http://www.comciencia.br/reportagens/2005/04/11.shtml
Autor: Vânia Fialho |
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Configurando a mobilização indígena no Nordeste brasileiro Vânia Fialho O mês de abril demarca um período do ano que em a temática indígena subitamente emerge na mídia. As matérias que circulam falam de perdas, violências, fome — o caso Guarani-kaiowá está em destaque nesse início de ano — ressaltando o processo de colonização que parece ter definido de maneira fatalística o destino dos povos indígenas. Sem querer apresentar uma posição alheia a todo esse conjunto de problemas graves, e com a pretensão de voltar a temáticas das políticas públicas direcionadas para a população indígena mais adiante, a proposta desse texto é apontar um caminho alternativo: apesar de todas as mazelas e impossibilidades, intencionamos ressaltar a viabilidade, as potencialidades e a capacidade dos povos indígenas, que vêm assumindo significativa visibilidade no plano nacional. Num contexto bastante amplo — o cenário brasileiro, que comporta cerca de 215 etnias indígenas diferentes — podemos visualizar processos de contato variados e decorrentes de distintos processos de territorilização. No transcorrer dos mesmos, é também possível identificar mecanismos e estratégias de sobrevivência dos indígenas que, se compreendidos a partir de uma concepção dinâmica de cultura, se afastam da perspectiva derrotista. Na atualidade, aqueles que pareciam ser apenas “sobejos” dos povos “autóctones” pré-colombianos vêm demonstrando sua capacidade construtiva de mobilização e passam a ocupar um espaço na nossa sociedade que vai muito além do mês de abril e de alguns capítulos dos livros didáticos que ainda teimam em tratá-los como elementos pretéritos da nossa história. Até 1988, os povos indígenas viveram sob os princípios formais de uma política integracionista; esta previa a incorporação lenta e gradual dos indígenas à comunhão nacional. Com a nova Constituição, estamos diante de um outro contexto que extrapola a percepção legalista da pluralidade social. O reconhecimento formal da diversidade étnica e cultural impulsionou a mobilização de categorias específicas, como a indígena e nos coloca diante de uma nova realidade. A partir dos Artigos 231 e 232 da Constituição Federal de 1988, os indígenas são considerados como atores juridicamente capazes para entrar em juízo, através de suas organizações, rompendo com o status a eles atribuído pelo Artigo 6o do Código Civil de 1916, que os colocava como portadores de capacidade civil relativa, constituindo uma segunda categoria de cidadãos. Entre as últimas décadas de 80 e 90, é possível perceber uma mudança dos pleitos dos povos indígenas. A década de 80 foi marcada pela mobilização dos mesmos no sentido de garantir seus direitos territoriais. Na década seguinte, já aos auspícios da nova Constituição Federal, as reivindicações indígenas começaram a ser caracterizadas por demandas mais amplas, exigindo políticas públicas, que viabilizassem a gestão e o controle dos seus territórios, a sustentabilidade de suas populações, além da estrururação de um sistema educacional e de saúde diferenciados, afeitos às suas especificidades sócio-culturais. Deste plano nacional, tentaremos agora nos concentrar na região Nordeste. Mesmo considerando a situação indígena amazônica fundamental para que possamos entender as mudanças do contexto indígena no Brasil nas décadas de 80 e 90 passadas, há necessidade de se fazer um recorte empírico e analítico, pois o viés ecológico dos movimentos sociais da década de 90 concentrou os interesses das políticas e agências ambientalistas e instituições de fomento na floresta amazônica e nos “povos das florestas”. Os grupos indígenas situados no Nordeste brasileiro ficavam quase que inteiramente de fora da área de interesse das referidas agências; além disso, o conjunto identitário dos índios nordestinos não corresponde àquele idealizado pela mídia e presente no imaginário social baseado em critérios fenotípicos ou de viés culturalista. Os índios misturados, categoria que tenta dar conta das peculiaridades dos processos de territorialização e de afirmação étnica dos indígenas nordestinos, são contemplados pelas ações de organismos governamentais e não-governamentais, pela sua direta relação com a pobreza no meio rural e não pela suas potencialidades organizativas e culturais. Apesar do campo se apresentar inóspito ao acolhimento dos indígenas nordestinos