Repartição
dos benefícios ainda é polêmica no uso do conhecimento
indígena
A
utilização do conhecimento dos povos indígenas, seja
em pesquisas científicas, seja em projetos com finalidades comerciais,
vem suscitando questões importantes no debate sobre propriedade intelectual,
dentre elas: como deve ser a repartição dos possíveis
recursos provenientes desse uso? Discute-se desde o estabelecimento de porcentagem
sobre a venda do produto gerado com a utilização do conhecimento
tradicional, até investimentos em infra-estrutura para as comunidades
detentoras do conhecimento tais como escolas, energia elétrica, transporte
ou mesmo outras formas de retorno como cursos de capacitação
de professores indígenas, aulas sobre legislação ambiental
e direitos humanos. A transferência de tecnologia também é
apontada como uma opção.
O
Brasil, através da Medida
Provisória nº 2186-16/2001 regula o uso dos conhecimentos
tradicionais associados ao patrimônio genético. A modalidade
de regulação atual acontece através de autorizações
de acesso a esses conhecimentos. Uma instituição brasileira,
pública ou privada, que pretenda usar esses conhecimentos para alguma
finalidade, precisa de uma autorização do Conselho de Gestão
do Patrimônio Genético (CGEN), ligado ao Ministério do
Meio Ambiente (MMA). Os pré-requisitos para se conseguir essa autorização
são uma descrição do projeto de pesquisa e a comprovação
de uma anuência prévia concedida pela comunidade em questão.
A anuência prévia é uma das exigências-chave instituídas
na legislação: ela deve estar assinada pela comunidade tradicional
que detém o conhecimento, como se fosse uma autorização.
No
caso de aproveitamento econômico desse conhecimento há exigência
de um requisito adicional que é o contrato de utilização
e a repartição de benefícios. Nesse contrato há
uma cláusula específica sobre a repartição mas
“as partes são livres para negociar” afirma Eduardo Vélez,
diretor do Departamento de Patrimônio Genético (DPG) do Ministério
do Meio Ambiente (MMA). “As partes têm que pactuar como serão
repartidos os benefícios, no caso de algum produto ser desenvolvido
a partir do uso desses conhecimentos”, explica Vélez.
Para
que as comunidades tradicionais não sejam prejudicadas nesse processo,
o Ministério do Meio Ambiente está desenvolvendo um projeto
de capacitação dos detentores do conhecimento tradicional. A
finalidade é torná-los completamente cientes de seus direitos,
previstos na legislação. Para isso, estão sendo feitas
algumas atividades com representantes de povos indígenas, quilombolas
e comunidades locais no estado do Acre. “É um projeto piloto
de capacitação das comunidades indígenas, que pretendemos
expandir para outras regiões do Brasil, onde elas irão aprender
exatamente o que diz a legislação, como deve ser o processo
de anuência prévia, como elas podem negociar os contratos. Apesar
do processo estar em andamento, é preciso tempo de maturação
para que possamos ter a garantia de funcionamento desses direitos”,
explica Vélez, para quem a legislação ainda é
recente (2001) e está passando por um processo de implementação
no qual alguns pontos precisam ser aperfeiçoados.
Outro
problema é a falta de um escritório de patentes que impeça
o patenteamento sem a comprovação da legalidade do acesso a
esses conhecimentos. No entanto, Vélez lembra que há uma nova
discussão no CGEN, órgão com a responsabilidade de implementar
a política pública para a gestão do patrimônio
genético. De acordo com ele, a Medida Provisória 2.186-16 não
trata de forma completa alguns mecanismos. “Uma das coisas que se discute
é o sistema de registros de cultivares. A concessão desse direito
deveria somente ser dada no caso do uso dos conhecimentos tradicionais de
variedades crioulas, caso o acesso a essas variedades tenha sido legal. Isso
impediria que se concedesse um direito sobre uma cultivar sem o consentimento
prévio dessas comunidades. Outra maneira seria uma notificação
ou mesmo o embargo de atividades que não tenham respeitado esses conhecimentos
prévios”, explica.
Conhecimento
difuso, benefício difuso
Recentemente foi divulgado na imprensa que o Ministério da Agricultura,
Pecuária e Abastecimento (MAPA) não reconhece o direito de propriedade
intelectual dos povos tradicionais. Na reunião da Câmara Temática
de Conhecimentos Tradicionais do CGEN, no dia 9 de março, o MAPA teria
defendido que “o conhecimento dos povos tradicionais deve ser considerado
difuso e de domínio público”.
