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Escola indígena: fortalecimento das identidades e dos direitos dos índios

Desde o século XVI, logo após a chegada dos portugueses ao Brasil, a educação escolar no país atinge comunidades indígenas, pautada, a princípio, pela catequização feita pelos missionários jesuítas, e posteriormente, pela integração forçada dos índios à sociedade nacional, pelos programas de ensino do extinto Serviço de Proteção aos Índios. Nas últimas duas décadas, a partir da mobilização dos próprios índios, essa situação vem mudando gradativamente. Nas comunidades indígenas onde o contato com o não-índio já é antigo e a língua herdada dos portugueses predomina, a escola passou a ser vista como um espaço para o resgate da identidade étnica desses povos. Nas escolas, por sua vez, onde as aulas eram ministradas apenas em língua indígena, o português passou a ser solicitado como instrumento para os índios na luta pelos seus direitos.

De acordo com o Ministério da Educação (MEC), atualmente, há cerca de 170 línguas indígenas em uso nas comunidades de 210 etnias brasileiras, mas não há um número preciso de quantas das 2.322 escolas indígenas do país são bilíngües. “A diversidade de casos é muito grande. Em cada pedaço do país, há uma realidade diferente”, afirma Kleber Gesteira, coordenador-geral de Educação Escolar Indígena da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad) do MEC. “Algumas comunidades usam a língua indígena na escola; em outras, a língua indígena está sendo reintroduzida; algumas envolvem mais de uma língua indígena ou também o espanhol, no caso de povos das fronteiras; e existem, inclusive, comunidades monolíngues em que o professor trabalha na língua local e mais tarde introduz o português como segunda língua”, explica.

Em março, durante o 1º Seminário Nacional de Material Didático Indígena, que contou com a participação de professores indígenas e representantes das secretarias estaduais de educação e de organizações não-governamentais, Gesteira anunciou o compromisso do MEC de investir R$ 800 mil, em 2005, na produção de CDs e vídeos didáticos feitos com a participação das próprias comunidades indígenas. O objetivo é valorizar a tradição oral através da reprodução de cânticos, discursos e narrativas. “Tudo isso é fruto da reivindicação dos próprios índios. O peso deles nas políticas de educação indígena é total”, destaca.

“Os indígenas têm participado ativamente nos fóruns organizados pelo MEC em parceria com a Funai [Fundação Nacional do Índio], nas audiências públicas e em outras reuniões”, reforça Maria Helena Fialho, responsável pela Coordenação Geral de Educação do órgão indigenista federal. A Funai, que outrora geria a educação indígena em todo o país, atua agora no incentivo à participação dos índios nas discussões nessa área, já que a coordenação das ações escolares de educação indígena está, atualmente, a cargo do MEC, e a sua execução, a cargo dos estados e municípios.

“A Funai, através de Oficinas de Políticas Públicas, tem buscado levar elementos para que os povos indígenas possam exercer o controle social sobre os diversos programas do MEC, como o FNDE e o Fundef, entre outros, objetivando atingir o maior número de comunidades para esse controle”, diz Fialho. Segundo ela, a Comissão Nacional de Professores ampliou o número de representantes indígenas, e os professores indígenas participam ainda dos conselhos municipais e estaduais e têm, inclusive, uma representante no Conselho Nacional de Educação.

Além de promover oficinas, a Funai também publicou e distribuiu, entre 2003 e 2004, cartilhas para os Tupari, os Kalapalo, os Potiguara, os Cinta-Larga, os Karajá, os Bakairi. Essa atividade da Funai de edição e distribuição de material didático específico para os indígenas, no entanto, foi extinta e já não faz parte do Plano Plurianual do governo federal. Já o MEC, segundo Gesteira, prevê investir, no decorrer de 2005, R$ 1 milhão em livros didáticos para os índios e R$ 2 milhões na formação de 3 mil professores indígenas que ainda não concluíram o ensino médio. Essa formação é feita em regime de alternância, com um período de ensino intensivo de quatro semanas em um centro de formação e outro período de estudos realizados na própria aldeia, que podem eventualmente contar com a visita de tutores.

Histórico
A política educacional voltada para os índios começou a mudar a partir da Constituição Federal promulgada em 1988. O seu artigo 210, embora reafirme a imposição da língua portuguesa no ensino fundamental brasileiro – posta em prática, inicialmente, no século XVIII, pelo Marquês de Pombal –, assegura às comunidades indígenas a possibilidade de também utilizar nas escolas suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Em dezembro de 1996, o governo federal cria a Lei de Diretrizes e Bases (LDB) da Educação Nacional, que dedica dois capítulos (o 78 e o 79) ao ensino voltado para os índios. A LDB estipula que a União deve desenvolver programas de ensino e pesquisa para oferecer educação escolar bilíngüe e intercultural aos povos indígenas, com o objetivo de proporcionar a eles a recuperação de suas memórias históricas, a reafirmação de suas identidades étnicas e a valorização de suas línguas e conhecimentos tradicionais

A partir dessa regulamentação, surge uma demanda, por parte dos indígenas, por um ensino diferenciado em suas comunidades. Em novembro de 1999, as escolas voltadas para os índios – até então, indiferenciadas das chamadas “escolas rurais” – passaram a ser tratadas como instituições de ensino com diretrizes específicas, a partir da Resolução nº 3 publicada pela Câmara de Educação Básica do Conselho Nacional de Educação. Em 2000, a Câmara dos Deputados decreta o Plano Nacional de Educação e estipula entre suas metas a criação da categoria oficial de “escola indígena” para assegurar a especificidade do modelo de educação intercultural e bilíngüe.