como unidades étnicas diferenciadas, presenciamos também na década de noventa, uma intensa mobilização desses grupos que passam a se impor através de estratégias como: a) realização de uma série de conferências regionais e estaduais em que são produzidos documentos dando visibilidade aos indígenas nordestinos, inclusive requerendo para os grupos indígenas resistentes – como optaram por ser designados aqueles que vivenciam um processo recente de reconhecimento da sua condição étnica pela sociedade envolvente – o mesmo status que qualquer outro grupo indígena brasileiro; b) envolvimento de organizações indígenas nordestinas, como a Apoinme – Articulação dos Povos Indígenas do Nordeste, Leste, Minas Gerais e Espírito Santo – com organizações indígenas de outras regiões do país; c) constituição de associações indígenas como reflexo da autonomia concedida pela Constituição de 1988; e d) empenho na obtenção de recursos para promover projetos de desenvolvimento nas áreas indígenas. A constituição de associações indígenas e os projetos recentemente vinculados a estas organizações têm tido um papel importante na conformação das relações entre índios e não-índios. É através das possibilidades de diálogo e da articulação para absorver recursos de variadas fontes que as sociedades indígenas nordestinas têm conseguido garantir um status que se opõe ao período anterior a 1988, quando os índios eram classificados de acordo com o seu “grau de contato” com a sociedade envolvente. O esforço para alcançar recursos destinados aos projetos de desenvolvimento está também relacionado à busca de afirmação das potencialidades econômicas e organizativas, por parte dos indígenas nordestinos. Mostrando-se capazes de gerenciar recursos e estabelecer prioridades, os índios defendem a sua capacidade de auto-sustentação e se colocam presentes no contexto de diálogo com sociedade envolvente As ações voltadas para o desenvolvimento de projetos econômicos locais, aliadas à formalização de associações indígenas que se proliferaram na década de 90, têm revelado uma nova forma de condução das políticas no plano das relações internas de cada sociedade indígena, assim como também têm apresentado um novo contorno de um campo amplo de relações que envolvem os mais diversos agentes (Estado – no âmbito federal, estadual e municipal –, organizações não-governamentais e agências de fomento). Trata-se, portanto, de um campo extremamente delicado, ficando difícil a afirmação de que os desdobramentos dessas novas formas de mobilização são apenas positivos. Ao coadunarmos dados do processo histórico experimentado pelos povos indígenas, identificamos que as relações desses com o Estado e com outras agências de contato foram estabelecidas a partir de um viés paternalista, assistencialista, que prevê relações de cooptação e de sujeição. Estes são aspectos essenciais para se perceber o grau de complexidade que se apresenta na discussão do caráter pluriétnico da sociedade brasileira. Mas voltando ao nosso recorte inicial, que objetiva ressaltar como a presença indígena vem se configurando no plano regional/nacional, é importante salientar ainda outras tensões e contradições que se apresentam nesse campo. Se, por um lado, vislumbramos o fortalecimento e maior articulação dos indígenas no Nordeste na busca de alcançar uma cidadania mais ampla, do outro, percebemos a intolerância da sociedade brasileira em reconhecer sua própria diversidade. O reconhecimento dos povos indígenas no século XXI, é importante destacar, não deve se restringir à benevolência do aparato legal em admitir a existência de identidades étnicas diferenciadas, nem à bondade da sociedade nacional que insiste numa representação anacrônica de índio como primitivo e em vias de extinção. Trata-se da consolidação de espaços, por força da própria mobilização indígena, que assegurem aos índios sua voz ativa e seu papel de sujeito. As sociedades indígenas têm sido capazes de se apropriar dessa nova semântica das relações interculturais e a sua articulação, através das novas formas de mobilização que se dão no presente, está sendo capaz de, aos poucos, conduzir à sociedade brasileira a uma atitude mais reflexiva sobre a sua identidade. Vânia Fialho é antropóloga, professora da Universidade de Pernambuco e do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da UFPE |
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Atualizado em 10/04/2005 |
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