A
fragilidade de um sistema de conhecimento
O cristianismo entre os índios Palikur
Artionka
Capiberibe
Os
Palikur são uma população indígena de aproximadamente
2.000 pessoas que possui uma língua própria filiada à
família lingüística Arawak e está localizada na
Amazônia setentrional, na fronteira Brasil/Guiana Francesa. No lado
brasileiro, habitam as margens do rio Urukauá, na bacia do rio Uaçá,
no município de Oiapoque, extremo norte do estado do Amapá.
No lado francês, vivem principalmente em bairros dentro da cidade fronteiriça
de Saint Georges e de Caiena, capital da Guiana Francesa. Há pelo menos
quatro séculos, a região em que habitam é palco de intensas
relações entre índios e não-índios, não
só oriundos de nações diferentes (portugueses, franceses,
holandeses, ingleses, escravos fugidos da Guiana, brasileiros etc.), mas exercendo
atividades diferentes como missionários jesuítas franceses,
caçadores de escravos, comerciantes, militares brasileiros, gendarmes
franceses, garimpeiros, inspetores de aduana, padres etc.
Hoje,
a região do baixo rio Oiapoque, outrora palco de guerras e disputas
entre os vários povos indígenas que nela viviam, e entre estes
e europeus, é habitada por apenas quatro etnias – Palikur, Galibi
do Oiapoque, Karipuna e Galibi-Marworno. Estes povos compartilham de uma história
econômica, política e religiosa em comum. Dentro desse quadro
de influências compartilhadas, o catolicismo aparece como um pano de
fundo geral, cuja presenca é antiga na região. Segundo fontes
históricas, a missão católica entra no baixo Oiapoque
no primeiro quarto do século XVIII, por meio da ação
de jesuítas franceses. Embora os registros dessas missões apontem
para uma falência precoce de sua atuação, o fato e que,
ao longo dos séculos, as populações indígenas
do baixo Oiapoque tiveram sempre algum tipo de assistência católica.
Atualmente, o catolicismo está representado por duas vertentes diferentes:
um catolicismo conduzido por festas de santo que convive com rituais xamânicos,
presente entre os Karipuna e Galibi-Marworno; e um catolicismo avesso tanto
às festas de santo, quanto ao xamanismo, mais próximo ao catolicismo
romano, exercido pelos Galibi do Oiapoque.
Embora
um dia os Palikur também tenham sustentado práticas católicas
similares ao que se observa hoje entre seus vizinhos Karipuna e Galibi-Marworno,
e que o catolicismo esteja fortemente presente em suas narrativas, são
o único povo na região que se afirma evangélico. A partir
de 1965, os Palikur começaram a ter contato com missões evangélicas
e nos quarenta anos que se seguiram desde o estabelecimento da primeira missão
foi se consolidando entre eles um tipo de religiosidade evangélica
pentecostal. Os Palikur são hoje, em sua maioria, filiados à
Igreja Evangélica Assembléia de Deus, esta Igreja possui duas
sedes no Urukauá e duas na Guiana Francesa, todas com pastores nativos
e o Novo Testamento integralmente traduzido para a língua vernácula.
Desde
a década de 1980, os Palikur do Urukauá empreendem cruzadas
evangelizadoras entre seus vizinhos indígenas. Seu primeiro feito foi
introduzir o evangelho entre os Palikur residentes na Guiana Francesa e levar
a Assembléia de Deus para as aldeias de Caiena e Saint Georges, onde
passaram a disputar os fiéis com a Igreja Adventista do Sétimo
Dia, já presente entre os Palikur da Guiana Francesa. Atualmente, estão
levando sua missão aos católicos Karipuna e apóiam o
trabalho da Missão Novas Tribos do Brasil entre os Galibi-Marworno.
A
introdução da doutrina evangélica é um marco para
essa população. As histórias de vida são sempre
balizadas por um antes de Cristo e um depois de Cristo particulares e coletivos.
Vidas, que antes da conversão eram atormentadas por brigas conjugais,
bebedeiras que terminavam em agressões, ameaças de malefícios
por feitiçaria, passaram a desfrutar de uma certa harmonia e de paz
nas relações sociais. Na imagem coletiva destaca-se a maneira
positiva como é vista a mudança na ocupação espacial
do Urukauá pós-evangelização, geradora de uma
grande concentração populacional em uma única aldeia,
Kumenê, hoje habitada por cerca de 545 do total de 1011 Palikur em território
brasileiro.
