Os
empresários e a
democracia
Rubens Naves
O senso comum
não
concebe um regime democrático sem a livre iniciativa que, na
esfera econômica se traduz, em boa medida, na própria
atividade empresarial. Mas será que a recíproca é
verdadeira? A democracia é necessária à atividade
empresarial?
Não, reza
a
história. Um exemplo extremado foi a participação
de empresas alemãs na empreitada de Adolf Hitler, embaladas pela
perspectiva de mão-de-obra gratuita e da conquista do mercado
mundial. Da mesma forma, são contundentes as denúncias
que vinculam os interesses das indústrias bélica e
petrolífera norte-americanas à atual invasão do
Iraque. Denúncias estas que indicam, também, um forte elo
dessas mesmas empresas com a corrupção eleitoral na
democracia norte-americana.
Mas não
é
preciso procurar tão longe: a história recente do Brasil
nos mostra quantas empresas se favoreceram durante a ditadura militar.
Isso quer dizer que, do ponto de vista do empresário, tanto faz
a natureza do regime político, desde que seus negócios
prosperem? A tarefa deste artigo é mostrar que as coisas
não são assim. E as conseqüências do
equívoco
são sempre terríveis.
Democracia e
cidadania
O
empresário
é um acumulador de capitais, mas também é um
cidadão que faz parte de um corpo social. E como observou H.
Arendt, a “cidadania é a consciência que o
indivíduo tem do direito a ter direitos”. A ausência
de
democracia marca uma perigosa falta de qualquer tipo de garantia
pessoal ou civil para todos os membros da sociedade.
O pleno
exercício
da cidadania só é possível numa democracia.
Convém ter em mente que nenhuma democracia se estabelece como
“solução pronta”, mas enquanto processo em
constante
aperfeiçoamento. A prática da cidadania está
comprometida com a concretização dos direitos positivados
por meio da cooperação entre indivíduos e grupos.
Essa é uma das regras do “jogo democrático”.
A democracia
está
sintonizada com a emergência de novos sujeitos de direitos, a
ampliação do espaço participativo e a
efetivação dos chamados direitos humanos. Isso significa,
por exemplo, o estabelecimento de novos conceitos, como aconteceu na
Constituição de 1988: o direito a um meio ambiente
saudável, o direito a consumir produtos de qualidade, o direito
a pleitear uma ação civil pública, entre outros
adquiridos pelos brasileiros com o término da ditadura militar.
Na falta de
cidadania,
há um comprometimento do tecido social, do qual todos os membros
da sociedade são vítimas. Os anos de chumbo nos legaram
um Estado opaco, no qual vicejava a corrupção nas mais
variadas instâncias, da descarada compra de votos nos
grotões e nas periferias das cidades, aos mais altos
escalões administrativos. É um equívoco supor que
a corrupção na esfera pública seja hoje mais
freqüente, disseminada ou movimente maior volume de recursos,
entre outras razões por que, na época, a censura garantia
o silêncio dos meios de comunicação. No que diz
respeito à situação econômica, a ditadura
militar nos legou, entre outras heranças, uma pesada
dívida externa que, nos dias de hoje, tem justificado
várias medidas impopulares na condução da economia
nacional.
A
corrupção, os desmandos e a extorsão chegaram a
extremos na vizinha Argentina do período ditatorial, quando
empresários foram seqüestrados e extorquidos pela
polícia política sob a acusação de serem
“comunistas”. Mas não é só na esfera
econômica que o autoritarismo deita seu rastro daninho: o caso da
máfia italiana, desvendado pela Operação
Mãos Limpas, revela as ligações entre os grupos de
extermínio e o crime organizado, o tráfico e a
violência.
A
transparência dos
mecanismos de poder estatal e o respeito aos interesses da coletividade
são a única garantia de paz social. E se o
empresário deve cumprir a lei como todo e qualquer
cidadão, também tem o direito de protestar quando esta
não lhe convém, como qualquer cidadão. Foi o que
aconteceu quando o governo Lula tentou promulgar a Medida
Provisória 232, que aumentaria inúmeras alíquotas
de impostos. Ou no caso também recente, do imposto sobre o lucro
imobiliário, considerado exorbitante e então reformulado.
Reconstruir
a
democracia no Brasil
Elisabeth Jelin,
em
“Cidadania e alteridade: o reconhecimento da pluralidade”,
menciona as
dificuldades envolvidas na efetivação da democracia em
países saídos de regimes autoritários:
“durante os
períodos de transição fica difícil saber de
antemão quais são as tarefas que devem assumir as
distintas agências do Estado, quais as responsabilidades da
cidadania”.
A democracia
só
cria raízes num povo ao longo de uma experiência coletiva
de aprendizagem, que é lenta e muitas vezes turbulenta. O tempo
necessário ao aperfeiçoamento das
instituições varia de acordo com o nível de
compreensão, por parte de uma dada sociedade, do que sejam os
direitos e deveres do cidadão. Um povo subnutrido e analfabeto,
às voltas com todo tipo de precariedade, vítima da
desinformação e da violência policial, à
mercê da compra de votos, tardará mais a usufruir de uma
cidadania plena.
A
Constituição de 1988 estabeleceu um projeto social para
nosso país. No art.3º, prevê a
construção de uma sociedade livre, justa e
solidária; legisla a garantia do desenvolvimento nacional, a
erradicação da pobreza e da marginalização
e a redução das desigualdades sociais e regionais. Ao
Estado competiria implantar esse conjunto de objetivos. Porém,
nenhum mecanismo formal garante a efetividade dos direitos. Tudo
depende do incremento da participação política dos
cidadãos, que ganha corpo no voto “consciente”.
