Mensalão oficial
Claudio Weber
Abramo
Está em
curso uma tentativa de minimização da crise que se abateu
sobre as instituições brasileiras a partir da
divulgação da gravação de conversas de
natureza criminal entre um funcionário dos Correios e arapongas
movidos por interesses ainda obscuros.
O deputado
Roberto Jefferson, ex-presidente do PTB, partido que seria
beneficiário do esquema de corrupção a que fez
alusão o funcionário em questão, reagiu revelando
a existência de um tal de “mensalão”, esquema
de pagamento de propinas a parlamentares alegadamente inspirado pelo
PT. Também afirmou o sr. Jefferson ter recebido de representante
desse partido dinheiro de Caixa 2 destinado ao financiamento eleitoral
em 2004.
Que o
“mensalão” existe, não há
dúvida. Um dos deputados que inquiriu (o nome escapa, mas era do
PSDB) Jefferson na CPMI [Comissão Parlamentar Mista de
Inquérito] dos Correios afirmou publicamente algo na linha do
“quem de nós não ouviu falar do
mensalão?” (Não foi contestado nem imediatamente
convocado a prestar depoimento na própria CPMI, o que mostra a
frouxidão com que esses procedimentos são conduzidos).
Que o Executivo
usa seu poder de nomeção de pessoas para ocupar cargos
ditos “de confiança” como moeda de troca de apoios
parlamentares e partidários também é sobeja e
abertamente conhecido. São mais de 20 mil desses cargos
só na administração federal.
Que a barganha
por cargos dá-se em torno de diretorias “que furam
poço”, a saber, nas quais se fazem negócios,
também é de conhecimento geral.
Que a
realização de disposições do
orçamento federal (e os estaduais e municipais) é usada
como moeda em troca de apoios parlamentares também não
é segredo para ninguém.
Que os
mecanismos administrativos de prevenção e controle do
desempenho administrativo no Estado brasileiro são débeis
tampouco escapa ao conhecimento geral.
Não
obstante tais conhecimentos e consciências, em vez de perseguirem
essas pistas e dicas, os diversos interlocutores que têm ocupado
o espaço público entregaram-se à discussão
de um tema que tem relação subsidiária com tudo
isso, a reforma política.
De repente,
corrupção virou conseqüência das regras de
financiamento eleitoral vigentes, apresentando-se como
solução o financiamento público exclusivo,
associado à votação em listas partidárias
fechadas. Sem fazer acompanhar a afirmação de qualquer
argumentação plausível, muitos têm afirmado
que a origem da corrupção seria o fato de haver
possibilidade de empresas privadas financiarem candidatos. O
remédio seria, então, proibir o financiamento privado.
Ora, o que se
tem visto no escândalo dos Correios (e em muitos outros,
anteriores e concomitantes) é que parte dos processos de
corrupção são desencadeados para formar Caixa 2 de
partidos políticos. Tal Caixa 2, bem como o Caixa 2 de
candidatos individuais, não é permitido hoje. É
por isso que se trata de Caixa 2. Por que deixaria de existir
amanhã? No que, exatamente, o financiamento público
exclusivo afetaria as motivações por trás da
formação de Caixa 2 partidário? Em absolutamente
nada.
Atualmente, o
financiamento de campanhas deve ser informado à Justiça
Eleitoral. Embora se saiba que parte do financiamento eleitoral
é oculta, a parte não-oculta, legal, é
visível. Essas contribuições, por serem
visíveis, nos dão informação, ainda que
parcial, sobre interesses colocados em jogo em eleições.
É importante saber que nas eleições de 2002 os
interesses agropecuários, por exemplo, financiaram
fundamentalmente o PTB, ou que os bancos concentraram recursos no PSDB
e no PFL, ou que as construtoras distribuíram dinheiro entre
estes dois e mais o PT, o PMDB, o PTB e o PSB, que o presidente da CPI
dos Correios é da “bancada da bola”, tendo recebido
financiamento da Confederação Brasileira de Futebol, ou
que a Construtora Norberto Odebrecht doou quase R$ 6 milhões a
candidatos, dos quais 79% foram eleitos (a [Construtora] OAS financiou
quase R$ 5 milhões, com eficiência de 69%). Etc. etc.
