Riquezas em terras indígenas geram conflitos
A
Anistia Internacional, com sede em Londres, publicou em 30 de março,
um relatório com uma série de informações relativas
às populações indígenas do Brasil, denominadas
no documento como “estrangeiros” por serem tratados como não-brasileiros.
O relatório,
chamado Brasil - Estrangeiros em Nosso Próprio País,
caiu como uma bomba para a imagem da política indigenista brasileira,
um dos focos da campanha do presidente Lula. Apesar do direito dos povos indígenas
à terra estar consagrado na Constituição de 1988, que
define essas áreas como “terras ocupadas tradicionalmente pelos
índios”, os dados do relatório mostram que a violência
contra os povos indígenas tem aumentado no país. Na maioria
das vezes essa violência se dá contra líderes indígenas
devido, principalmente, a disputas por terras, pelas riquezas naturais contidas
nessas terras e até pelo conhecimento indígena sobre a biodiversidade.
O
Brasil possui atualmente cerca de 345 mil índios, vivendo em aldeias
espalhadas entre 215 sociedades indígenas, o que representa aproximadamente
0,2% da população brasileira, de acordo com dados da Fundação
Nacional do Índio (Funai). Fora de aldeias, estima-se que existam entre
100 e 190 mil, inclusive em áreas urbanas. Pelos dados do IBGE que
são estimados a partir da auto-identificação, a população
indígena é de pouco mais de 700 mil.
A
Funai considera que o respeito aos povos indígenas está diretamente
ligado à questão territorial “dado o papel relevante da
terra para a reprodução econômica, ambiental, física
e cultural destes”. Mesmo assim, a meta constitucional para demarcação
de terras ainda continua inferior ao esperado para 2005, apesar do aumento
de demarcações de terras entre 1992 e 2001. Conforme os dados
da Anistia Internacional, dos 580 territórios indígenas oficialmente
reconhecidos no Brasil, 340 foram homologados, enquanto 139 ainda aguardam
por identificação, o primeiro estágio do processo.
De
acordo com o antropólogo Roberto Cardoso de Oliveira, professor da
Universidade de Brasília (UnB), o Brasil observou no começo
da década de 1970 o início de um movimento indígena,
amparado pela sociedade civil. “Foi um período em que várias
ONGs surgiram em apoio às demandas dos
índios na luta em defesa de seus territórios e de sua cidadania,
incluindo o reconhecimento de sua identidade indígena e a formulação
de políticas públicas voltadas à sua saúde, educação
e bem estar social”, conta Oliveira. O antropólogo lembra que,
no entanto, o movimento não fez com que as ameaças de invasão
desaparecessem. “As ameaças continuam de formas e intensidades
variadas, acompanhando a diversidade das regiões do país”,
afirma.
Demarcação
sem garantia
A
demarcação de terras indígenas existe para assegurar
aos índios o direito ao usufruto autônomo de seu território.
Demarcado o território, cabe ao Estado defendê-lo de qualquer
tipo de invasão, o que, de acordo com Roberto Cardoso de Oliveira,
nem sempre acontece seja por incompetência do órgão indigenista,
seja por sua ausência física na área demarcada, que se
faz por meio da instalação de postos indígenas.
Para
César Cláudio Gordon Junior, antropólogo e indigenista,
a demarcação não garante que os índios se fixem
na terra. Isso acontece por uma série de problemas nessa demarcação,
tais como a exclusão de rios importantes ou a própria devastação
ambiental, que resulta na falta de recursos de caça e pesca que sejam
suficientes para as populações indígenas em questão.
E complementa: “Quando uma área demarcada é grande, pode
não haver uma infra-estrutura básica para o atendimento
médico-sanitário imprescindível, já
que quase não há índios isolados e existe hoje grande
incidência de doenças infecciosas. O antropólogo ressalta
ainda que é preciso garantir a integridade das terras demarcadas, impedindo
a invasão e a degradação ambiental, por exemplo. “Temos
que facilitar aos índios o acesso ao conhecimento que eles julgam necessários
para levar adiante seu projeto de vida”, ressalta.
Apesar
da característica nômade de algumas comunidades indígenas,
Roberto Cardoso de Oliveira ressalta que não conhece casos de abandono
de um território indígena depois de conquistado pela demarcação.