Fotos:
Divulgação Ponte entre Povos |
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A
concentração populacional é diretamente atribuída
ao desaparecimento dos xamãs e, com eles, da feitiçaria. Nas
narrativas Palikur os xamãs são vistos como desagregadores,
pois alimentavam, por meio da feiticaria, um estado permanente de vendeta.
As vinganças seriam motivadas pelas mortes causadas, em geral, por
doenças, mas sempre reputadas à feitiçaria. Como relata
o Palikur Emiliano Iaparrá:
“Antigamente
tinha muito pajé aqui, o pajé era mentiroso... antigamente não
tinha doutor, quando o pajé chegava, ele olhava o doente, acendia seu
cigarro de tawary, ficava olhando e dizia: – teu filho não tá
melhorando porque tem outro pajé... que faz a doença. Quando
saía o pajé, era chamado outro, ele acendia o tawary e dizia
que a culpa era do outro. Não tinha jeito de curar, quando a criança
morria o pai ia vingar”.
Com
o cristianismo evangélico operou-se, pelo menos no plano das idéias,
a substituição de um sistema de vinganças por um sistema
do perdão. Essa é a imagem fundamental que caracteriza o antes
e o depois coletivo dos crentes. Diante de tanta pressão e da forma
negativa pela qual os xamãs passaram a ser vistos, o único Palikur
que se manteve atuando como xamã foi viver longe do núcleo crente,
entre a população indígena Galibi-Marworno.
Mas,
se, por um lado, a proposta de substituir um sistema ancestral de vinganças
pela instituição do perdão foi uma estratégia
que encontrou resposta inicial positiva, por outro lado, não parece
ter sido suficiente como meio de sustentação da religião,
em parte porque nunca chegou a eliminar a presença do sistema de agressões,
localizado principalmente nas tensas relações de parentesco
entre os parentes consangüíneos e os parentes por afinidade (sogros
(as), cunhados (as), genros, noras). A noção de irmandade, que
vem junto com a possibilidade de perdoar, confrontou-se com o sistema de idéias
preexistente, demonstrando a impossibilidade de transformar uma sociedade
instituída por consangüíneos e afins em uma utópica
“comunidade de irmãos”.
O
perdão cristão auxiliou na evangelização mas,
nas narrativas de conversão destaca-se um outro elemento cuja força
arrebatadora foi fundamental no estabelecimento e manutenção
da religião pentecostal no Urukauá. Trata-se do batismo com
o Espírito Santo, uma experiência de êxtase religioso que
é descrita como um momento de grande prazer no qual as pessoas sentem
uma vontade irrepreensível de chorar e se alegrar. Esse transe religioso
é o que diferencia os pentecostais dos outros cristãos. Para
essa religião evangélica, Deus se apresenta próximo,
manifesto, e é chamado de “Deus vivo” ou “Deus verdadeiro”,
Ele toma conta do corpo do fiel, proporcionando-lhe grande prazer:
“...quando
eu senti a mão do homem passou na minha cabeça, mas aquela mão
do homem, dava pra você gritar, alegrar, cantar, orar, chorar, mas que
gozo! mas que alegria que a gente recebe! aí eu quase não suportava
mais, eu queria chorar, eu queria gritar, cantar,orar, dançar, correr
pra dentro da igreja pra ajoelhar e pra orar, cantar, pregar, pra fazer tudo!”
(Manoel Labonté Kumenê 1996).
Numa
sociedade indígena o paralelo desse tipo de experiência de contato
com um plano espiritual é encontrado no xamanismo. Os meios de comunicação
de Deus com os homens que aparecem nas narrativa de conversão - o transe
religioso, a manifestação em seres da natureza, os sonhos e
o canto - se assemelham a um universo de conhecimento xamânico. Por
meio do batismo com o Espírito Santo operou-se uma aproximação
entre a religião que acabava de chegar e um referencial de contato
com o mundo dos espíritos previamente conhecido pelos Palikur. Além
disso, o batismo com o Espírito Santo é visto como uma prova
da existência concreta de Deus.
A
experiência de êxtase religioso é, não só
a força de atração, mas a mantenedora dos laços
com a Igreja, porque é considerada como um caso particular daquilo
que se vai vivenciar na vida eterna: gozo, alegria, vida sem infortúnios.
