Novo
cenário do campo indigenista
Elizabeth
Maria Beserra Coelho
Campo
indigenista, num sentido amplo, refere-se ao conjunto de ações,
políticas e relações que envolvem a sociedade brasileira
e os povos indígenas. Num sentido mais restrito, constituem o campo
indigenista os agentes que atuam junto aos povos indígenas, executando
políticas elaboradas pela sociedade brasileira, para esses povos.
Historicamente,
no Brasil, esse campo se constituía de instituições específicas,
que eram responsabilizadas pelas ações junto aos povos indígenas.
A primeira dessas instituições foi a Igreja Católica
que, no período colonial possuía a função de “civilizar”
os índios através da catequização. Com a expulsão
dos jesuítas, o Estado Português assumiu essa tarefa, executando
uma política específica, expressa no Diretório de pombal¹
, que objetivava a assimilação dos índios à sociedade
nacional e para tanto obrigava o uso do português nas escolas para índios
e proibia o uso das línguas indígenas:
“...
Será um dos principais cuidados dos Diretores, estabelecer nas suas
respectivas povoações o uso da Língua Portuguesa, não
consentindo por modo algum, que os meninos e meninas, que pertencerem às
escolas, e todos aqueles índios que forem capazes de instrução
nesta matéria, usem da Língua própria das suas nações,
ou da chamada geral, mas unicamente da portuguesa”. (Diretório,
art.6, p.3)
Durante
o Império, o interesse assimilacionista se manteve e a política
indigenista executada pela Diretoria Geral dos Índios, repartição
pública exclusiva para este fim, objetivava a integração
dos índios à sociedade nacional. A criação do
Serviço de Proteção ao Índio (SPI), em 1910, não
trouxe alterações significativas ao campo indigenista. O SPI
era o órgão indigenista do país e executava uma política
de proteção aos índios, de caráter integracionista:
proteger os índios até que deixassem de ser índios e
se tornassem brancos.
Com
a criação da Fundação Nacional do Índio,
em 1967, observa-se apenas uma mudança de nome de instituição.
São mantidas as mesmas regras do SPI e, inclusive, muitos dos seus
funcionários. Somente em 1973, com a promulgação da Lei
6001, denominada Estatuto do Índio, aparece no discurso oficial um
viés de respeito à diversidade dos povos indígenas, quando
se coloca que o ensino nas escolas indígenas deverá ser feito
em língua indígena, podendo ser utilizado, também, o
português.
As
políticas indigenistas produzidas na década de 90 têm
sido rotuladas como “novas”. O discurso dessas políticas
tem sido representado como uma ruptura com relação ao que vinha
sendo proposto desde as políticas construídas pela coroa portuguesa,
até anos recentes da república.
A
novidade estaria no deslocamento do discurso de uma perspectiva assimilacionista/integracionista
para uma política de respeito à autodeterminação
dos povos indígenas.
O
marco desse deslocamento estaria nas determinações presentes
na Constituição Federal de 1988, que oficializa o reconhecimento
da diversidade sócio-cultural que caracteriza o Estado brasileiro.
Há também a marca da descentralização, que passa
a conduzir as ações do estado brasileiro, e que vai alterar
o campo indigenista.
Expressões
tais como “específico e diferenciado”, “respeito
às diversidades culturais e às formas próprias de relacionamento
e de produção de conhecimentos”, povoam os textos da nova
legislação indigenista e das políticas que pretendem
efetivá-la.
No
âmbito da educação e da saúde, os deslocamentos
atingiram, também, a esfera administrativa. A educação
e a saúde indigenistas foram transferidas da Funai para o MEC e para
o Ministério da Saúde, respectivamente.
O
que significam esses deslocamentos? Que mudanças podem ser percebidas
nos discursos e nas práticas que se pretendem orientadas por esses
discursos? Como essas mudanças alteram o campo indigenista?
As
mudanças no discurso indigenista foram acompanhadas por deslocamentos
e descentralizações no âmbito da gestão das ações
indigenistas. As novas leis e políticas, a despeito de sua efetividade
plena ou não, têm possibilitado a ocorrência de uma série
de transformações nesse campo, seja no que se refere aos agentes
ou às práticas desenvolvidas.