(Estas, bem como outras informações sobre financiamento
eleitoral, são acessíveis no projeto Às Claras, da
Transparência Brasil).
Tornar o
financiamento privado ilegal não acabará com as
doações por baixo do pano e simplesmente tornará
invisível o jogo de interesses em eleições. Chega
a espantar que isso seja apresentado como grande progresso.
O mais
irônico é que o principal argumento em favor do
financiamento público (não necessariamente exclusivo, que
é outra peculiaridade esdrúxula da reforma presentemente
em discussão), a saber, a redução do poder
econômico em eleições, não está sendo
explorado pelos campeões da idéia. Afirma-se apenas que
“o financiamento público atacará a raiz da
corrupção”.
É
mentira. Não é verdade. É evidente que os agentes
da corrupção se aproveitam de todas as vulnerabilidades
que o ambiente apresente, incluindo-se as regras
político-eleitorais. Contudo, a motivação da
corrupção não é intrinsecamente
política, mas econômica. Na corrupção,
agentes do Estado entram em conluio com agentes privados para
beneficiar estes últimos. Esse benefício é
estendido contra o pagamento de uma propina. É muita
ingenuidade, ou muita má-fé, imaginar que uma regra de
financiamento eleitoral eliminará essa motivação.
Não se
combate a corrupção por meio desse tipo de
mistificação. A corrupção é atacada
agredindo-se as suas causas. O caso dos Correios tem mostrado algumas
delas. A principal é a liberdade que têm os governantes
das três esferas de nomear pessoas para ocupar cargos na
estrutura do Estado. No plano federal, esses cargos são mais de
20 mil.
Como tem
à disposição essa imensa quantidade de
nomeações, o chefe do Executivo usa tal discricionaridade
para negociar apoios partidários, conforme o sr. Roberto
Jefferson fez o obséquio de escancarar para a opinião
pública. Mas por que seria do interesse de um partido
político controlar a máquina estatal? Embora, a bem da
prudência, seja conveniente manter aberta a possibilidade de
nesta ou naquela situação particular o interesse
predominante ser cívico, não devem restar dúvidas
de que na maior parte dos casos o interesse fundamental é
argentário. Os partidos querem cargos de direção
nas estatais e na administração direta porque ali podem
conduzir negócios, ou melhor dizendo negociatas. Precisamente a
mesma coisa acontece nos estados e municípios, cujas
administrações são loteadas para amealhar aliados.
O estado de
coisas atual garante aos governantes a manipulação de
mega-mensalões oficiais. É óbvio, assim, que uma
das formas de atacar a corrupção seria promulgar
legislação que reduzisse drasticamente a quantidade de
funções de livre nomeação de que
dispõem os quadros dirigentes dos três poderes. É
inaudito que um deputado federal nomeie vinte pessoas para seu
gabinete, ou que um deputado estadual de São Paulo ou do Rio
Grande do Sul nomeie quinze pessoas. Uma bastaria. Como nomeiam quinze,
deputados estaduais paulistas gastaram em gasolina o equivalente a
três vezes a distância da Terra à Lua, conforme
noticiado recentemente.
Caso o poder de
nomear fosse radicalmente cortado, a razão de ser das
negociações e dos aproveitamentos mais miúdos
deixaria de ocorrer. Não podendo nomear, não haveria o
que negociar. De quebra, isso daria conta do tal do nepotismo.
Não havendo abundância de cargos à
disposição, a parentada teria menos
condições de exercer pressão sobre o prefeito,
parlamentar ou governador, e menos parentes seriam contratados.
O mesmo vale
para a manipulação do orçamento, outra das causas
estruturais da corrupção. Como não é
obrigado a cumprir o orçamento, o governante faz uso da
“liberação” de verbas para achacar deputados
ou vereadores. Isso não apenas corrompe o processo
político como dá lugar a operações
triangulares de corrupção já desde a
introdução de emendas parlamentares aos
orçamentos. Funciona da seguinte maneira: uma empreiteira
(digamos) negocia com um deputado a introdução de emenda
para construção de uma ponte, estrada vicinal, o que
seja. A emenda é aprovada, mas necas de execução.
No âmbito de suas negociações com o Executivo, o
parlamentar obtém promessa de
“liberação”. Ato contínuo, vai ao
prefeito ou governador correspondente e anuncia: “Posso liberar a
verba tal, mas para isso você vai direcionar a
licitação para a empresa Fulana. Minha parte são
10%, adiantados”.
Caso o
orçamento fosse impositivo e não facultativo, não
haveria espaço para nenhuma dessas negociações,
seja aquela entre o Executivo e representantes parlamentares, seja
aquela que provoca o conluio criminoso entre o ente executor municipal
ou estadual e a empresa beneficiada.
Nada disso tem
coisa alguma a ver com financiamento eleitoral. Por que esses dois
temas, ao menos, o das nomeações e o do orçamento,
não estão sendo discutidos? Porque não interessa
aos agentes políticos. É muito mais fácil abanar
quimeras frente à opinião pública, ainda mais
quando tais ilusões são alimentadas por determinadas
parcelas de formadores de opinião, não raro alimentadas
por aqueles que mais se beneficiarão com a iniciativa –
aqueles partidos que reúnem condições de operar
estruturas subterrâneas de financiamento ilegal derivado de
corrupção.
São os
mesmos interesses escusos que desviam a atenção dos
problemas gerenciais que afetam o Estado. Sempre usando o caso dos
Correios como “gancho”, verifica-se que a
prevenção de atos ilícitos é desconhecida
numa estatal desse porte, como também é desconhecida a
noção de auditoria independente. Estarrecido, este autor
aprendeu outro dia que o comando da auditoria interna das estatais e da
administração direta é também determinado
por nomeação política. Ou seja, o partido X nomeia
o diretor da área de tecnologia, de engenharia, de suprimentos
(nunca é a área de plantas ornamentais), e também
nomeia o responsável pela auditoria. Desse jeito não
há organização que resista.
As
vulnerabilidades gerenciais do Estado, que vão se agravando cada
vez mais à medida que se desce na escala federativa, chegando ao
absoluto nos pequenos municípios, são sobejamente
conhecidas por tantos quantos já tenham se aproximado de
qualquer instância do Estado brasileiro. A
corrupção acontece é nessas estruturas gerenciadas
frouxamente. Por que governos sucessivos (não apenas o presente,
é claro) não atacam o problema mais de frente?
Como é
que a imensa descentralização do Estado, que atribui 100%
de autonomia gerencial aos municípios, mesmo que eles não
arrecadem nem um tostão furado, não é acompanhada
de controles centralizados? Esse é um problema constitucional,
mas nem por isso deixa de ser um problema. É evidente que um
município como Campinas, que tem a terceira
arrecadação do estado de São Paulo, não
pode ter status institucional indistinguível de um
município de 2500 habitantes em uma região
miserável, que vive de repasses e caridades federais. Por que
todo município tem Câmara de Vereadores? Isso só
gera mais caçadores de renda, no mais das vezes bandos de
“assessores legislativos” que na verdade são cabos
eleitorais. Em São Bernardo do Campo [SP], por exemplo, os
“assessores” são treze para cada vereador. Outro dia
me informaram sobre um municipiozinho em que os aspones são nada
menos de dezoito por vereador.
Das causas da
corrupção, as mais díficeis de combater são
as que derivam da ineficiência gerencial do Estado. A pobreza
responde por boa parte dessa ineficiência, pois um Estado sem
recursos não tem como melhorar seus mecanismos de
prevenção e controle. Ainda assim, o Estado brasileiro
faz muito menos do que poderia.
Levantar o mapa
de riscos das instituições, definir as medidas
compensatórias para reduzir esses riscos, submeter os processos
decisórios à análise, são medidas que
estão ao alcance do Estado, mas que não têm
oportunidade de prosperar ante a avalanche de proposições
demagógicas de natureza meramente verbal. “Serei
implacável contra a corrupção”, é o
que todos os governantes dizem. Contudo, na hora de ser, não
são, pois não entenderam ou não quiseram entender
a gênese da corrupção. Preferem a festa dos
mensalões oficiais.
O caso dos
Correios deveria servir para estimular alterações
institucionais na direção de um Estado mais eficiente e
menos vulnerável à cobiça dos interesses
organizados, sejam eles partidários, privados ou criminais, que
o tomam de assalto. A probabilidade de isso acontecer é
infelizmente baixa.
Claudio Weber
Abramo é diretor executivo da organização Transparência
Brasil, dedicada ao combate à corrupção no
país.