O
aperfeiçoamento
da democracia brasileira enfrenta, entre outros problemas, um sistema
de representação política deformado. No final do
regime militar, o então ministro Golbery traçou uma
estratégia para coibir o avanço das forças
progressistas, concentradas nas regiões do sul e sudeste:
aumentou a representação de estados menos populosos na
Câmara dos Deputados. A união dessas bancadas resulta,
muitas vezes, num corporativismo que dificulta uma
produção legislativa mais afinada com o interesse
nacional. Em parte, daí também deriva uma crise de
governabilidade quase endêmica.
A
“responsabilidade social”
O
exercício da
democracia passa pela participação da sociedade civil
organizada, da qual fazem parte as entidades ligadas ao setor
empresarial. Nos últimos anos, uma facção do
empresariado reagiu aos graves problemas sociais de nosso país e
inaugurou a chamada “responsabilidade social empresarial”.
Na sua
concepção original, a “responsabilidade social
empresarial” não se reduz à filantropia.
Pressupõe
uma nova mentalidade de governança corporativa, que estabelece
valores éticos mais “humanistas” e procura
incorporá-los
aos processos de decisão em toda a cadeia produtiva, da
qualidade do produto à relação com os acionistas.
As empresas
contrataram
deficientes físicos; colaboraram com programas sociais das
comunidades próximas; alfabetizaram funcionários e
adotaram medidas pontuais de combate à poluição. A
nova atitude se afirmou por meio de um discurso eficaz. Os ganhos foram
imediatos: fidelidade a marcas e produtos, valorização
acionária, obtenção de mídia
espontânea, isenções fiscais e maior
motivação dos empregados.
Porém,
tais
ações, mesmo quando trazem resultados aos seus
beneficiários imediatos, não estão à altura
da gravidade dos problemas brasileiros. Mais da metade das
crianças abaixo de 2 anos pertence a famílias muito
pobres; apenas 33% dos adolescentes freqüentam o ensino
médio e cerca de 3,8 milhões de crianças entre 5 e
16 anos trabalham. No que diz respeito ao racismo, basta lembrar que os
afro-descendentes, que são 45% da população
brasileira, constituem 70% dos indigentes.
Os
índices de
desigualdade mostram que a lógica da responsabilidade social
não é, nem poderia ser, a mesma lógica da empresa
obrigada a garantir seu lugar ao sol. A responsabilidade social
está, precisamente, no abandono da visão individualista a
favor do coletivo.
É
compreensível a preocupação da empresa que, ao
criar um projeto social, procura garantir para si maior visibilidade
num mercado sempre competitivo. O resultado, porém, é um
fantástico desperdício de recursos, uma vez que essas
empresas deixam de investir em programas que não priorizam a
valorização da marca, apesar de angariarem excelentes
resultados práticos. Projetos de ONGs que poderiam obter
resultados muito proveitosos, isso se contassem com alguma parceria
financeira e administrativa.
As parcerias se
fazem
mais necessárias no campo da gestão pública, pois
as ações ligadas ao Estado são as únicas
que podem ser aplicadas em âmbito nacional, a longo prazo.
São, portanto, as únicas capazes de gerar impactos fortes
o suficiente para transformar nossa realidade. O Instituto
São Paulo Contra a Violência é um exemplo.
Responsável pela queda da violência no último
qüinqüênio em todo o estado de São Paulo,
angaria
esforços da sociedade civil numa área de
ação antes exclusiva do setor público.
Outro importante
desafio
é impedir a descontinuidade administrativa, no âmbito da
União, dos estados e dos municípios. A cada ciclo
político, projetos são interrompidos, acarretando danos
inestimáveis. A participação das ONGs e do
empresariado nas questões de interesse público tenderia a
estimular a continuidade.
O
combate
à corrupção
De acordo com
relatório apresentado pela ONG Transparência Brasil,
a corrupção e o pagamento de propinas fazem parte do
cotidiano dos empresários. Cerca de 70% das empresas pesquisadas
assumem gastar até 3% do seu faturamento com propinas. Entre
aquelas que já participaram de licitações
públicas, 62% declaram que foram sujeitas a pedidos de propinas
em alguma parte do processo de licitação. Os interessados
podem encontrar mais dados em www.transparencia.org.br.
A
situação
se repete nas eleições, a base do sistema
democrático: mais de 25% dessas empresas foram constrangidas a
contribuir com algum candidato, 50% dos empresários afirmaram
que a doação foi feita mediante a promessa de
favorecimento em caso de eleição do candidato. As
eleições são talvez a face mais grave do problema,
pois é quando a corrupção se infiltra no aparelho
estatal e distorce a representação política pelo
abuso do poder econômico.
Agora, a mesma
pesquisa
indicou que 96% dos entrevistados afirmam acreditar que a
corrupção é um obstáculo para o
desenvolvimento empresarial do Estado. Se é assim, então
porque o empresariado continua bancando financeiramente os corruptos?
Será, como afirmam alguns, que a corrupção
é inerente às regras do capitalismo? Ou, como querem
outros, pode ser sanada, no que diz respeito ao setor público,
pela transparência nas licitações?
Os
empresários
fazem parte da elite do Brasil. E isso não é pouco num
país tão desigual como o nosso. Têm poder para
fortalecer a democracia, desde que levem em conta os interesses
coletivos, de maneira a haver um equilíbrio entre suas
ações empresariais e a responsabilidade social. Como tudo
nas democracias, é uma questão de vontade política.
Rubens Naves
é advogado, professor licenciado da PUC-SP, fundador e
conselheiro da Transparência Brasil e presidente da
Fundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do
Adolescente.