Configurando
a mobilização indígena no Nordeste brasileiro
Vânia
Fialho
O
mês de abril demarca um período do ano que em a temática
indígena subitamente emerge na mídia. As matérias que
circulam falam de perdas, violências, fome — o caso Guarani-kaiowá
está em destaque nesse início de ano — ressaltando o processo
de colonização que parece ter definido de maneira fatalística
o destino dos povos indígenas.
Sem
querer apresentar uma posição alheia a todo esse conjunto de
problemas graves, e com a pretensão de voltar a temáticas das
políticas públicas direcionadas para a população
indígena mais adiante, a proposta desse texto é apontar um caminho
alternativo: apesar de todas as mazelas e impossibilidades, intencionamos
ressaltar a viabilidade, as potencialidades e a capacidade dos povos indígenas,
que vêm assumindo significativa visibilidade no plano nacional.
Num
contexto bastante amplo — o cenário brasileiro, que comporta
cerca de 215 etnias indígenas diferentes — podemos visualizar
processos de contato variados e decorrentes de distintos processos de territorilização.
No transcorrer dos mesmos, é também possível identificar
mecanismos e estratégias de sobrevivência dos indígenas
que, se compreendidos a partir de uma concepção dinâmica
de cultura, se afastam da perspectiva derrotista. Na atualidade,
aqueles que pareciam ser apenas “sobejos” dos povos “autóctones”
pré-colombianos vêm demonstrando sua capacidade construtiva de
mobilização e passam a ocupar um espaço na nossa sociedade
que vai muito além do mês de abril e de alguns capítulos
dos livros didáticos que ainda teimam em tratá-los como elementos
pretéritos da nossa história.
Até
1988, os povos indígenas viveram sob os princípios formais de
uma política integracionista; esta previa a incorporação
lenta e gradual dos indígenas à comunhão nacional. Com
a nova Constituição, estamos diante de um outro contexto que
extrapola a percepção legalista da pluralidade social. O reconhecimento
formal da diversidade étnica e cultural impulsionou a mobilização
de categorias específicas, como a indígena e nos coloca diante
de uma nova realidade.
A
partir dos Artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988,
os indígenas são considerados como atores juridicamente capazes
para entrar em juízo, através de suas organizações,
rompendo com o status a eles atribuído pelo Artigo 6o do Código
Civil de 1916, que os colocava como portadores de capacidade civil relativa,
constituindo uma segunda categoria de cidadãos.
Entre
as últimas décadas de 80 e 90, é possível perceber
uma mudança dos pleitos dos povos indígenas. A década
de 80 foi marcada pela mobilização dos mesmos no sentido de
garantir seus direitos territoriais. Na década seguinte, já
aos auspícios da nova Constituição Federal, as reivindicações
indígenas começaram a ser caracterizadas por demandas mais amplas,
exigindo políticas públicas, que viabilizassem a gestão
e o controle dos seus territórios, a sustentabilidade de suas populações,
além da estrururação de um sistema educacional e de saúde
diferenciados, afeitos às suas especificidades sócio-culturais.
Deste
plano nacional, tentaremos agora nos concentrar na região Nordeste.
Mesmo considerando a situação indígena amazônica
fundamental para que possamos entender as mudanças do contexto indígena
no Brasil nas décadas de 80 e 90 passadas, há necessidade de
se fazer um recorte empírico e analítico, pois o viés
ecológico dos movimentos sociais da década de 90 concentrou
os interesses das políticas e agências ambientalistas e instituições
de fomento na floresta amazônica e nos “povos das florestas”.
Os
grupos indígenas situados no Nordeste brasileiro ficavam quase que
inteiramente de fora da área de interesse das referidas agências;
além disso, o conjunto identitário dos índios nordestinos
não corresponde àquele idealizado pela mídia e presente
no imaginário social baseado em critérios fenotípicos
ou de viés culturalista. Os índios misturados, categoria
que tenta dar conta das peculiaridades dos processos de territorialização
e de afirmação étnica dos indígenas nordestinos,
são contemplados pelas ações de organismos governamentais
e não-governamentais, pela sua direta relação com a pobreza
no meio rural e não pela suas potencialidades organizativas e culturais.
