, os fatos destróem desdéns. Durante muito
tempo, boa parte da esquerda tradicional viu no Fórum Social
Mundial (FSM) pouco mais que uma feira ideológica – vibrante,
porém caótica e, em todo caso, incapaz de inspirar
grandes processos de transformação social. Segundo esta
concepção, os grandes espaços para a
construção de alternativas seguiam sendo os partidos
políticos. O sucesso extraordinário do III FSM, em 2003
(quando o número de participantes chegou a 110 mil, o dobro do
ano anterior), deveria ser creditado à expectativa de um grande
movimento de mudanças no Brasil, despertada, meses antes, pela
eleição de Lula.
Esta
avaliação ruiu diante do V FSM. Realizado entre 27 e 31
de janeiro, ele coincidiu com o desencanto em relação ao
novo governo. Multiplicam-se, entre a esquerda, os debates sobre a
relação a adotar diante do Palácio do Planalto.
Mas já não se espera que o PT e os demais partidos que
coabitam o governo questionem, por exemplo, a submissão do
Brasil aos mercados financeiros – ou substituam as
relações fisiológicas com o Congresso por um novo
apelo à mobilização da sociedade. A
presença de Lula no Fórum foi um sinal da
frustração. Ao invés do Anfiteatro do Por do Sol,
onde100 mil pessoas disputaram o privilégio de ouvir seu
discurso em 2003, ele se limitou ao ginásio do Gigantinho.
Lá, um público ao menos cinco vezes menor o recebeu, sem
entusiasmo. Parte dos ouvintes o vaiou. Para abafar os apupos,
mobilizou-se uma claque. Nada disso abalou o Fórum.
Um mar de gente ainda
maior (estimam-se 180 mil pessoas) deslocou-se para Porto Alegre.
Embora a presença internacional tenha se acentuado, a
participação brasileira foi, mais uma vez,
majoritária. Pelo menos 60% dos participantes tinha menos de 25
anos, num desmentido às hipóteses que sugerem uma nova
geração desencantada com a política. Mais
importante que os números foi uma novidade estratégica:
mais que todas as edições anteriores, o V FSM voltou-se
claramente para a definição de propostas e
ações comuns. Dele saíram chamados para
mobilizações internacionais¹. Nele,
construíram-se plataformas de movimentos importantes². O
princípio segundo o qual o Fórum não escolhe temas
prioritários, nem adota declarações finais foi
mantido à risca. Mas emergiu a sensação de que o
encontro virou uma página e inaugurou uma nova etapa, que pode
transformá-lo num gerador de múltiplas iniciativas por um
mundo novo. A renovação foi provocada por duas
decisões principais, adotadas durante a preparação
do V FSM.
A primeira saltou aos olhos, em
Porto Alegre. O evento deixou a PUC, onde esteve abrigado nas três primeiras
edições, para se esparramar por uma faixa de 6 quilômetros,
às margens do Rio Guaíba (onde permaneceu o Acampamento da Juventude).
Os debates foram realizados em mais de 200 tendas, de diversos tamanhos, construídas
e equipadas especialmente para o encontro. Este Território Social Mundial
foi composto de onze Espaços³, um para cada conjunto de temas
tratado no Fórum. Redes de Economia Solidária cuidaram do abastecimento
(substituindo a própria Coca-Cola...) e se adotaram práticas
de proteção ambiental avançadas (como “lixo-zero”
e redução do uso de descartáveis). Todos os computadores
usaram sistema Linux e software livre.
Embora menos
visível, a segunda novidade foi mais profunda. O grande encontro
mundial das alternativas teve, este ano, outra metodologia. Ela
preserva duas marcas registradas do encontro: a diversidade e o
caráter horizontal, não-dirigista. Mas acrescentou algo
novo. Em resposta a um cenário em que os riscos de
barbárie e devastação parecem cada vez mais
graves, o FSM buscou, como nunca, as ações comuns.
Pluralismo ou
convergências: tensão insuperável?
Como conciliar a
valorização de todas as causas, todas
as lutas, todas as identidades – um dos grandes encantos do
Fórum – com a necessidade de definir certas urgências
– algo cada vez mais necessário para que o encontro não
se resuma a uma feira de boas vontades? Solucionar este enigma
foi, desde o lançamento do FSM, um dos maiores desafios
intelectuais de seus organizadores. De uma resposta adequada dependem,
talvez, as próprias chances de o evento se consolidar como
referência de um novo projeto de transformação
social.
Seus participantes
deliciam-se, a cada ano, com o fato de viverem num ambiente em que a
crítica ao capitalismo assume também uma dimensão
comportamental. Ao contrário do que ocorre em outros palcos da
esquerda, não há votações em que diversos
blocos se engalfinham pelo privilégio de serem donos da
posição mais “correta”. Por outro lado, é
impossível evitar, ao final de cada Fórum, uma pergunta
incômoda: quais os caminhos para que os quatro dias dessa festa
de solidariedade não sejam apenas um sonho, do qual acordamos
para um ano de injustiças e asperezas?
A partir de outubro de
2003, duas comissões de trabalho do Conselho Internacional do
FSM – as de Metodologia e Temas – dedicaram-se à busca de um
solução que permitisse articular pluralismo com
possibilidade de convergências. A alternativa foi
construída ao longo de encontros realizados em quatro
países. Os documentos do Fórum usaram, para resumi-la,
uma palavra quase empolada: “aglutinação”. Mas o
princípio por trás dela tem a simplicidade de um ovo de
Colombo.
As
“aglutinações” e seu limite
Partiu-se de uma aposta:
os participantes do FSM vão a ele porque têm vontade real
de construir propostas e iniciativas conjuntas; ninguém se
desloca milhares de quilômetros apenas para reafirmar seus
próprios pontos de vista e se fechar em sua identidade.