O perdão é a chave para essa vida eterna, pois permite a todo
aquele que se arrepende de seus pecados reaproximar-se da Igreja e estar novamente
apto ao Éden.
O
projeto "Ponte entre Povos” e o registro de uma língua em
vias de desaparecer
Na
medida em que a Igreja foi se consolidando, o universo xamânico foi
ficando cada vez mais restrito, os rituais foram praticamente abolidos e tudo
que restou do universo do xamã foram alguns objetos de cultura material
que passaram a ser produzidos para a venda como artesanato, como é
o caso dos bancos cerimoniais e dos cocares utilizados nos mais diversos tipos
de rituais (de iniciação de meninos e meninas, funerários,
etc). A contar que essa situação já está solidamente
estabelecida, há pelo menos vinte anos, é fácil imaginar
as conseqüências da quebra no sistema xamânico. Atualmente,
duas gerações desconhecem completamente o universo de conhecimento
envolvido nos rituais tradicionais. Apenas algumas pessoas da geração
que está hoje acima dos cinqüenta anos possuem algum domínio
sobre esse conhecimento.
No
entanto, embora “crentes”, os Palikur têm exata noção
do valor daquilo que chamam de “nossa história”, o que
os faz sentir orgulho em relação às suas “tradições”.
Foi esse sentimento que os impulsionou a participar do projeto “Ponte
entre Povos”, um projeto de valorização da música
indígena e da relação entre o conhecimento musical indígena
e o ocidental, que envolve a participação dos Palikur, de quatro
povos indígenas da região do Tumucumaque (Amapá/norte
do Pará) e de uma orquestra sinfônica. A decisão de participar
foi movida pela vontade de relembrar os cantos que faziam parte dos rituais,
pelo temor em perder esse conhecimento e pelo desejo de registrá-lo
para as novas e futuras gerações, por isso escolheram como título
de seu CD a palavra “kiyeminaki” ou “recordar”.
No
CD Kiyeminaki são apresentados apenas trechos de rituais,
mas já é possível ter idéia do quão vasto
pode ser o repertório ritualístico Palikur. Nas músicas
também há um pouco da história da região: os cantos
que falam sobre os negros ou Mekohro - faixas 4 e 5 -, referem-se
às relações históricas estabelecidas com os negros
da Guiana Francesa, revelando uma época em que não existiam
fronteiras territoriais, étnicas ou culturais.
Todos
os cantos são criações dos xamãs e estão
na língua kiyavuyhka ou kiyaptuhka e na língua
de um dos clãs Palikur – eles estão hoje divididos em
seis clãs: Wayveyene, Kwakyieyene, Wakavunhene, Paramyune, Waxeyene,
Wadahyone. O kiyavuyhka é definido tanto como uma língua
cerimonial, utilizada pelo xamã na criação dos cantos,
quanto como uma “língua de respeito”, que um dia pode ter
sido de uso corrente pelo conjunto da população, mas na memória
da geração que tem hoje mais de quarenta anos era a língua
utilizada para se falar com os mais velhos, cercada de regras e proibições.
Atualmente, essas línguas são mal conhecidas pelos mais velhos
e completamente desconhecida aos jovens, são pouquíssimas as
pessoas que possuem um domínio completo de seus vocabulários.
Por isso, no momento de fazer as traduções para o livro que
acompanha o CD foi necessário fazer uma dupla tradução:
primeiro, da língua dos cantos para o parikwaki, a língua
corrente palikur, e, em seguida, do parikwaki para o português.
O
projeto “Ponte entre Povos” explicita a fragilidade daquilo que
se chama conhecimento tradicional. Ao abraçar a religião evangélica,
os Palikur abriram mão de um conhecimento ancestral. Durante o processo
de conversão não lhes pareceu que teriam perdas, miravam apenas
os ganhos - como por exemplo, a paz que o sistema do perdão traria
a sociedade -, hoje, quarenta anos depois, é preciso fazer um grande
esforço para “rememorar” aquilo que um dia acontecia rotineiramente
na vida da aldeia. Hoje, xamãs, kiyavuyhka, cantos e rituais
parecem cada vez mais fazer parte daquilo que os Palikur chamam de “história
dos antigos”.
Artionka
Capiberibe é doutoranda em Antropologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ.
Leia
também, nesta edição, a entrevista
com Marlui Miranda, coordenadora do projeto Ponte entre Povos.