Apesar
do campo se apresentar inóspito ao acolhimento dos indígenas
nordestinos como unidades étnicas diferenciadas, presenciamos também
na década de noventa, uma intensa mobilização desses
grupos que passam a se impor através de estratégias como: a)
realização de uma série de conferências regionais
e estaduais em que são produzidos documentos dando visibilidade aos
indígenas nordestinos, inclusive requerendo para os grupos indígenas
resistentes – como optaram por ser designados aqueles que vivenciam
um processo recente de reconhecimento da sua condição étnica
pela sociedade envolvente – o mesmo status que qualquer outro grupo
indígena brasileiro; b) envolvimento de organizações
indígenas nordestinas, como a Apoinme – Articulação
dos Povos Indígenas do Nordeste, Leste, Minas Gerais e Espírito
Santo – com organizações indígenas de outras regiões
do país; c) constituição de associações
indígenas como reflexo da autonomia concedida pela Constituição
de 1988; e d) empenho na obtenção de recursos para promover
projetos de desenvolvimento nas áreas indígenas.
A
constituição de associações indígenas e
os projetos recentemente vinculados a estas organizações têm
tido um papel importante na conformação das relações
entre índios e não-índios. É através das
possibilidades de diálogo e da articulação para absorver
recursos de variadas fontes que as sociedades indígenas nordestinas
têm conseguido garantir um status que se opõe ao período
anterior a 1988, quando os índios eram classificados de acordo com
o seu “grau de contato” com a sociedade envolvente. O esforço
para alcançar recursos destinados aos projetos de desenvolvimento
está também relacionado à busca de afirmação
das potencialidades econômicas e organizativas, por parte dos indígenas
nordestinos. Mostrando-se capazes de gerenciar recursos e estabelecer prioridades,
os índios defendem a sua capacidade de auto-sustentação
e se colocam presentes no contexto de diálogo com sociedade envolvente
As
ações voltadas para o desenvolvimento de projetos econômicos
locais, aliadas à formalização de associações
indígenas que se proliferaram na década de 90, têm revelado
uma nova forma de condução das políticas no plano das
relações internas de cada sociedade indígena, assim como
também têm apresentado um novo contorno de um campo amplo de
relações que envolvem os mais diversos agentes (Estado –
no âmbito federal, estadual e municipal –, organizações
não-governamentais e agências de fomento). Trata-se, portanto,
de um campo extremamente delicado, ficando difícil a afirmação
de que os desdobramentos dessas novas formas de mobilização
são apenas positivos. Ao coadunarmos dados do processo histórico
experimentado pelos povos indígenas, identificamos que as relações
desses com o Estado e com outras agências de contato foram estabelecidas
a partir de um viés paternalista, assistencialista, que prevê
relações de cooptação e de sujeição.
Estes são aspectos essenciais para se perceber o grau de complexidade
que se apresenta na discussão do caráter pluriétnico
da sociedade brasileira.
Mas
voltando ao nosso recorte inicial, que objetiva ressaltar como a presença
indígena vem se configurando no plano regional/nacional, é importante
salientar ainda outras tensões e contradições que se
apresentam nesse campo. Se, por um lado, vislumbramos o fortalecimento e maior
articulação dos indígenas no Nordeste na busca de alcançar
uma cidadania mais ampla, do outro, percebemos a intolerância da sociedade
brasileira em reconhecer sua própria diversidade.
O
reconhecimento dos povos indígenas no século XXI, é importante
destacar, não deve se restringir à benevolência do aparato
legal em admitir a existência de identidades étnicas diferenciadas,
nem à bondade da sociedade nacional que insiste numa representação
anacrônica de índio como primitivo e em vias de extinção.
Trata-se da consolidação de espaços, por força
da própria mobilização indígena, que assegurem
aos índios sua voz ativa e seu papel de sujeito. As sociedades indígenas
têm sido capazes de se apropriar dessa nova semântica das relações
interculturais e a sua articulação, através das novas
formas de mobilização que se dão no presente, está
sendo capaz de, aos poucos, conduzir à sociedade brasileira a uma atitude
mais reflexiva sobre a sua identidade.
Vânia
Fialho é antropóloga, professora da Universidade de Pernambuco
e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE