Quando
o sangue se torna mercadoria
Felipe
Ferreira Vander Velden
Desde
há muito, a riqueza e a diversidade genéticas das populações
indígenas são reconhecidas, investigadas e valorizadas cientificamente.
É, no entanto, em meados dos anos de 1980, que se desenham planos para
sua efetiva exploração por grandes instituições
de pesquisa, laboratórios e empresas de biotecnologia. Se a consolidação
desses interesses capitalistas sobre frações mínimas
dos corpos indígenas – sangue, fragmentos de pele e cabelo, células,
DNA – não se concretizou tal como previram, vinte anos atrás,
os cientistas envolvidos com a prospecção genética, tal
se deveu não apenas a mudanças nas diretrizes da pesquisa genética
em populações humanas (que passaram a buscar não mais
os demograficamente reduzidos povos indígenas, mas grandes aglomerados
populacionais com características genéticas consideradas homogêneas,
como os chineses Han ou os islandeses) em consonância com os movimentos
do capital investido nesse ramo da ciência, mas também a um posicionamento
ativo de minorias étnicas contra o que consideraram uma nova forma
de (bio)colonialismo. Dignas de nota, as críticas de organizações
indígenas ao grandioso Projeto da Diversidade do Genoma Humano (Human
Genome Diversity Project, ou HGDP), que buscava a catalogação
exaustiva da variabilidade genética humana – epitomizada pela
imensa diversidade das populações nativas –, explodiram
por todo o mundo quase que simultaneamente ao anúncio do Projeto, em
1991, e acabaram por interrompê-lo.
Os
Karitiana – um povo de língua Tupi-Arikém no norte do
estado de Rondônia – foram alvo deste novo campo de exploração
científica e comercial que se abria na década de 80. Provavelmente
em 1986 ou 1987, o geneticista Francis Black – intimamente ligado aos
propositores do HGDP – visitou a aldeia Karitiana, onde teria recolhido
cinco amostras de sangue. Já em 1991 apareceram resultados das pesquisas
com o material coletado, publicados em artigos que apontam tanto para o trabalho
de prospecção de Black entre os Karitiana, quanto para as relações
deste com um banco de amostras genéticas que então se constituía
nas Universidades de Stanford e Yale, nos Estados Unidos da América.
Importa
investigar o percurso realizado pelas amostras biológicas Karitiana,
recolhidas por Black, nos labirintos da pesquisa genética em escala
global. No rastro da estrutura concebida para abrigar o fabuloso banco de
dados genéticos inventariados pelo HGDP – abortado precocemente,
como já dito – a coleção de cinco amostras do sangue
Karitiana (e outras cinco dos Suruí, povo Tupi-Mondé também
em Rondônia, e também visitado por F.Black na mesma época)
acabou por ser depositada, em abril de 1996, no banco de células e
DNA da Coriell Cell Repositories (CCR), uma instituição
norte-americana vinculada ao National Institute of Health, a poderosa agência
de pesquisas biomédicas dos Estados Unidos. Mais, essas amostras foram
colocadas à disposição de pesquisadores do mundo todo
que, mediante pagamento, poderiam adquiri-las através da internet.
As amostras continuam, ainda hoje, na página virtual da Coriell,
e podem ser solicitadas, ao custo de US$ 85 (linhagem celular) e US$ 55 (DNA).
Toda
essa movimentação – o amplo percurso das amostras Karitiana
da aldeia, por laboratórios e repositórios em universidades
norte-americanas, até sua comercialização na rede mundial
de computadores – permaneceu silenciosa por uma década. Este
cenário alterou-se drasticamente em 1996 quando, em julho, dois antropólogos
brasileiros divulgaram a oferta de material genético Karitiana na home
page da CCR. A denúncia ganhou destaque na imprensa brasileira
e causou intensa comoção nos meios políticos e acadêmicos
nacionais; esboçou-se um debate entre o Congresso Nacional, a Funai,
os ministérios da Justiça e das Relações Exteriores,
pesquisadores e entidades de defesa dos direitos indígenas, bem como
os próprios grupos indígenas. Debate que seria ampliado, logo
em seguida, por força de acontecimentos até certo ponto desvinculados
dos eventos anteriores.