O
representante do MAPA no CGEN, Leontino Taveira, esclarece a posição
do Ministério. Para ele, uma simples confusão de conceitos causou
uma divulgação errada de informações na imprensa.
Assim, ele acredita que o conhecimento difuso deve ser de domínio público,
mas o conhecimento detido na comunidade deve estar protegido. “É
preciso ter muito claro que quando se fala de uma espécie, estamos
trabalhando com um conceito muito mais amplo que envolve variedades que já
estão difusas e outras não, aquelas mantidas pela comunidade.
As variedades que as comunidades detêm, exigem o retorno dos benefícios
sobre seus usos”, explica Taveira. Segundo ele, o direito soberano da
comunidade sobre o material que ela detém, refere-se a uma variedade
e não à espécie como um todo.
“É
preciso repartir, sim. Agora como?”, questiona Leontino Taveira. “O
que temos são sugestões e contribuições ao debate
sobre como implementar a repartição de benefícios, tendo
em vista alguns preceitos básicos como a interdependência entre
Estados em relação aos recursos genéticos para alimentação,
por exemplo. Se nós amarrarmos demais o Brasil, iremos ficar sem acesso
a materiais que poderiam vir de outros países”, argumenta.
Para
o presidente suplente do CGEN, Paulo Yoshio Kageyama, essa seria uma das dificuldades
de se trabalhar com o conhecimento tradicional: quando o conhecimento está
difuso por diferentes países e mesmo etnias, não é possível
chegar à origem do conhecimento, pois vários povos detêm
essa sabedoria. “O Daime é um exemplo, pois toda a população
indígena da Amazônia usa o Daime, se fosse um produto valioso
ou venha a se tornar um, a quem deveremos atribuir os benefícios gerados
com sua comercialização?”, questiona Kageyama. Nesse caso,
uma forma de beneficiar as comunidades pelo uso do conhecimento seria o que
ele chama de “benefício difuso” como, por exemplo, uma
rede de comunicação envolvendo as comunidades da região.
O segundo problema levantado quando o assunto é repartição
dos benefícios diz respeito à maneira correta de se trabalhar
as especificidades de cada comunidade. “Algumas comunidades são
bem organizadas e isso torna as coisas mais fáceis, pois elas procuram
seus direitos, entendem o que está sendo feito e o valor dos recursos
da biodiversidade que elas detêm. Por outro lado, existem comunidades
pouco organizadas e que podem ser manipuladas”, explica.
É
preciso lembrar que, além da repartição de benefícios,
o uso do conhecimento tradicional em pesquisas científicas também
vem gerando polêmicas entre biológos, antropólogos e outros
cientistas. Segundo o presidente da Sociedade Brasileira de Etnobiologia e
Etnoecologia (SBEE) e pesquisador da Universidade Federal Rural de Pernambuco
(UFRPE), Ulysses Paulino de Albuquerque, a proteção do conhecimento
indígena tem sido pauta de discussões muito antigas, em especial
entre os próprios etnobiólogos e etnoecólogos. Embora
considere que a legislação tende a dificultar o trabalho de
pesquisa, Albuquerque lembra determinados procedimentos adotados por pesquisadores,
principalmente no que diz respeito à divulgação dos resultados:
“No caso de plantas medicinais, há pesquisadores que não
divulgam plantas interessantes encontradas em suas pesquisas até que
se construa um instrumento que garanta à comunidade, detentora original
do conhecimento, os devidos direitos caso a planta venha originar um medicamento”,
exemplifica.
A
experiência baniwa na repartição de benefícios
A
primeira autorização do CGEN concedida a partir da nova legislação
que institui a obrigatoriedade do consentimento prévio das comunidades
locais para as pesquisas científicas, com ou sem finalidades comerciais,
foi dada ao projeto de pesquisa sobre a sustentabilidade da produção
comercial da cestaria feita pelos Baniwa, povo da região do Alto Rio
Negro. O projeto é resultado de uma parceria entre o Instituto Nacional
de Pesquisas da Amazônia (INPA) e a Organização Indígena
da Bacia do Içana (OIBI), dos Baniwa. André Baniwa, presidente
da OIBI, que participou entre os dias 29 a 31 de março do I Encontro
da Rede Norte de Propriedade Intelectual, acredita que as parcerias entre
povos indígenas e instituições governamentais, não-governamentais
ou empresas privadas podem estimular o desenvolvimento e criar uma imagem
positiva das comunidades para a sociedade brasileira.