Por isso, ele considera que a questão de demarcação das
terras indígenas não deve ser pensada em conjunto com a questão
fundiária que envolve os sem-terra pois, diferentemente do que acontece
com os índios, a principal questão dos sem-terra é fornecer
meios para que os trabalhadores se fixem na terra.
Falhas
na Funai
Os problemas
na demarcação de terras, de acordo com o relatório da
Anistia Internacional, se dá principalmente por falhas da Funai. “Há
muito tempo a Funai é acometida por falta de verbas, corrupção
e problemas internos, sendo que insistentemente declara que lhe faltam recursos
financeiros e humanos para realizar as demarcações pendentes”,
informa o documento. O exemplo citado é uma carta mostrada à
Anistia Internacional de um diretor da própria Funai que escreveu sobre
sua frustração por não conseguir conduzir os estudos
de identificação referentes a um certo território devido
a uma combinação de insuficiência de verbas e falta de
funcionários. “Sem antropólogos e ambientalistas torna-se
inviável a constituição de um Grupo de Trabalho para
identificar qualquer terra indígena seja ela qual for”, descreve
o diretor no documento.
A
Funai divulgou, em resposta ao relatório, uma carta à imprensa
em que cita aspectos fundamentais da política indigenista do atual
governo. Sobre a possível demora no processo de identificação,
declaração e homologação de terras indígenas
tradicionais, o órgão afirma que segue normas que, apesar de
legais, abrem brechas para que proprietários ilegais de terras que
antes pertenciam a comunidades indígenas recorram à justiça,
o que dificulta a posse.
Pela
terra, pela biodiversidade
A
defesa dos territórios indígenas tem sido apontada como um importante
meio de garantir a preservação do patrimônio biológico
e do conhecimento milenar das populações indígenas. Para
a Funai, a proteção das terras indígenas é uma
medida estratégica para o país porque, além de assegurar
um direito dos índios, ainda garante a proteção da biodiversidade
brasileira e do conhecimento que permite o seu uso racional.
De
acordo com informações da própria Funai, as sociedades
indígenas da Amazônia conhecem mais de 1.300 plantas portadoras
de princípios ativos medicinais e pelo menos 90 delas já são
utilizadas comercialmente. O conhecimento dos índios em relação
ao uso de uma série de plantas é um atrativo para pesquisadores
e indústrias do Brasil e do mundo. Cerca de 25% dos medicamentos utilizados
nos Estados Unidos possuem substâncias ativas derivadas de plantas nativas
das florestas tropicais.
A
proteção
ao conhecimento indígena tem sido bastante discutida desde a Medida
Provisória n. 2.186-16, de 23 de agosto de 2001, regulamentada pelo
Decreto nº 3.945 do mesmo ano, que diz respeito ao acesso ao conhecimento
tradicional.
De
acordo com o historiador e indigenista Paulo Humberto Porto Borges, professor
da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste), as terras indígenas
continuam sendo o principal alvo de interesse do capital, seja o do agronegócio
ou de grupos de grandes mineradoras. Ele ressalta que a luta pelo direito
de explorar o subsolo das áreas indígenas vem sendo travada,
há algum tempo, no congresso nacional, nos trabalhos para a elaboração
do novo Estatuto do Índio (o último Estatuto data de 1973 e
tem pontos inconsistentes com a atual Constituição).
Borges
acredita que o interesse do capital vai além das terras indígenas
e atinge o conhecimento dos índios, mas não considera que a
biodiversidade possa ser uma moeda de troca dos povos indígenas na
interação com a sociedade não-índia. “É
bom lembrar que a grande maioria das áreas indígenas brasileiras
já se encontra bastante depauperada em relação aos seus
recursos naturais originais”, afirma.
Apesar
de a política indigenista estar entre as prioridades da campanha do
governo Lula, não tem agradado nem as comunidades, nem a sociedade
civil. No último dia 31 de março, o Fórum em Defesa dos
Direitos Indígenas divulgou um manifesto contra a política indigenista
do governo, ou melhor, contra a falta de uma nova política indigenista.
As principais reivindicações são a criação
de um Conselho Nacional de Política Indigenista com a efetiva participação
indígena e da sociedade civil em sua composição e a garantia,
por lei, de mecanismos previstos na Convenção da Diversidade
Biológica, de repartição justa e eqüitativa de benefícios
e anuência prévia e informada, para o acesso aos conhecimentos
dos povos indígenas e das populações locais.
