Grandes
obras priorizam o aguabusiness
e intensificam desigualdades
Muitas das grandes obras públicas em rios
trouxeram benefícios. Nem sempre, porém, os beneficiados foram
as populações locais. No Sistema Cantareira, em São Paulo,
a transposição da bacia do rio Piracicaba retira água do
interior do estado para abastecer a capital. Há mais de 30 anos, várias
cidades e áreas rurais da região são sacrificadas, gerando
uma verdadeira disputa pela água. A barragem de Tucuruí, no Pará,
atende a demanda energética de indústrias do setor privado que
produzem alumínio para exportação. Porém, na área
vivem cerca de 25.000 pessoas sem energia elétrica. Em muitos casos,
as populações ribeirinhas, além de não serem beneficiadas,
pagam pelos custos sociais das obras. São expulsas de suas terras e sofrem
com políticas inadequadas, ou mesmo inexistentes, de indenização
e reassentamento. Os atingidos pela última cheia da barragem do Castanhão,
no Ceará, vivem há quase um ano em acampamentos, aguardando a
construção de suas casas. O Movimento de Atingidos por Barragens
(MAB) estima que, no Brasil, cerca de 1 milhão de pessoas já foram
atingidas por grandes obras em rios e mais 100.000 estão ameaçadas
pelos projetos do Plano Plurianual de Investimentos (PPA).
Recurso vital para os planos ambiciosos de desenvolvimento,
a água tem sido transformada em bem econômico, mediado por relações
mercantis: o que foi chamado de aguabusiness prioriza a construção
de megaempreendimentos em rios para viabilizar a produção de energia
para os grandes consumidores, o abastecimento de grandes centros urbanos e industriais,
a irrigação de grandes áreas, o escoamento da produção
agrícola e, mais recentemente, as atividades turísticas. O economista
Eduardo Magalhães Ribeiro, da Universidade Federal de Lavras (MG), e
a antropóloga Flávia Maria Galizoni, do Instituto de Filosofia
e Ciência Humanas da Unicamp, mostraram num artigo para a revista Ambiente
& Sociedade
“Água,
população rural e políticas de gestão: o caso do
Vale de Jequitinhonha, Minas Gerais”
que a lógica da água como negócio não é a
única existente. Ela convive com a lógica da água como
bem comum, que predomina entre as comunidades rurais, populações
tradicionais e ribeirinhos. Para os pesquisadores, o descompasso entre essas
duas lógicas tem resultado em uma maior concentração de
riqueza e poder nas mãos dos grandes consumidores de água e na
exclusão das comunidades tanto no acesso aos recursos hídricos
quanto nas tomadas de decisão relativas ao destino dos rios. Ribeiro
e Galizoni verificaram que a falta de participação e de poder
decisório das comunidades atingidas têm levado à desobediência
pacífica ou a enfrentamentos e disputas em torno de direitos relativos
aos costumes, às terras e aos rios.
Na última década, tem aumentado o número de pesquisadores,
ONGs, grupos de mulheres, movimentos que se posicionaram contra as grandes intervenções
em rios, apostando na melhor administração das obras já
existentes e no uso comedido dos recursos hídricos. Se, por um lado,
os defensores de grandes obras rotularam os protestos como “oposição
irracional ao desenvolvimento”, por outro lado, na opinião desses
grupos, as inúmeras experiências mal sucedidas não deveriam
ser desperdiçadas na tomada de decisões em projetos em andamento,
como a hidrovia Paraná-Paraguai, a transposição do São
Francisco e o Eixo de Integração no Ceará.
Desenvolvimento: o milagre que não aconteceu
Em 1985, quando o governo anunciou a construção da barragem do
Castanhão, no Ceará, as promessas eram muitas. A obra iria conter
as cheias, irrigar 43.000 hectares, alavancar a economia por meio da agricultura,
propiciar a exploração da pesca, levar água para a capital,
gerar energia e impulsionar o turismo na região. Os impactos negativos
da obra não receberam a mesma propaganda que os possíveis benefícios.
A população foi convencida de que seria um bom negócio
para todos e a barragem foi construída. Hoje, pesquisadores, representantes
do MAB e dos Comitês de Bacias do Ceará, consideram o Castanhão
como uma das barragens que trouxe impacto mais negativo para a região.
Marisete Dantas de Aquino, do Departamento de Hidráulica e Ambiental
da Universidade Federal do Ceará (UFC), critica a falta de uma política
de reassentamento das 4.000 pessoas atingidas pelo projeto. A pesquisadora conta
que “os donos das terras submersas receberam dinheiro e puderam comprar
apartamentos de frente para a praia. Já os que trabalhavam nas terras
receberam casa e terra. De repente, quem foi vaqueiro a vida toda passou a ter
um lote. Além de ser submetida a outra relação de trabalho,
a maioria das pessoas não tinha recursos para tocar a terra, como sementes
e água, por exemplo. Eles não conseguiam sequer cercar o terreno”.