Ao
que parece, em agosto daquele mesmo ano, um grupo de cinegrafistas britânicos,
acompanhados de uma equipe de pesquisadores brasileiros, esteve entre os Karitiana
com o propósito, assim definido perante a Funai, de produzir um documentário
sobre aspectos culturais do grupo. Naquela ocasião, o grupo de cientistas
brasileiros teria coletado amostras de sangue de toda a população
Karitiana, com o intuito declarado – aos índios e, posteriormente,
à justiça e à imprensa – de realizar exames e,
dessa forma, prover a comunidade de melhores e maiores recursos de atenção
a sua saúde. Tal intenção não fora comunicada
previamente ao órgão indigenista oficial.
A
coincidência cronológica desses dois últimos eventos –
a denúncia sobre as atividades da CCR e uma nova coleta de amostras
biológicas, ambas em meados de 1996 – marcou de modo crucial
a interpretação feita pelo governo brasileiro, pela justiça
e pela mídia: construiu-se, logo, a certeza de que as amostras comercializadas
pela Coriell teriam sido coletadas pela equipe de pesquisadores brasileiros
em 1996. Esse cenário marcou, da mesma forma, a leitura feita pelos
Karitiana acerca da circulação do sangue extraído de
seus corpos, pois foi nesse momento que o grupo apareceu e se posicionou no
debate, ao procurar a justiça em Rondônia com uma interrogação
sobre os motivos daquele interesse por fragmentos de seus corpos. Esclarecidos
e politicamente fortalecidos, os Karitiana passaram a exigir uma resposta
para os eventos, bem como uma compensação monetária pelo
sangue que já consideravam “roubado”.
A
investigação sobre a trajetória das amostras prossegue
e, recentemente (2004), retornou à pauta de ações do
governo brasileiro (há uma CPI da biopirataria no caso), talvez por
força dos problemas cada vez mais complexos levantados pela biopirataria
na Amazônia – sobretudo quando vistos no cenário mais amplo,
que envolve temas candentes como o tráfico de animais silvestres e
as novidades na legislação que trata das pesquisas e dos recursos
genéticos no Brasil. Interessante saber, contudo, como se colocam os
Karitiana neste cenário.
A
memória que tem o grupo sobre o evento de 1986-87 é tênue,
mas as repercussões do caso de 1996 vieram lançar luz à
retrospectiva sobre o passado. Assim, enriquecida pelas informações
que agora lhes chegam de fontes diversas – da justiça, da imprensa,
de pesquisadores e organizações indigenistas –, a reivindicação
dos Karitiana parece não distinguir as duas situações:
para eles, ambas se colocam como momentos de uma intervenção
desmedida e deletéria dos brancos sobre sua integridade corporal e
seus interesses políticos. A memória, portanto, se reconstrói
a partir das preocupações políticas contemporâneas
quanto ao sangue coletado e seus destinos.
Há,
na cosmologia dessa sociedade, indícios de que o sangue fora dos corpos
é perigoso, o que pode ser notado nas diversas precauções
tomadas quanto ao derramamento de sangue em momentos como a menstruação,
o parto, ferimentos diversos e, como apontam as narrativas sobre o “tempo
antigamente”, o homicídio guerreiro. Contudo, a solicitação
de uma reparação monetária pelo sangue levado da aldeia
aponta para uma percepção politicamente bem situada ou, digamos,
bem adequada ao universo com os quais os Karitiana estão em contato,
quer dizer, o campo de discussão em torno do estatuto de amostras biológicas
humanas, que envolve questões de justiça, soberania nacional,
ciência e, last but not least, dinheiro.
É
preciso destacar que o ressentimento dos Karitiana quanto ao segundo evento
de coleta de sangue gira, fundamentalmente, em torno de uma promessa feita
pela equipe de pesquisadores, e que não foi cumprida: a de que remédios
e suprimentos médicos seriam enviados ao grupo, em resposta às
condições de saúde deficitárias reconhecidas pela
equipe. Nesse sentido, é razoável supor que se tratou, aos olhos
dos Karitiana, de uma troca incompleta, insatisfatória e que, por essa
razão, pede alguma forma de compensação. Informados e
fortalecidos pelo amplo movimento surgido em torno da questão da pilhagem
dos recursos genéticos da Amazônia, os Karitiana formularam uma
solução política favorável aos seus interesses
contemporâneos e em sintonia com o funcionamento das estruturas legal
e judiciária. Reconhecendo as potencialidades financeiras associadas
aos recursos genéticos, o grupo pede uma compensação
monetária. Ao tornarem equivalentes sangue e dinheiro – propondo
uma “troca de sangue por mercadorias”, recordando as sombrias
palavras de Hanna Arendt –, os Karitiana não estão simplesmente
emulando a mesma equivalência tal como proposta pela indústria
biotecnológica. Percebendo que o sangue, signo importante em seu código
cosmológico, foi mercantilizado, eles concebem a contrapartida em mercadoria
como tradução mais adequada para tornar mutuamente inteligíveis
os códigos em confronto: o seu, e aquele do universo capitalista. É
isso que chamei de uma percepção política bem situada:
se o sangue que saiu não pode voltar – pois está “sujo”,
“frio” ou “morto” –, e se os brancos estão
“fazendo dinheiro” com o sangue, que este dinheiro retorne à
aldeia, e que ali se multiplique em medicamentos, alimentos, insumos, enfim,
tudo aquilo que traz, para a vida, “saúde” e “alegria”.