Ao
participar de um debate sobre a repartição de benefícios,
desenvolvimento científico e tecnológico e responsabilidade
sócio-ambiental, André Baniwa descreveu a forma como a sua comunidade
vem se relacionando com os pesquisadores e quais os benefícios que
ela vem recebendo: “Nós passamos a contribuir com eles fornecendo
várias informações que tínhamos e eles atenderam
nossas demandas, como realizar um encontro de educação e trazer
informações sobre nossos direitos. A gente foi se aperfeiçoando
em oficinas lingüísticas, na unificação da grafia
baniwa, na elaboração de um projeto-escola baniwa voltado para
as formações de professores que não tínhamos.
Atualmente temos mais de 200 professores e uma escola de quinta a oitava série”.
A metodologia utilizada para educar as crianças nas escolas da aldeia,
segundo André Baniwa, é mais eficiente que a tradicional, pois
mantém as crianças interessadas na aula e o professor passa
a ser um orientador e não apenas uma pessoa que fica expondo teorias
na frente dos alunos. “O retorno político-pedagógico é
muito gratificante para nós, os alunos passam a compreender a comunidade
e as pesquisas, podendo, no futuro, virem a ser pesquisadores”, acredita.
“Para nós não veio benefício em dinheiro, mas talvez,
esse que veio, tenha sido bem melhor do que se viesse dinheiro”, completa.
Vitória
na Índia
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A
diversidade biológica presente nos países em desenvolvimento
vem aumentando a ambição das grandes empresas transnacionais.
A fraca legislação, a dependência tecnológica
e, sobretudo, os problemas estruturais têm contribuído
freqüentemente para que casos de biopirataria sejam resolvidos
nos tribunais de justiça. Em 2000, o escritório
de patentes da União Européia revogou uma patente
concedida à empresa W.R. Grace e ao Ministério da
Agricultura americano. (leia: Dois
golpes contra a biopirataria). Nesse caso, foi anulada a patente
desenvolvida a partir da árvore Neem (Azadirachta indica),
utilizada há centenas de anos na Índia. O escritório
de patentes europeu considerou que não havia novidade alguma
em relação à patente, abrindo, com isso,
um caminho para o combate ao uso indevido dos conhecimentos dos
povos tradicionais.
A
vacina do sapo
Outro
caso que viola o direito de propriedade intelectual de comunidades
tradicionais é o caso da vacina
do sapo. Popularmente conhecido como sapo verde, o anfíbio
da espécie phyllomedusa bicolor, é encontrado
especificamente em países amazônicos como Venezuela,
Colômbia, Bolívia, Guianas e, principalmente, no
Brasil e no Peru. Povos indígenas dessas regiões
descobriram que, retirando uma secreção cutânea
do anfíbio, é possível produzir uma substância,
capaz de curar desde o amarelão até dores em geral.
O problema está no fato de que patentes com o nome phyllomedusa
bicolor estão sendo concedidas em países da
União Européia, Estados Unidos e Japão.
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André
Baniwa lembra que a própria comunidade convidou pesquisadores para
ministrar palestras sobre sustentabilidade sócio-ambiental, na área
de botânica, etnobotânica e ecologia das plantas. “Hoje
nós temos auto-estima, somos mais respeitados, participamos de algumas
decisões no CGEN. Além da questão financeira, isso traz
o fortalecimento da nossa organização indígena. Tanto
para o índio quanto para os pesquisadores existem benefícios
nessa história de contribuir”, finaliza. Outra forma de geração
de benefícios para os Baniwa, foi uma parceria feita com a loja Tok&Stok:
eles vendem seu artesanato para essa empresa que o revende no mercado nacional.
Segundo
a Organização Indígena da Bacia do Içana (OIBI),
existem cerca de 17 mil indígenas nas aldeias Baniwa espalhadas pela
Colômbia, Venezuela e Brasil. No Amazonas, os Baniwa residem na região
do Alto Rio Negro, nos municípios de Castelo, Santa Isabel e São
Gabriel. A região contabiliza, ao todo, 22 povos diferentes e cerca
de 30 mil indígenas.
(AG)