Eleição
Eletrônica com ou sem auditoria?
Amilcar Brunazo
Filho *
Pedro Antonio Dourado de Rezende **
Aproxima-se o
referendo de 2005 no Brasil, sobre a venda de armas de fogo, quando
serão utilizadas, mais uma vez, urnas eletrônicas que
não permitem auditoria da apuração
eletrônica dos votos. A lisura do resultado desse referendo pode
não interessar a todos, mas levanta, novamente, a questão
das salvaguardas em processos eleitorais. A fiscalização
de eleições governamentais processadas eletronicamente
tem sido mundialmente debatida no meio acadêmico, no Brasil desde
a adoção das urnas eletrônicas, em 1996, e mesmo
antes, a partir do caso proConsult, em 1982.
A questão
central do debate gira em torno da auditabilidade desses processos.
Mais precisamente, da pertinência ou da necessidade, ou
não, de se reter uma representação material de
cada voto no sistema, para fins de fiscalização
através de recontagem manual. Nos EUA, onde a
implementação do processo eleitoral é definida por
lei estadual, o debate teve início no final dos anos 1980,
ganhando impulso e manchetes na mídia depois do “Fiasco da
Flórida”, em 2000. No Brasil, só ganhou
atenção equivalente durante dois breves períodos:
na estréia de computadores em processo apuratório, no Rio
de Janeiro em 1982, e em 2001, em conseqüência do
escândalo do painel do Senado.
Nos EUA e na
Europa, diferentemente do Brasil, participam hoje do debate muitos
técnicos em informática e em segurança na
informática, além de alguns especialistas em ergonomia e
acessibilidade que, na sua maioria, são favoráveis
à obrigatoriedade das máquinas eletrônicas de
votação imprimirem cada voto, para conferência
visual sem interferência manual do eleitor. O objetivo de tal
medida é não só possibilitar eventuais recontagens
da apuração eletrônica mas, principalmente, reter o
lastro de convencimento da lisura de pleitos na experiência e
participação individual do votante, espírito mesmo
do processo democrático, quer na democracia grega, quer na
moderna.
Também
participam oficiais de justiça e empregados de cartórios
eleitorais, organizadores e executores de processos eleitorais que, por
sua vez, em grande maioria são contra tal medida, devido ao
trabalho extra que isso lhes causa. Mas certamente também,
embora raramente admitido em público, pelo fato de eventuais
discrepâncias entre a apuração eletrônica e
auditorias manuais exporem, ao leque de suspeições de
causa, eventual inépcia ou má fé no desempenho de
suas funções.
O
quebra-cabeças da segurança eleitoral
Muitos
especialistas em tecnologias da informação, dentre eles
ícones vivos da ciência da computação como
Ronald Rivest (inventor do método RSA de assinatura digital),
David Chaum (inventor do “dinheiro digital”) e Bruce
Schneier (criptógrafo e autor dos maiores best-sellers sobre
segurança computacional), defendem a retenção
material do voto em sistemas eleitorais eletrônicos, devido aos
recursos científicos e técnicos disponíveis, ou
possíveis à segurança computacional, serem
insuficientes para oferecer, em grau condizente com o espírito
da democracia, confiabilidade do resultado de eleições
com voto secreto processadas e apuradas apenas eletronicamente.
Todos esses
eminentes cientistas já publicaram artigos seminais onde
explicam porque é mais fácil, por exemplo, proteger
transações financeiras contra fraudes eletrônicas
do que apurar votação secreta e puramente
eletrônica com a mesma segurança. Segurança, aqui,
entendida em seu legítimo e implícito
-
primeiro
sentido, o da segurança de eleitores
a) com direito a voto e à lisura do pleito,
b) contra eventuais manipulações indevidas do
processo,
c) de quaisquer origens ou formas de penetração
no sistema,
d) através do qual tais manipulações
sejam detectáveis por fiscalização;
e não num ilegítimo
- segundo
sentido, o da segurança de organizadores ou executores
do processo
a) com direito de acesso ao sistema para programá-lo,
controlá-lo ou operá-lo,
b) contra eventuais detecções por
fiscalização,
c) de quaisquer deslizes por inépcia ou má
fé,
d) através dos quais se configure risco à
lisura do pleito.