Alguns estudiosos das comunidades indígenas, no entanto, questionam o papel da escolarização de índios. “É preciso ainda cautela e pesquisa para saber qual precisamente o significado cultural da demanda por escolas pelos índios. Não basta chacoalhar a retórica dos direitos constitucionais”, pondera o pesquisador Ricardo Cavalcanti-Schiel, autor da dissertação de mestrado Presente de branco, presente de grego? Escolas e escrita em comunidades indígenas do Brasil Central, defendida no Museu Nacional, ligado à Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “O fundamento regulatório de nossos princípios jurídicos são os direitos individuais. Por isso, as demandas indígenas podem encontrar, frente a essa gramática jurídica, apenas o lugar das margens”, argumenta.

Já o lingüista Wilmar da Rocha D’Angelis, que trabalhou praticamente duas décadas como indigenista antes de entrar para a vida acadêmica, na Unicamp, considera importante atender certas demandas das comunidades indígenas. Em uma delas, ele coordenou um projeto de pesquisa encomendado pelos próprios índios da reserva indígena do Araribá, no município de Avaí, próximo a Bauru, no interior de São Paulo. Nessa comunidade, as crianças só conheciam o português. O objetivo da pesquisa, que contou com o apoio da Fapesp e da Associação Brasileira de Leitura, foi o estudo fonológico do dialeto nhadewa da língua guarani, falado apenas pelos índios mais velhos no Araribá, para que ele fosse reintroduzido na reserva indígena através da escola. “Nós trabalhamos apenas como consultores da comunidade. Os próprios índios elaboraram uma cartilha e um livro de leitura”, conta o lingüista.

Apesar de a alfabetização de índios através de cartilhas já ser antiga no Brasil, o pesquisador da UFRJ diz que o seu significado ainda é pouco discutido. Além de sugerir cautela em relação à escolarização de índios, no caso da escrita, ele é ainda mais crítico. “Do que se está tratando, afinal, quando se fala de ‘alfabetização’? Alguma panacéia em favor da defesa do ‘estoque de conhecimento oral’ via escrita?”, questiona. Segundo Cavalcanti-Schiel, tecnicamente, pode-se dizer que os índios dominam mais facilmente o manejo do código alfabético quando travam conhecimento dele pela aproximação fonética – ou seja, dos sons – da sua própria língua. “Dizer mais que isso é, no mínimo, apressado, e só se justifica como recurso para receber financiamentos em nome do desfraldar de bandeiras tidas como ‘politicamente corretas’”, ataca.

No caso do povo do Araribá, que contou com o auxílio de pesquisadores da Unicamp para a reintrodução do guarani na comunidade através da escola, os textos escritos na língua indígena são todos com temática cultural dos índios. Mas as aulas de guarani, cuja metodologia de ensino foi totalmente criada pelos professores indígenas, começaram pela tradução de palavras e frases do português para a língua indígena. À medida em que o guarani foi se tornando mais familiar aos alunos, as traduções passaram a envolver orações religiosas, e os índios se aventuraram até mesmo em uma versão guarani da primeira parte do Hino Nacional Brasileiro. “Isso tem um valor simbólico para eles, porque torna a língua viva, coloca a língua em operação, em lugares de prestígio”, avalia D’Angelis.

O lingüista da Unicamp também intermediou a ida de uma pesquisadora da mesma universidade para o nordeste do Mato Grosso, com o objetivo de ensinar o português como segunda língua para os Tapirapé de duas áreas, a Tapirapé-Karajá e a Urubu Branco. Nessas comunidades, onde todas as disciplinas são ministradas em tapirapé – exceto o português –, a escola atende alunos de 1º grau, e a partir de 2004, passou a atender também o ensino secundário. “Ela surgiu em 1973, por solicitação dos Tapirapé, no contexto da demarcação da área Tapirapé-Karajá”, conta Maria Gorete Neto, que lecionou ali por três anos. “Eles solicitaram a escola para a luta pela terra”, completa.

Ensino superior
Apenas duas universidades do país já oferecem graduação específica para a formação de professores indígenas. A pioneira foi a Universidade Estadual de Mato Grosso, que criou o curso em 2002 e atualmente conta com 294 indígenas matriculados. Em 2003, a Universidade Federal de Roraima criou, com a mesma finalidade, a Licenciatura Intercultural, que está com 120 alunos em 2005. Segundo o coordenador-geral de Educação Escolar Indígena do MEC, a intenção do governo é induzir e apoiar, através da Secretaria de Educação Superior (Sesu) e da Secad, parcerias com universidades para a criação de novos cursos para professores indígenas. Gesteira estima que até o final de 2005 já existirão pelo menos três novas licenciaturas interculturais. De acordo a Sesu, além desses 414 indígenas cursando licenciaturas, há cerca de 850 cursando habilitações diversas em instituições particulares de ensino superior e aproximadamente 300 estudando em outras instituições públicas do país. São casos como o de João Nonoy, que se tornou em 2003 o primeiro índio do Maranhão com graduação em Direito (que ele cursou em Tocantins), e depois de formado, retornou à aldeia Krikati prometendo lutar por causas ambientais e indígenas.
 

(RC)

 

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Atualizado em 10/04/2005

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