A
quem pertence o conhecimento?
Carlos
Vogt
A
quem pertence o conhecimento?
Aos
cientistas, pesquisadores e pensadores que o produzem? Àqueles a quem
é ensinado que, se o aprendem, são também seus co-proprietários?
À sociedade que deve dele beneficiar-se e que, sabendo ou não
disso, oferece as condições culturais, políticas, econômicas
e morais para a sua busca, o seu desenvolvimento, a sua multiplicação
e transformação? Aos governos que o financiam, quando o financiam,
e que deveriam manter boas políticas públicas para a sua produção,
desenvolvimento e apropriação social? Às empresas que dele
se apropriam por investimentos, compra, ações jurídicas
e/ou judiciais, registros de patentes, lideranças em pesquisas setoriais,
propriedade, enfim, do que é de todos, mas com direitos exclusivos de
controle e de formas de socialização, via as práticas comerciais
vigentes nos sistemas de troca da economia global?
Pelo
conhecimento tradicional, às comunidades indígenas, aos sertanejos,
aos agricultores, às populações ribeirinhas, aos seringueiros,
àqueles, enfim, herdeiros ativos de um longo e depurado saber, em particular
no caso da biodiversidade, que, passado de geração em geração,
manteve-se como um patrimônio de conhecimento sobre a vivência,
a prática e a experiência do convívio com a terra, com as
águas, com os animais, com os vegetais e com os minerais que, juntos,
compõem os complexos ecossistemas da vida no planeta?
A
todos e a nenhum? A uns mais, a outros menos? Como? Por quê? Para quê?
Quem deve governar os destinos da ciência e da tecnologia? Todos esses
atores acima elencados? Somente alguns deles? De que modo? Por quais mecanismos
de participação nos sistemas de governança da ciência
e da tecnologia? E no caso do assim chamado conhecimento tradicional que papel
reconhecer-lhe quanto aos direitos e obrigações gerados pelas
inovações que possibilitam e, muitas vezes, facilitam?
O
fato é que a situação que envolve essas comunidades, no
que diz respeito aos direitos sobre o conhecimento da realidade física
e cultural em que estão inseridos e na qual e com a qual interagem de
forma ao mesmo tempo dinâmica e conservadora, é nova e além
disso apresenta características que lhe dão peculiaridades significativas
mas nem por isso simples ou fáceis de codificar nos vocabulários
das regras da economia contemporânea.
Entre
essas características, duas podem ser apontadas como marcantes: ser um
conhecimento sem autoria individualizada, mesmo quando, por exemplo, os pajés
em comunidades indígenas são os “donos” da soberania
ritual e cerimonial de seus segredos, poderes e aplicações; ser
um conhecimento difuso, embora consistente, e que, por ser difuso, gera também
direitos difusos para a nomenclatura dos partilhamentos consagrados, administrados
e governados por organismos, normas e leis de sofisticação crescente,
em nível nacional e internacional.
Isso,
contudo, não exclui a necessidade do reconhecimento desses direitos e
tampouco deve funcionar como justificativa para protelar as decisões
políticas que, de um lado, os afirme e em leis os consagre e, de outro,
desimpeçam os caminhos da pesquisa dos entulhos das alegações
infundadas e dos atrasos institucionais.
O
Brasil, desde a Eco 92, em especial, vem desenvolvendo, em diversos níveis
das ações culturais e políticas, uma intensa atividade
no sentido de buscar cenários cada vez mais favoráveis ao atendimento
dessas condições acima enunciadas.
Pela
riqueza de nossa biodiversidade, pelo potencial daquilo que a natureza oferece
como “ensinamento” para o equilíbrio ambiental, para a inovação
tecnológica e para o desenvolvimento de novos produtos de alto valor
econômico e social, pela pluralidade dos saberes que em rica diversidade
cultural vivem várias de nossas populações no contato mais
direto com essa enorme variedade da vida em nosso território, é
fundamental que os mecanismos legais que reconhecem o papel do conhecimento
tradicional nesse processo sejam constante e sistematicamente aperfeiçoados
na busca ético-pragmática das soluções que façam
avançar as pesquisas sem perder de vista as dimensões humanistas
que dão grandeza e humildade à aventura do homem no mundo, do
seu conhecimento do mundo, do mundo do conhecimento, do conhecimento do conhecimento
do mundo.
Desse
modo, o conhecimento pertence ao homem e isso é mais tradicional e inovador
do que todas as tradições e inovações quantificadas,
mesmo quando – o que é freqüente, sobretudo nas sociedades
contemporâneas – a sua institucionalização como bem
tangível de mercado, comércio e lucro tende a deprimir essa universalidade
intangível, mas concreta, de seu papel estruturador na dinâmica
dos processos civilizatórios da educação e da cultura.
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