“Essa situação se estende até hoje”, lamenta
José Josivaldo Alves de Oliveira, agricultor atingido pelo Castanhão
e representante da direção nacional do MAB. “As pessoas
não conseguiram se refazer, reconstruir uma nova vida. As famílias
da zona rural atingidas foram transferidas as pressas para as novas áreas.
Não houve um estudo, ou consulta, para saber o que as famílias
queriam, se as terras eram boas e qual era a capacidade de cada propriedade.
Resultado: muitos foram embora, perderam o vínculo com a terra e com
o rio. Os que ficaram enfrentam a falta água e o solo pobre, além
do excesso de famílias em cada área”, denuncia.
As comunidades da zona urbana atingidas pelo Castanhão também
não participaram na tomada de decisões relacionadas aos impactos
da obra. Embora o governo do Ceará tenha feito uma nova cidade para os
moradores de Jaguaribara, uma das mais atingidas, tudo foi feito “dentro
dos gabinetes”, lembra Alves de Oliveira. A Nova Jaguaribara é
completamente diferente da antiga. As pessoas não se identificam com
os modelos das casas, com as cores das portas e com o traçado das ruas.
Nas palavras do agricultor: “parece uma Brasília!”. Na velha
Jaguaribara as pessoas tinham uma relação direta com a água,
com o peixe, lavavam as roupas nas pedras dos rios. Hoje, o rio mais próximo
está a quilômetros de distância. Um descaso ainda maior acontece
com as últimas famílias atingidas pelo enchimento do lago do Castanhão,
em janeiro de 2004, que ainda hoje moram em acampamentos, porque a construção
de suas casas não foi concluída.
Para a professora Marisete de Aquino, o grande problema
foi a falta de um programa sustentável de reassentamento. Em sua opinião,
um programa adequado, em que exista um diálogo efetivo e trabalho conjunto
da Secretaria de Recursos Hídricos e da Secretaria da Agricultura, poderia
dar condições para a nova vida dos reassentados. Já para
o movimento de atingidos, não há reparação possível
para os danos socioambientais que a construção de barragens provoca.
“Não há como avaliar as perdas que sofremos com o discurso
que a barragem traz progresso e desenvolvimento para a região”,
diz Alves de Oliveira. Hoje, o MAB faz parte de um grupo de entidades que são
contrários à construção de barragens. Leia mais
sobre o assunto no artigo “Águas
sem barragens”
No rastro das grandes obras, danos irreparáveis
“Ninguém segura este país”. Este era um dos lemas
do governo da ditadura militar de Médici, que deu início ao projeto
da hidrelétrica de Tucuruí, no Pará. A usina só
foi concluída no governo de Figueiredo e considerada símbolo do
desenvolvimento do país. Mas, hoje, parece que somente na Eletronorte
os impactos negativos da usina não foram percebidos. Philip Fearnside,
pesquisador do Instituto Nacional de Pesquisas da Amazônia (Inpa), comenta
em um artigo “Impactos
ambientais da barragem de Tucuruí: lições ainda não
aprendidas para o desenvolvimento hidrelétrico na Amazônia”
que a Eletronorte sempre defendeu Tucuruí como um “exemplo de desenvolvimento
hidrelétrico na Amazônia”. Porém, das 27.000 pessoas
que foram atingidas pela obra, mais de um terço não teve indenização.
1.783 km2 de florestas foram submersos pelo lago, incluindo os animais que viviam
nessa áreas. O rio Tocantins se tornou inadequado para o desenvolvimento
de muitas espécies de peixes e a diminuição drástica
na biodiversidade causou grande impacto nas populações ribeirinhas.
A hidrelétrica de Tucuruí foi objeto de estudo da Comissão
Mundial de Barragens (CMB).
Veja
na íntegra o relatório
Fonte: Fearnside, Philip M. Impactos
ambientais da barragem de Tucuruí: lições ainda não
aprendidas para o desenvolvimento hidrelétrico na Amazônia. Inpa.
Disponível no site http://philip.inpa.gov.br/
Na época de Médici e Figueiredo não existiam Estudos de
Impactos Ambiental (EIA) e Relatórios de Impactos Ambiental (RIMA). A
própria Eletronorte, explica Fearnside, encomendou estudos que, de acordo
com o pesquisador, além de ficarem limitados aos efeitos imediatos da
represa, em sua maioria foram feitos às pressas e sob pressão
da opinião pública. Ainda segundo ele, o Banco Mundial se recusou
a financiar a construção da barragem devido a preocupação
com os impactos ambientais.