A arriscada corrida pela modernidade
A dificuldade apontada por esses eminentes cientistas,
relativa à segurança – no primeiro sentido acima
– de processos eleitorais, tem origem na incongruência,
adiante explicada, entre dois requisitos operando nas
condições do mundo da vida. Os requisitos são o de
sigilo e o de desmaterialização do voto, operando num
contexto que encena pelo menos três interesses potencialmente
conflitantes: os de pelo menos duas candidaturas e os de eleitores que
acreditam na democracia através de eleições limpas
ou que assim a desejam (este último comungado pelo autor). Tal
incongruência torna inseparáveis esses dois sentidos de
segurança, donde o perigo, já que o primeiro,
legítimo, só será eficaz se conjugar-se à negação
do segundo, ilegítimo. Ou seja, a garantia de lisura do pleito
somente ocorrerá se o eleitor estiver, também, protegido contra
a ocorrência de fraudes de origem interna e, portanto,
somente se qualquer organizador ou executor do processo porventura a favor
da ocorrência de fraudes ao seu alcance estiver, para
alcançá-la, desprotegido.
Em processos com mais de dois interesses em jogo, como o
eleitoral, conflitos de interesses representam risco de conluio.
Conluio é uma ação conchavada entre dois ou mais
interesses, opostos ou não, para induzir outro ou outros
interesses a confundi-los, em benefício deles. No caso, a
confusão serve inclusive para ocultar, com obscurantismo,
motivos para a escolha das condições sob as quais os dois
sentidos de segurança acima, legítimo e ilegítimo,
se tornam mutuamente canceláveis e parecidos. Daí ao
prato cheio do conluio é um pulo: a camuflagem do segundo para
se passar pelo primeiro. Por isso, a segurança dos
legítimos interesses em jogo não pode, sob o risco de
conluio, ser buscada em sigilo de mecanismos ou controle unilateral do
processo. A proteção contra o risco de conluio, ao
contrário, só é possível com adequado
equilíbrio entre transparência do processo e
distribuição de controles. E entre interesses
legítimos e potencialmente conflitantes, através de
medidas regulatórias que se harmonizem e se integrem para
constituir um (sub)processo fiscalizatório eficaz.
Esse risco, conforme nos ensinam nossos livros de
história, contaminava o processo eleitoral na República
Velha. Na República Velha o conluio envolvia a
organização do processo e duas canditaturas, que
ocultavam o prévio conchavo do resultado a ser divulgado, e que
a cada eleição alternava no poder os respectivos partidos
políticos, independentemente da votação.
Chamava-se "política café-com-leite". O povo brasileiro
levou décadas para disso aquilatar conseqüências
nefastas, mora que nos levou à Revolução de 30,
pelo aperfeiçoamento democrático. Duas
interrupções do regime depois, agora sob o
fascínio das tecnologias da informação, vendidas
como panacéia para mazelas humanas, as lições da
República Velha parecem esquecidas. Essas tecnologias
maravilhosas e seus sistemas desmaterizadores, capazes de capitalizar a
imaterialidade no voto em agilidade na apuração,
estão nos sendo vendidas, a preço mui caro, como
irrefreável modernidade e moderna proteção contra
antigas formas de fraude. Como se isso constituisse, por si só,
um bem em si.
Duas faces de uma mesma moeda... que não gira
Em eleições por voto secreto, nas
quais o nome do autor não pode ser associado ao voto na
votação ou apuração, a eficácia do
processo fiscalizatório se faz, por isso, sensível ao
suporte que registra materialmente cada voto. Em
conseqüência, se o processo de votação
eletrônica desmaterializar o voto, registrando-o – ou suas
somas parciais – apenas digitalmente, a eficácia de
qualquer processo fiscalizatório será tolhida. Tolhida no
sentido de que qualquer medida para detectar ou impedir fraudes de
origem interna (conluio entre um organizador e alguma candidatura)
servirá, também, para proteger fraudadores externos,
fiscais de candidatura empenhados em sabotar (anular uma
eleição perdida) ou subverter a
fiscalização (contaminar o sistema com mecanismo de
fraude). Enquanto qualquer medida para detectar ou impedir fraudes na
fiscalização protegerá, também, fraudadores
de origem interna, com privilégios de acesso para programar,
controlar ou operar o sistema. É a incongruente luta entre
espiões e contra-espiões, que liga sentidos de
segurança legítimos e ilegítimos.
