Integração
do São Francisco prioriza
desenvolvimento econômico regional
O projeto de Integração do Rio São
Francisco com bacias hidrográficas do Nordeste setentrional tem uma ambição
que há mais de cem anos aflige governo e sociedade: acabar com o problema
da seca no semi-árido brasileiro. A proposta tem uma história
tão antiga quanto a seca na região e o debate, que também
é tão antigo quanto polêmico, é polarizado pelos
argumentos contrários ou favoráveis ao projeto. De um lado, o
governo afirma que a Integração do São Francisco é
a única obra viável, econômica e geograficamente, para garantir
a segurança hídrica da população do semi-árido.
De outro, alguns dos pesquisadores que estudam o semi-árido garantem
que o montante investido pelo governo é desperdício de dinheiro
público. Para eles, a solução para o semi-árido
não estaria em “obras faraônicas”, mas na multiplicação
de pequenas obras que o sertanejo conhece melhor do que ninguém.
Fotos: André Gardini |
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Rio São Francisco divide os estados de Alagoas e Sergipe |
Se por um lado o governo afirma que o objetivo principal do projeto
é salvar a população do semi-árido do sofrimento
da seca, melhorando as condições de vida de cerca de 12 milhões
de brasileiros, pesquisadores como Manuel Correia de Andrade, professor de geografia
da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), contestam, dizendo que os interesses
de grandes grupos econômicos tendem a ser favorecidos, “porque o
retorno do capital investido na grande empresa é mais rápido e
porque os grandes empresários têm maior poder de pressão
e, por isso, conseguem mais facilmente as vantagens”. Joaquim Correia
de Andrade , professor de geografia da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE),
e filho de Manuel, também questionou a utilidade do projeto. “O
que adianta mais um megaprojeto, se amanhã essas águas, como acontece
no médio São Francisco, irão beneficiar basicamente grupos
empresariais que recebem uma infra-estrutura totalmente preparada pelo Estado
a custo zero?”, declarou. Manuel Correia, que estuda a questão
nordestina há 53 anos, explica que existem outras questões envolvidas
na Integração do Rio São Francisco, que deveriam ser pensadas.
Uma delas está ligada à estrutura fundiária. Para ele,
o grande problema na região é a questão da propriedade
da terra. “Fizeram uma política de irrigação no médio
São Francisco, mas em vez de fazerem programas de pequenas propriedades
e cooperativas, fizeram um programa ligado às grandes empresas”,
critica. “Então vêm empresas do exterior ou de outras regiões
do Brasil, montam empreendimentos e levam o lucro. O que fica é só
o salário mínimo dos trabalhadores”.
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Rio São Francisco: geração de energia em
Paulo Afonso-BA |
De opinião oposta, João Urbano Cagnin,
coordenador dos estudos de integração de bacias da região
Nordeste no âmbito do Ministério da Integração Nacional,
acredita que a integração de bacias no Nordeste é sinônimo
de promoção da igualdade de oportunidade para os brasileiros.
“Uma pequena quantidade de pessoas serão removidas, como acontece
em todas as grandes obras, porém elas têm a possibilidade de ‘ficar
melhor’, pois serão indenizadas corretamente pelo governo”,
afirma. “Eu defendo o projeto, pois é um dos melhores projetos
que temos hoje”, acrescenta. “Os projetos de transferência
de renda para os mais pobres são projetos auxiliares. Esses projetos
têm sua importância, porém não conseguem levar desenvolvimento
para a região. Já o projeto em questão é um projeto
estruturante, ou seja, visa a geração de desenvolvimento humano
e econômico para a região”. Para ele, as alternativas
de combate à seca, como, por exemplo, as cisternas, a dessalinização
da água do mar e a utilização de águas subterrâneas,
não resolveriam o problema de desenvolvimento da região Nordeste.
Não se trata apenas de água para beber, mas para manter as atividades
industriais, comerciais e agrícolas da região, e essas atividades
exigem uma demanda grande de água. “Sem esse recurso hídrico
as indústrias novas não se instalam e, pior, as que estão
lá não conseguem manter suas atividades. Existem casos de indústrias
que deixaram de ir para a região porque em época de seca o governo
não garante a manutenção de suas atividades, devido à
falta de água”, afirma Cagnin.
A polêmica não é baseada somente
na necessidade ou não da transposição: distribuição
e uso das águas também estão em questão. “O
que adianta ter água na minha porta se eu não terei acesso a essa
água? E se eu tiver acesso a essa água eu não vou ter terra
para cultivar? A questão passaria necessariamente pela água?”,
questionou Joaquim Correia.
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Os dois canais do projeto
Fonte: Rima |
O projeto
O atual projeto de Integração, sob
responsabilidade do Ministério da Integração Nacional (MIN)
faz parte do Programa de Desenvolvimento Sustentável do Semi-Árido
do Nordeste, junto com o Projeto de Revitalização
do Rio São Francisco, do Ministério do Meio Ambiente (MMA). Com
recursos do governo federal – cerca de R$ 4,5 bilhões – o
projeto de Integração visa captar 3,5% da vazão disponível:
dos 1.850 m³/s disponíveis, 63,5 m³/s serão retirados.
O projeto pretende levar água para as bacias dos rios Jaguaribe (CE),
Apodi (RN), Piranhas-Açu (PB e RN), Paraíba (PB), Moxotó
(PE) e Brígida (PE), através da construção de dois
canais: o Leste levará água para Pernambuco e Paraíba,
o Norte, já denominado Celso
Furtado pelo presidente Lula, atenderá aos estados do Ceará,
Paraíba e Rio Grande do Norte. As captações serão
feitas em dois pontos: em Cabrobó e no lago da barragem de Itaparica,
ambos abaixo da barragem de Sobradinho.
O eixo norte do projeto é composto por aproximadamente
402 Km de canais artificiais, quatro estações de bombeamento,
22 aquedutos e seis túneis. Nesse eixo ainda está prevista a construção
de duas centrais hidrelétricas localizadas no reservatório de
Jati e Atalho, ambas no estado do Ceará, com 40 Mw e 12 Mw de capacidade,
respectivamente. O eixo leste terá aproximadamente 220 Km, com 5 estações
de bombeamento, 5 aquedutos, 2 túneis e nove reservatórios. Na
opinião de Antonio Carlos Robert de Moraes, professor de geografia da
Universidade de São Paulo (USP), “o projeto é uma verdadeira
‘prótese territorial’, isto é, ‘grandes sistemas
de engenharia’ para usar uma expressão do Milton Santos”.
Para o pesquisador, “uma obra desse calibre deve ser analisada do ponto
de vista ambiental e os processos naturais, por outro lado, as novas relações
sociais e a especulação do mercado fundiário que irão
surgir, com o início das obras”.
Divergências técnicas, entrave
judicial
Enquanto políticos e pesquisadores debatem sobre a utilidade e os efeitos
do projeto de transposição, a Agência Nacional das Águas
(ANA) e o Comitê da Bacia Hidrográfica do São Francisco
(CBHSF) não conseguem entrar em um acordo a respeito da disponibilidade
hídrica do Rio São Francisco. O Comitê afirma que há
um saldo disponível de 360 m³/s, mas a ANA aponta um número
maior, 434 m³/s. A afirmação do Comitê de que 335 m³/s
já estão outorgados é rebatido pela ANA, que afirma que
apenas 91m³/s estão sendo efetivamente usados.
De acordo com a ANA, o consumo de água na Integração do
Rio São Francisco, depois de pronta e funcionando a todo vapor, não
deverá exceder os 327 m³/s, confirmando que há disponibilidade
hídrica até 2025 para atender as demandas da Integração
do Rio São Francisco. Fato este que, Moraes, professor da USP, questiona.
Para ele, existe um debate onde os interesses pró ou contra comandam
o raciocínio e alguns fundamentos técnicos básicos não
estão claros. “Os dados [sobre vazão] da Companhia Hidrelétrica
do São Francisco (Chesf)”, afirma, “não batem com
os dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe). Estão querendo
fazer a transposição, mas no alto curso do rio, em áreas
de nascentes. Há problemas de assoreamento que são evidentes e,
sem dúvida nenhuma, qualquer que seja o dado de vazão, isso vai
influenciar. O assoreamento é visível, há um desmatamento
pesado, há lugares onde o rio está pouco profundo”.
O projeto de Integração já acumulou sucessivas derrotas
e vitórias por parte do governo federal. A primeira série de audiências
públicas (que aconteceram entre os dias 06 a 20 de dezembro de 2004)
foi cancelada por força de liminar. O juiz da 14° Vara da Justiça
Federal, João Batista de Castro Júnior, acatou argumentos de que
espaços democráticos e legítimos de expressão da
sociedade não estavam sendo considerados. Uma semana antes, o Conselho
Nacional de Recursos Hídricos (CNRH), que deveria votar o parecer técnico
da ANA que comprova a disponibilidade hídrica para o projeto, também
teve sua reunião cancelada por ação judicial. A reunião
do CNRH, convocada em regime de urgência pelo ministro da Integração
Nacional, Ciro Gomes, pretendia derrubar o parecer do CBHSF que restringiu o
uso das águas do projeto apenas para consumo humano e dessedentação
de animais. O governo federal detém 29 assentos no CNRH, o que lhe garante
maioria absoluta no colegiado de 56 conselheiros. No dia 17 de janeiro, o governo
obteve uma vitória. O CNRH votou e aprovou o projeto de Transposição.
“O CNRH analisou a nota técnica 492 da Agência Nacional de
Águas e constatou a existência de água suficiente no rio
São Francisco para realizar a integração de bacias, sem
qualquer prejuízo econômico, ambiental e social para os atuais
usuários”, afirmou o ministro interino da Integração
Nacional, Pedro Brito.
Com a aprovação da ANA e do CNRH para o início das obras
e o fim das audiências públicas, realizadas pelo Instituto Brasileiro
do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), entre os
dias 14 de janeiro e 02 de fevereiro, o próximo passo deverá ser
a concessão da licença ambiental. De acordo com o Ministério
da Integração Nacional, em fevereiro inicia-se o processo de licitação.
As obras deverão começar em abril.
Semi-árido: região de contrastes
A região do Nordeste setentrional, que abrange parte do projeto de Integração
do Rio São Francisco, tem características peculiares. Apesar do
senso comum definir a região nordeste como um espaço “total”,
ou seja, de características homogêneas, ela apresenta características
diversas. Aziz Ab'Saber, professor da Universidade de São Paulo (USP),
explica que o Nordeste não possui apenas um tipo de relevo, ecossistema,
cor das águas: “é impossível trabalhar um projeto
desse tipo sem trabalhar todas as situações ao longo dos diferentes
terrenos”, explica. Para Ab'Saber, o primeiro passo deveria ser avaliar
bem o rio e sua queda, o tamanho das propriedades, os confrontos entre os donos
de fazenda de gado e o povo que faz culturas de vazantes. “Cultura de
vazante é aquela que vai para as feiras do sertão, mais barata”,
explica, e acrescenta que para o sertanejo o único espaço para
a agricultura são as margens do rio, porque ele não tem a possibilidade
de conquistar as terras altas e as encostas das colinas, que estão nas
mãos dos fazendeiros. A outra opção para o agricultor seria
o cultivo longe do rio, mas aí o problema é a falta da água.
A mancha semi-árida se define por uma região onde a evaporação
é superior às médias pluviométricas. As chuvas são
mal distribuídas no espaço e no tempo, variando entre 400mm e
600mm anuais, enquanto a perda de água por evaporação,
propiciada pelos ventos, temperaturas altas e características da vegetação,
pode chegar a 1800mm anuais. Apesar do Relatório de Impacto do Meio Ambiente
(RIMA) da Integração do Rio São Francisco afirmar que os
longos períodos de seca são fenômenos imprevisíveis,
de acordo com alguns especialistas em climatologia a seca é previsível
e explicável : os dois mecanismos que ajudam a prognosticar as secas
são a pressão atmosférica e a temperatura.
As características climáticas introduzem um aspecto peculiar
ao semi-árido nordestino e influenciam na composição do
solo (pedologia), na forma do relevo (geomorfologia) e na vegetação.
Jurandyr Ross, professor de geografia da USP, explica que o fator climático
entra como um fator importante, mas isso não quer dizer que toda a região
tenha características pedológicas iguais. “O semi-árido
é um mosaico de solos, predominantemente solos rasos e solos pedregosos
por causas das condições climáticas”, porém,
continua, “dependendo das condições litológicas [rochas]
e morfológicas, pode ter uma variação das características
dos solos. Mais ou menos pedregosos, mais ou menos férteis, mais ou menos
profundos: uma diversidade muito grande. No entanto, a gente generaliza, dizendo
que os solos do Nordeste são rasos e pedregosos, mas lá não
é tudo a mesma coisa”. Como Joaquim Correia, Manuel Correia, Moraes
e Ab'Saber, Ross também se mostra preocupado com a finalidade do projeto
de Integração. Ele argumenta que a agricultura feita pelo caboclo
que vive no semi-árido tem uma enorme carga cultural. “Não
é uma agricultura comercial, mas uma atividade familiar de baixa produtividade.
É uma agricultura de 400 ou 500 anos que se faz no semi-árido.
Qual é o benefício que um processo de irrigação
traz? Muitos. Mas você não transforma o agricultor de agricultura
cabocla, do dia para noite, em agricultor de agricultura irrigada”, completa.
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O rio gera energia também para Xingó-AL |
A questão então, de acordo com muitos
pesquisadores, é se o projeto de Integração beneficiará
a população que realmente sofre com a falta de água ou
se o investimento bilionário do governo fomentará ainda mais a
terrível concentração de renda do Brasil. Se a prioridade,
como afirmou Cagnin, é o desenvolvimento econômico do Nordeste,
quem garante que este desenvolvimento econômico beneficiará os
mais necessitados e não somente as empresas de maior porte? Se a água
irá salvar o semi-árido, questionam alguns pesquisadores, porque
a decisão do CBHSF de direcionar as águas apenas para uso humano
e dessedentação animal foi derrubada pelo CNRH? “Não
se trata de enxergar o projeto como algo impossível de ser feito”,
comentou Joaquim Correia. “É possível e pode ser viável,
mas nesse momento, seria ela a prioridade? Ou estariam prevalecendo os interesses
políticos?”.
O repórter André Gardini viajou a Pernambuco, Alagoas e Bahia
com o apoio da TAM e da Chesf.
(AG)
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