Afinal, é a busca pela “saúde” (e sua necessária
complementação, a “alegria”) a principal ocupação
dos Karitiana, seja no dia a dia, seja nas atividades rituais.
No
entanto, cabe adicionar um grão de sal nestas considerações.
Se os Karitiana postulam a equivalência entre sangue e mercadorias,
traduzindo, a sua maneira, um modelo de intercâmbio até então
desconhecido e potencialmente disruptivo, é preciso perguntar o que
tal equivalência significa para nós mesmos, em um esforço
de crítica das relações sociais observadas. Uma reflexão
como essa deverá apontar para o incômodo geral provocado por
práticas que colocam no mesmo nível o capital e fragmentos corporais,
indicando que a equivalência de sangue e mercadoria é, fundamentalmente,
um mecanismo perverso, fundado na desigualdade entre os que dispõem
do dinheiro e aquelas parcelas da população forçadas
a ceder seus corpos – sangue, células, tecidos, órgãos
para transplantes, cadáveres – para, desse modo, terem algum
acesso a recursos básicos. Aí residia a perplexidade de Hanna
Arendt, quando viu, na Segunda Guerra Mundial, prisioneiros judeus e caminhões
serem equiparados.
Dito
tudo isso, é forçoso ressaltar que não se trata, aqui,
de advogar contra médicos, pesquisadores e suas práticas e saberes.
Faz-se necessária uma reflexão sobre a percepção,
culturalmente mediada, dos procedimentos e intervenções desses
saberes. A circulação de sangue, substâncias e fragmentos
corporais em outros universos que não corpos vivos e saudáveis
expõe, para os Karitiana e para nós, as intervenções
cada vez mais insidiosas dos procedimentos científicos e mercadológicos
sobre a vida. Nos dois eventos, discutidos acima, médicos e pesquisadores
apresentaram aos Karitiana facetas dessa intervenção. Assim,
desafiaram uma rede de reciprocidade – fincada no comportamento social
adequado, na franqueza e na transparência dos indivíduos, na
partilha de alimentos, na alegria e no cuidado mútuo que asseguram
a integridade dos corpos vivos – que sustenta as relações
internas do grupo e a delicada convivência dos Karitiana com a sociedade
envolvente. Ao procederem de modo considerado “errado” pelos índios,
os cientistas que lhes “roubaram” o sangue só fizeram redesenhar
uma fratura existente entre os Karitiana e os brancos; ao dizerem que os pesquisadores
“tiraram o sangue e depois fugiram feito bicho bravo”, os Karitiana
alertam para um deslocamento da conduta propriamente humana – tal como
registrado entre outras populações indígenas, que tematizam
nos brancos imagens de vampiros, canibais, bebedores de sangue, ávidos
comedores, criaturas amorais cujas práticas exóticas indicam
modalidades de conhecimento inacessíveis e, portanto, perigosas e destrutivas
– na qual a mentira e o roubo devem ser completamente banidos. O conhecimento
e o poder que têm os cientistas biomédicos é colocado
em causa pelos Karitiana, pois extravasou, em dado momento, os limites do
que é social e, por esta razão, humanamente apropriado e aceitável.
Subscrevendo a crítica cultural indígena, é fundamental
que também olhemos com mais cuidado para o que as ciências e
práticas biomédicas vêm fazendo com nossa sociedade, e
com a vida.
Felipe
Ferreira Vander Velden é aluno de doutorado em Antropologia Social,
IFCH-Unicamp.