Abriram-se canais para diálogo. Em abril de 2004, as milhares de
organizações que freqüentaram os Fóruns
anteriores foram convidadas a manifestar, em pesquisa, que debates
pretendiam promover em Porto Alegre, e que temas julgavam prementes
para mudar a sociedade.
A partir de setembro,
quando se abriram as inscrições para oficinas e
seminários, criou-se um sistema eficiente de
comunicação via internet. Cada pessoa ou
organização ligada ao Fórum teve, pela primeira
vez, condições de verificar quais as atividades já
registradas; de pesquisá-las por palavra-chave; de encontrar
nome, endereço eletrônico e telefone dos organizadores.
Estimulou-se ao máximo o esforço para trocar
seminários e oficinas promovidos por uma única
organização por outros, em que se estabelecessem o
intercâmbio de pontos de vista e a possibilidade de gestar novas
alianças e lutas.
Fixou-se um limite: a
aglutinação jamais deveria tornar-se impositiva ou
centralizadora. Ninguém teve poderes para determinar a alguma
organização que abrisse mão de uma atividade, ou
se juntasse a outra. Todas as adesões foram voluntárias.
Mais pontuais,
muito mais densos e profundos
Alguns resultados
práticos apareceram cedo. A programação completa
das atividades apareceu, no site institucional do Fórum Social
Mundial, uma semana antes da abertura do evento. Foi uma
revolução, no mundo trepidante do FSM. Nos melhores
casos, entre as edições anteriores, os participantes
tomaram conhecimento do programa apenas na véspera do
início dos debates. Já houve atrasos-escândalos: em
2003 (Porto Alegre) e 2004 (Mumbai), o caderno de eventos ficou pronto depois
de abertos os trabalhos...
Muito mais relevante foi
a mudança na qualidade da programação. O
número de atividades protagonizadas por uma única
organização sofreu um declínio dramático,
em relação a 2003. O novo, agora, foram
criações coletivas, nas quais gente de muitos
países trocou idéias e desencadeou projetos que podem se
estender muito além do próprio Fórum Social
Mundial.
Por abundância de
opções, ficou muito difícil escolher o que fazer
em Porto Alegre. Moedas alternativas? Bastava dirigir-se ao
Espaço 6: houve debates todos os dias, exposições
teóricas, relato de experiências, uso experimental de txais,
em lugar de reais. Saídas contra o poder do Império?
No Espaço 9, multiplicaram-se as jornadas de protesto propostas
pelas campanhas pela paz; no 11, as visões sobre uma ONU
reformada e democratizada, que possa ser apoiada como alternativa a
Washington. Água, direito humano? O local era o
Espaço 1, dedicado aos Bens Comuns da Terra e da Humanidade.
Durante quatro dias, houve mais de vinte encontros sobre o tema. No
início e ao final, os que os promovem debatem a possibilidade de
uma estratégia comum.
Nossa aposta,
nossas surpresas
Como se não
bastassem todas estas chances de somar forças, o Fórum
Social Mundial foi generoso com quem não as tinha aproveitado
nos meses anteriores. Durante os quatro dias de debates do encontro,
esteve aberto um período extra-programa (das 7 às 9 da
noite), que pôde ser empregado para encontros entre quem
descobriu, durante o próprio FSM, novas afinidades.
Num tempo em que tantos
governos de esquerda parecem integrados à mesmice do pensamento
único, e em que a alternativa dos partidos já não
empolga tanto, o FSM poderia ser uma nova referência de utopia?
Continuarão a se abraçar, nesses encontros anuais, os que
lembram a necessidade das grandes mudanças de cenário, e
os que procuram desde já as brechas para construir um mundo
novo? É mais uma aposta, talvez outra esperança.
Não será possível avaliar suas chances sem
examinar, com cuidado, as boas surpresas do FSM 2005.
Antonio Martins
é jornalista, membro do Attac-Brasil e do Conselho Internacional
do Fórum Social Mundial. É também editor do site www.planetaportoalegre.net.
¹ - Entre muitas
outras, destacam-se uma jornada internacional contra a guerra, em 18 e
19 de março, que deverá resultar em
manifestações em diversos países; e uma marcha
mundial contra o Império e pela Liberdade, em 10 de setembro, um
dia antes do 5º aniversário do atentado contra as Torres
Gêmeas.
² - Alguns exemplos: a articulação internacional das
campanhas pelo direito à Água; a Assembléia dos
Povos Credores, formada em torno do cancelamento da dívida
externa do Sul; a rede Outro Sistema Financeiro, que se propõem
a lutar por uma nova ordem monetária e financeira internacional.
³ - Os onze espaços do FSM
2005 foram:
1. Afirmando e defendendo
os bens comuns da terra e dos povos, como alternativa
à mercantilizaçao e ao controle das transacionais.
2. Artes e
criação: construindo as culturas de
resistências dos povos.
3. Comunicação:
prática contra-hegemônicas, direitos e alternativas.
4. Defendendo as diversidades,
a pluralidade e as identidades.
5. Direitos
humanos e dignidade para um mundo justo e igualitário.
6. Economias
soberanas por e para os povos: contra o capitalismo neoliberal.
7. Ética,
cosmovisão e espiritualidades: Resistências e
desafios para um mundo novo
8. Lutas sociais
e alternativas democráticas: ontra a
dominação neoliberal
9. Paz,
desmilitarização e luta contra a guerra, o
“livre” comércio e a dívida
10. Pensamento
próprio, reapropriação e
socialização dos saberes, conhecimentos e
tecnologias
11. Rumo à
construção de uma ordem democrática
internacional e a integração dos povos