Barragem mais recente, Barra Grande foi construída no final dos anos
90 na região sul do país. Pertence a empresas privadas, ligadas
à produção de energia elétrica e alumínio,
e tem capacidade de gerar 670 MW. Na sua construção foram investidos
cerca de 1,3 bilhões de reais, em grande parte dinheiro público.
Diferente de Tucuruí, Barra Grande teve EIA e RIMA e o exemplo de experiências
anteriores para balizar seus impactos. Isso não evitou que se repetissem
erros que causaram consequências graves para as comunidades locais e o
ambiente. Gilberto Cervinski, coordenador nacional do Movimento de Atingidos
por Barragens (MAB), conta que cerca de 2.000 hectares da mata nativa de araucárias
foram inundados. “Na época que a obra foi avaliada, eles esconderam
que alagaria tanto. Agora que a usina está com 90% de seu funcionamento,
pediram ao Ibama para cortar mais araucária. Além disso, o problema
social é terrível. As famílias estão sendo expulsas
sem os direitos respeitados”, diz. Recentemente o MAB paralisou o funcionamento
da barragem durante sessenta dias para tentar minimizar os danos que as 2.000
famílias expulsas estão sofrendo.
Para Arsênio Oswaldo Sevá Filho, do
Departamento de Energia da Faculdade de Engenharia Mecânica da Unicamp,
os órgãos responsáveis pelo licenciamento das megahidrelétricas
têm desconsiderado os conhecimentos já existentes sobre os cidadãos
prejudicados e os patrimônios que são destruídos pelas obras.
Por essa razão, o engenheiro tem se posicionado contrário à
construção de megaempreendimentos que trarão alterações
de grande porte e transformações radicais no ambiente e na vida
das pessoas. (Leia mais no artigo “Conhecimento
crítico das mega-hidrelétricas: para avaliar de outro modo alterações
naturais, transformações sociais e a destruição
dos monumentos fluviais”).
A disputa pela água
A desigualdade no acesso e consumo de água potável tem transformado
a questão dos recursos hídricos em uma verdadeira disputa pela
água. Muitos dos grandes centros urbanos brasileiros já não
são abastecidos pelos reservatórios mais próximos da cidade.
Em geral, a alternativa tem sido requisitar a contribuição de
áreas mais distantes. O Sistema Cantareira, por exemplo, foi implantado
para suprir a demanda da cidade de São Paulo comprometida pela poluição
da represa Billings e o aumento populacional. Há 30 anos, o sistema retira
da bacia do Rio Piracicaba, no interior do estado, 31 m3/s, que abastecem hoje
9 milhões de pessoas. “A transposição causou um grande
prejuízo para as cidades do interior, que tiveram o seu desenvolvimento
comprometido”, avalia Nelson de Souza Rodrigues, pesquisador da Coordenadoria
de Pesquisa de Recursos Naturais da Secretaria da Agricultura, e há anos
integrante do movimento de recuperação do Rio Piracicaba. Veja
mapa do Site
do Comitê das Bacias dos Rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí.
Assim como Tucuruí, o Sistema Cantareira é um caso mundialmente
conhecido. Mais uma grande obra feita em sigilo, sem a participação
das comunidades atingidas e sem uma avaliação dos impactos de
represar e transpor as águas desses rios na quantidade suficiente para
abastecer São Paulo. As promessas também nunca foram cumpridas.
“Eles prometeram que Piracicaba nunca teria uma vazão menor que
60m3/seg e que nunca teria problemas de abastecimento de água. Logo que
o acordo foi firmado reduziram a vazão para 40 m3/seg, que também
nunca foram cumpridos. A vazão do rio chegou a atingir 16m3/seg”,
lamenta Rodrigues. Além disso, ao mesmo tempo que a água foi transposta
para atender a demanda da capital, o eixo de estímulo de desenvolvimento
econômico do estado foi transferido para o interior, que era abastecido
pela mesma bacia.
Rodrigues conta que hoje Piracicaba, por exemplo,
pega água do Rio Corumbataí. “Esse ‘córrego’
nos socorreu. Nos quatro meses de chuva temos 200 m3/s de vazão. Nos
outros meses, como o esgoto das casas e indústrias é jogado no
rio, a água fica sem condições de tratamento para uso”.
Os problemas na região têm sido minimizados pela excelente atuação
do Consórcio Intermunicipal da Bacia dos Rios Piracicaba,
Capivari e Jundiaí, reconhecido como um exemplar gestor de bacias
hidrográficas em todo o país, sendo inclusive modelo para outros
países. A maior solicitação dos movimentos em prol da bacia
do Piracicaba envolve a desativação gradual do Sistema Cantareira.
O dilema é que quase todas as fontes estão comprometidas e os
paulistanos não têm de onde tirar água e a saída
mais viável parece ser a da racionalização do consumo.
(SD)
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