Amazonas
Somente no estados do Amazonas estão 84 mil índios (mais da
metade de toda a Amazônia), distribuídos em 59 comunidades. Apesar
das atenções nacionais – e internacionais – voltadas
para a região, os índios sofrem com a mineração,
a extração de madeira e de recursos naturais, além de
estarem na rota do tráfico de drogas, de animais e da biodiversidade.
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Roraima
Nessa região, uma das principais reivindicações é
em relação à Terra Indígena Raposa Serra do Sol.
De acordo com o Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas, a demora
para a homologação dessas terras levou a comunidade a denunciar
o Brasil à Organização dos Estados Americanos (OEA),
que recomendou ao governo brasileiro medidas cautelares para a proteção
à vida dos habitantes locais. Apesar de ser um dos menores estados
da Amazônia, Roraima conta com mais de 30 mil índios.
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Rondônia
O estado conta pouco mais de 6 mil índios, divididos em 31 comunidades.
A principal área de conflito é a da Terra Indígena Roosevelt,
habitada por índios Cinta-Larga e disputada por garimpeiros da região.
Em abril de 2004, 29 Cinta-Larga foram mortos no interior do garimpo ilegal
em Roosevelt.
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Pará
No Pará vivem mais de 20 mil índios. Um dos pontos de conflitos
está no município de Parauapebas, próximo à floresta
nacional de carajás. É nessa área, onde vivem os índios
Xikrin-Kayapó, que se desenvolve um dos maiores empreendimentos minerários
do mundo, capitaneado pela Companhia Vale do Rio Doce.
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Mato
Grosso e Mato Grosso do Sul
A principal reivindicação na região do Mato Grosso é
a cadência na demarcação das terras indígenas,
em função da expansão da cultura da soja. De acordo com
o Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas, os interesses que
vigoram são do sojicultor Blairo Maggi, Governador de Mato Grosso,
que teria solicitado ao governo federal uma moratória de demarcações
no estado. Os principais conflitos estão nas terras de Yvy-Katu e Cachoeirinha
(Mato Grosso do Sul), e em Batelão (MT). Juntos, os dois Estados concentram
cerca de 57 mil índios, espalhados em 51 comunidades. Entre eles estão
os Bororo, Cinta Larga, Kayapó e Terena. Desde o início do ano
até o presente, 17 índios Caiuá-Guaranis morreram de
desnutrição em Dourados, no Mato Grosso do Sul. De acordo com
o antropólogo Ricardo Cardoso de Oliveira, a cidade praticamente envolve
a reserva indígena dos Caiuá-Guaranis e a população
aumentou geometricamente. “Os índios passam fome, as crianças
morrem de subnutrição e o suicídio entre os jovens é
preocupante”, afirma.
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Santa
Catarina
No estado vivem pouco mais de 5 mil índios, entre eles os Guarani e
os Kaingang. De acordo com o Fórum em Defesa dos Direitos Indígenas,
a Terra Indígena Baú, dos Kaiapó, foi reduzida em 320
mil hectares por ato do ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos.
Além disso, outra questão polêmica é o Projeto
de Lei do senador do PT Delcídio Amaral, que visa obstruir as demarcações
de terras indígenas, submetendo direitos territoriais indígenas
ao julgamento político da bancada ruralista no congresso nacional.
As principais áreas de conflito no estado são as terras de Toldo
Pinhal, Toldo Imbu, Morro dos Cavalos e Aldeia Condá.
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São
Paulo e Rio de Janeiro
Proporcionalmente, pelo tamanho, a região Sudeste tem a menor concentração
de indígenas. O Rio de Janeiro conta com apenas 330 índios –
todos Guarani. O estado possui 3 áreas com 100% das terras demarcadas,
perto da divisa com São Paulo. Já o estado de São Paulo
conta com 2.700, que sobrevivem em apenas 7 comunidades (entre elas, os Terena,
Kaingang e Guarani). Uma das principais regiões de conflito é
a região Piaçaguera, habitada por índios, mas não
considerada como de posse indígena.
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Região
Nordeste
Proporcionalmente, pela extensão de sua área, a região
Nordeste tem a menor concentração de índios. De acordo
com a Funai, os estados do Piauí e Rio Grande do Norte são os
únicos que não têm nenhuma terra demarcada ou em processo
de demarcação e consta que não há nenhum índio
nesses dois estados. Pernambuco tem mais de 23 mil índios, e 1/3 das
terras ainda estão em demarcação.
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(SR)