Tomando
como referência a educação, observa-se que a transferência
das ações de educação da Funai para o MEC, com
os conseqüentes repasses para os governos estaduais e municipais, implicou
na inserção de um conjunto de novos agentes e no acréscimo
de instituições e práticas burocráticas.
Quem
são os novos gestores da política de educação
indigenista? Nas Secretarias de Estado da Educação têm
sido criados setores que são destinados a gerenciar essa política
no âmbito estadual, com o respectivo engajamento de pessoas que desconheciam
a especificidade indígena. Apesar dessa conjuntura, não tem
havido a devida preparação dos novos quadros que atuam junto
aos povos indígenas. Não há, por parte de muitos desses
órgãos, o reconhecimento de que uma nova política está
sendo proposta. O que se reconhece como nova é apenas a clientela a
ser atendida.
O
mesmo pode ser dito com relação à Saúde. A transferência
da saúde indigenista da Funai para a Funasa, implicou na criação
dos Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI), que deveriam
executar uma política de atendimento à saúde dos povos
indígenas, não só específica, mas também
diferenciada, ou seja, adequada à realidade de cada povo. Os executores
dessa política são, também, pessoas sem nenhuma capacitação
específica para atuar junto a povos diferentes.
A
Funai, além de ser um órgão especificamente indigenista,
possuía uma política de formação de seus indigenistas,
que freqüentavam cursos de indigenismo ministrados por universidades
brasileiras. Os órgãos que passaram a atuar com os povos indígenas,
no contexto de políticas de respeito às culturas indígenas,
paradoxalmente desconhecem essas culturas e não investem nesse conhecimento.
Além
dos já referidos, outros agentes fazem parte do novo campo indigenista.
São os técnicos de organizações não governamentais,
religiosas ou laicas, que intensificam sua atuação junto aos
povos indígenas, inclusive em parceria com a rede pública, que
têm delegado suas funções através de estratégias
de terceirização.
Passam
a atuar com mais intensidade, também, nesse campo, os próprios
índios que assumem cargos de chefia de Postos da Funai, de professores
nas escolas das aldeias e de agentes indígenas de saúde. Constroem
ONG, criam Associações, de modo a se inserir no conjunto das
estratégias de terceirização.
O
que se observa é um vasto leque de instituições e agentes
atuando junto aos povos indígenas, sem qualquer critério de
qualificação, planejamento ou controle, ocorrendo, inclusive,
sobreposição de ações.
A
construção de políticas multiculturais, e sua implantação,
acaba por se diluir num emaranhado de instituições, gestores
e ações. Fica difícil vislumbrar o campo indigenista,
já que todos os órgãos se tornam indigenistas.
O
resultado para os povos indígenas tem sido caótico. Ainda não
conseguiram entender a pulverização das ações,
permanecem tendo na FUNAI sua principal referência e têm sido
vítimas de uma lógica burocrática que em nada se assemelha
a dinâmica das sociedades indígenas.
As
ações executadas, no âmbito da saúde, da educação,
são específicas, por serem voltadas exclusivamente para os povos
indígenas, mas não são diferenciadas, pois não
são adequadas às características de cada povo. O modelo
do DSEI parece uma cópia do Programa Saúde da Família.
As escolas das aldeias, agora parte do Sistema Nacional de Educação,
estão sujeitas ao seu currículo mínimo e às demais
regras da nossa burocracia pedagógica. No âmbito da assistência
social, as ações não são específicas, nem
diferenciadas. Caracterizam-se por estender aos povos indígenas políticas
construídas para setores desfavorecidos da sociedade brasileira. Muitas
delas são totalmente inadequadas às formas de organização
social indígenas.
Elizabeth
Maria Beserra Coelho é professora do Departamento de Sociologia e Antropologia
da Universidade Federal do Maranhão.
¹
- DIRECTÓRIO que se deve observar nas povoações dos índios
do Pará e Maranhão em quanto sua magestade não mandar
o contrário. Lisboa: Oficina de Miguel Rodrigues, 1558.