Quem, como cidadão, não se importa com o risco
da legítima segurança ser, sob qualquer pretexto,
cavalgada pela ilegítima, não dá valor ou, no
fundo, não aceita a democracia. E quem, como cientista, quiser
estudar seus mecanismos, deve separar tal conhecimento e crença
dos problemas e limites inerentes aos mecanismos. Foi assim que o
estudo científico desses limites atingiu um marco importante,
com a tese
de doutorado em ciência da computação da
Dra. Rebecca Mercury, defendida na Universidade da Pensilvânia em
2000. Ela demonstra que a inviolabilidade do sigilo do voto e a
garantia de correta apuração – garantia que nega o
segundo sentido acima – são propriedades excludentes em
sistemas puramente eletrônicos. Ou seja, não há
como proteger, em qualquer eleição processada e apurada
apenas eletronicamente, o sigilo do voto e a corretude da
apuração, pois, nela, tais proteções
são como faces opostas duma mesma moeda. Moeda que corresponde
ao sistema eletrônico puro, e cujo valor corresponde ao do
processo eleitoral que o sistema executa, mas moeda que não se
pode "girar" durante uma eleição, para se ver seus dois
lados, pois o processo é executado sem possibilidade de
auditoria.
O peso desses argumentos científicos passou a se
refletir, sob pressão de movimentos civis,
fortalecidos por duvidosa ética de fornecedores de sistemas
eletrônicos puros, na legislação eleitoral
norte-americana. Entre março de 2004 e maio de 2005, 14 estados
federados aprovaram leis que obrigam máquinas eletrônicas
de votação a emitirem voto impresso conferível
pelo eleitor, para manter ou recuperar a auditabiliade que o processo
eleitoral tinha antes dos computadores. Moeda, afinal, precisa ter
lastro. Hoje, 19 estados já têm leis assim aprovadas, 3 as
têm aguardando sanção, 17 têm projetos em
tramitação, e apenas 12 ainda não vêem
problemas com máquinas do tipo que o Brasil hoje utiliza.
Já no Congresso Nacional, tramitam hoje quase uma dezena de
projetos exigindo o voto impresso conferível pelo eleitor como
princípio federativo de organização
democrática nos EUA. A idéia não é a de
pretender, ingenuamente, acabar com fraudes, mas a de tornar suas
possíveis formas difíceis, onerosas e arriscadas em igual
medida, expondo-as ao risco de serem comprovadas em tempo hábil
e por eleitores comuns, até por quem não tem
título de PhD em ciência da computação
registrado no CNPq.
O caminho do voto eletrônico no Brasil
No Brasil, a implantação do voto
eletrônico tem seguido outros caminhos. A transparência do
processo eleitoral, a de sua organização, a do processo
de formação de suas leis e regulamentos, e a
participação da sociedade civil nestes, têm deixado
a desejar. Em boa parte devido à nossa peculiar
organização jurídica, ao que se sabe única
no mundo das democracias republicanas, que acumula
funções de regulamentação,
execução e judicação, cujos poderes uma
república deveria separar, as do processo eleitoral numa
só instituição – a Justiça Eleitoral
–, encabeçada pelo TSE. Mesmo diante das mesmas
dúvidas sobre a ética dos mesmos fornecedores de sistemas
eletrônicos puros.
A Lei 9.100 de 1995, que permitiu o uso do voto
eletrônico, e a Lei 10.740 de 2003, que acabou com o voto
impresso conferível pelo eleitor, foram elaboradas dentro do
TSE. Foram aprovadas, sempre sob pressão de algum de seus
ministros, no Congresso Nacional com participação
significativa de parlamentares enredados em litígios na
Justiça Eleitoral, e sancionadas com menos de 6 meses de
tramitação, sem que fossem permitidas uma única
audiência pública ou emenda. Na elaboração,
aprovação e sanção destas leis, toda
contribuição ao debate oferecido pela comunidade
acadêmica foi desprezada, inclusive:
- Manifesto de professores universitários,
hoje com mais de 1700
assinaturas, alertando parlamentares e a sociedade para os riscos
de sistemas eleitorais eletrônicos que não permitem
auditoria no processo de apuração, e solicitando que os
debates para legalizá-los incluam audiências
públicas;
- Relatórios da Sociedade Brasileira de
Computação (SBC) e da Fundação Coppetec da
UFRJ, com avaliações bastante críticas do sistema
em uso, um deles – o da SBC – recomendando a
impressão de cada voto para conferência visual sem
interferência manual do eleitor, para tornar auditável o
processo de apuração;
- Perícia técnica de Santo
Estevão, Bahia, constante do processo TRE-BA 405/2000.
Reducionismo
Tais documentos indicam graves falhas de segurança (no
primeiro sentido) que, posteriormente, puderam ser comprovadas quando
uma parte do software utilizado em urnas na eleição de
2000 vazou na internet e foi, então, analisada por um dos autores, sendo depois
identificada com o software analisado pela perícia de Santo
Estêvão. A análise e identificação
desta, justamente a parte que controla a segurança lógica
da urna (setup), revelou quão ridículo era o processo fiscalizatório,
sem, contudo, despertar interesse na opinião pública. Tal
comprovação só foi possível com uma quebra
momentânea do obscurantismo que cerca o sistema eleitoral
brasileiro, ainda que muitos confundam esse obscurantismo com
segurança, e essa quebra com violação. Ele serve,
na verdade, apenas para camuflar o segundo sentido de segurança
com a aparência do primeiro.
O último documento, exarado em processo de
impugnação eleitoral no qual litigavam dois partidos de
direita, é de extrema importância pois relata a
única perícia até hoje executada por
técnico independente, sobre uma uma eletrônica usada em
eleições oficiais no Brasil. A perícia de Santo
Estevão revela, dentre outros fatos, a absoluta
ineficácia – no primeiro sentido acima – do sistema
de lacres físicos então utilizado na urna
eletrônica brasileira, conjugada à sua absoluta
eficácia no segundo sentido. Revela, também, como a
linguagem da regulamentação oficial desse sistema de
lacres, e das bravatas oficiais sobre a segurança que
proporciona, pode servir para camuflar o segundo sentido com a
aparência do primeiro. Esse documento é pedra de toque em
quebra-cabeças que busquem revelar como tal aparência
é tecida: de tosco ufanismo, de ignorância coletiva e de
prepotência (ignorância da ignorância) reducionistas.
Alguns se fazem vítima desse reducionismo ao
confundirem sistema eletrônico com processo eleitoral, ou ao
confundirem sigilo do voto com sigilo no processo que coleta e soma
votos (por cargos, seções, unidades) e divulga
resultados. Outros, ao crerem em palpites de que a transparência
atual já é suficiente, até por não saberem
para que serviria mais transparência, ou o que fazer com ela.
Já outros, em palpites de que mais transparência
prejudicaria a segurança, estão em algum sentido vago e
indefinido,
quando não maniqueísta (os hackers da
internet!). Para agravar, há especialistas, de cátedra e de carona, com
ambições turvas e escrúpulos ralos, empenhados em
explorar esse reducionismo, como se urna eleitoral fosse caixinha de
mágico. Daí, a necessidade da quebra desse obscurantismo
para se revelar como, em sistemas puramente eletrônicos de
votação secreta, esses dois sentidos de segurança
– legítimo e ilegítimo – não só
se tornam inseparáveis e mutuamente cancelativos, mas pior,
podem se tornar perigosamente parecidos.
A salvação, segundo a seita do santo
byte
Sistemas esses que, se na Renascença existissem,
teriam maravilhado Maquiavel. Principalmente pela pujança da
seita do santo byte, o novo credo que com eles surge. Surge
ao transformar em dogma palpites circulantes na mídia sobre o
que seja suficiente transparência em sistemas eletrônicos,
para revelar outra e rósea realidade. A seita do santo byte
revela como esse reducionismo, consagrado pelo poder pleno e absoluto
da Justiça Eleitoral, pode "salvar" nossa democracia das mazelas
humanas, através da fé na inseparabilidade daqueles dois
sentidos, alcançada pela ubiquidade eletrônica que nos
permite eliminar de vez o mal que nos atormenta há
milênios (até para veicular a Bíblia!), o
diabólico papel. Fé que protege da tentação
e redime do pecado de conluio quem, no exercício desse poder,
programa, controla ou opera seu sistema eletrônico puro (livre da
danação do papel). Ou mesmo, em sua vertente farisaica,
fé que explica, sob a sofística de argumentos de autoridade,
esses dois sentidos como um só.
Basta ingerir, pelos olhos e ouvidos, a beberagem oferecida
pela grande mídia, no altar do consumo em nossos próprios
lares, e se alcança a visão: seres angelicais
programando, configurando, operando maquinetas,... Dentre os sinais
desta revelação mística, podemos citar:
- A contaminação
dogmática de estudos, pagos e dirigidos pelo TSE, sobre a
segurança do sistema (ex: o caríssimo estudo "da Unicamp", de 2002, à luz da análise
do setup, de 2004);
- O veto à participação
da Dra. Mercury em evento científico sobre
eleições eletrônicas, realizado em 2003 na UFSC sob
patrocínio do TSE, sob o pretexto de que ela nada teria a
contribuir para o "aperfeiçoamento do nosso sistema";
- A recusa sistemática do TSE em
permitir que representantes dos partidos políticos executem
testes livres ou de penetração, conforme
receituário de normas técnicas nacionais e internacionais
para homologação da segurança de sistemas
eletrônicos.
O terceiro sinal, a recusa de testes homologatórios
independentes, legitimados por padrões
técnico-científicos, parece impressionante. Pretende-se
justificado pelo argumento, auto-referente e escapista, de que o
regulamento do sistema eleitoral brasileiro, elaborado pelos
próprios fiscalizados, não os prevê. Os
únicos testes legalmente permitidos são aqueles que a
sapiência insuperável e incorruptível dos
próprios define, e que se limitam à
participação dos fiscais na mera observação
de urnas emitindo relatórios de auto-indulgência. O valor
da nossa moeda eleitoral estaria, assim, lastreada unicamente na
palavra de quem, investido da capacidade legalista daquele poder,
exerce concomitante sacerdócio naquela seita. Por vezes a
palavra do mesmo que declara, após ter chefiado a Justiça
Eleitoral, ter também contrabandeado dispostivos não-votados para
a Constituição Federal, enquanto legislador constituinte.
E que responde, a quem com isso se indigne: azar "dos que assinaram
embaixo" (assinaram em papel!). Quem não se
impressiona, que aguarde os próximos sinais.
Até lá, tais fatos, peripécias ou
heresias que sejam, não despertam “interesse
jornalístico” na grande mídia, já ocupada em
proteger as massas contra o risco da "falta de confiança" no
sistema, em arrebatá-las em tosco ufanismo recitando o mantra do
santo byte: "nossa urna pioneira é segura!". Ou então o
mantra dos fundamentalistas da seita: "a urna é 100% segura,
pois se não fosse, provas de fraude haveriam". Ou então
porque já está ocupada com as peripécias de
publicitários, arapongas e políticos, e em identificar
com cuidado quais desses lhe despertam. Enquanto o debate sobre
segurança eleitoral, sobre as novas formas de fraude que, com
potência mais concentrada e devastadora que as antigas, nascem na
permuta da eficácia fiscalizatória pela agilidade
apuratória e lá se ocultam, vai sendo farisaicamente
silenciado, sob a bênção do quarto poder. Tal
qual a pirataria constitucional. Mesmo assim, as lições
da República Velha, avaliadas na Revolução de 30
com nota em bandeira – a da Paraíba, não
estão esquecidas de todos. Nem o fato de que legitimidade e
legalidade são coisas distintas.
Lições de História
Alguns ainda se preocupam com a História, dentre
outros motivos para evitar a repetição de erros
históricos. E esses, ao voltarem os olhos para o nosso
continente, vêem postura ambígua até mesmo na
Organização dos Estados Americanos (OEA). Do único
país do mundo a já ter adotado urnas eletrônicas
com voto impresso conferível pelo eleitor em todas
seções eleitorais, a OEA exigiu, na última
eleição lá realizada, que o resultado fosse
auditado por recontagem manual dos votos impressos de 1,5% das
seções eleitorais. Tratava-se do referendo que poderia
derrubar o governo Chavez na Venezuela, em agosto de 2004. Para os
demais países latino-americanos, a OEA estimula, e em alguns
casos até intermedia, o uso do sistema eletrônico
brasileiro, que não permite recontagem e auditoria do processo.
Para a pergunta que intitula este artigo, podemos
então arriscar uma resposta. Tomando por base não
só os discursos oficiais e da grande mídia, com seus dois
pesos e duas medidas sobre as maravilhas tecnológicas no
processo democrático, mas também a origem dos
componentes, softwares e contratos utilizados no Brasil, eleição
eletrônica seria:
- com auditoria da apuração, a
melhor alternativa para o povo dos EUA, fundador da democracia moderna,
e para aqueles países da América Latina, fundada no
colonialismo hodierno, cujas democracias o governo norte-americano
esteja explicitamente interessado em tutelar; e
- sem auditoria da apuração, a
alternativa para países onde se convenha que a tutela não
seja explícita.
Como acreditam (talvez sem a tutela) hoje as massas de
manobra no Brasil, as carnes do boi-de-piranha da modernidade
eleitoral, a dar gosto de sangue na boca de abutres, vendilhões
e seus tutores. Restarão ossos duros de roer.
* Amílcar Brunazo Filho, engenheiro, representante
técnico do PSB e PDT junto ao TSE, coordenador do Fórum
do Voto Eletrônico na Internet (www.votoseguro.org)
** Pedro Antônio Dourado de Rezende, matemático, professor
de ciência da computação na Universidade de
Brasília, Coordenador do Programa de Extensão em
Criptografia e Segurança Computacional da UnB, representande da
sociedade civil no Comitê Gestor da Infra-estrutura de Chaves
Públicas brasileira. (www.cic.unb.br/docentes/pedro/sd.htm)
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