Quais
os impactos sócio-ambientais da transposição do rio São Francisco?
Arlete Moysés Rodrigues
A tecnicização do território
Todos os componentes da sociedade são promotores do desenvolvimento,
embora este seja atribuído apenas aos detentores de capital, que recebem
os “frutos” do progresso. Os demais – a maioria – ficam
com os “frutos podres” pois não têm acesso aos bens
e serviços produzidos.
As inovações tecnológicas transformam, modificam, alteram
o espaço geográfico em todas as escalas (local, nacional e global).
Paul Virilio, ao escrever sobre os motores da história, nos mostra como
as inovações técnicas transformam as relações
entre os indivíduos com a natureza em todas as escalas. Os motores a
vapor, a explosão, o elétrico, o foguete e o da informática,
contribuíram para uma “tecnicização do território”,
tornando assim o espaço geográfico cada vez mais mecanizado com
profundas alterações no modo de produzir, nas formas de circulação
e de consumo do espaço.
No atual período histórico, que o geógrafo Milton Santos
chamou de meio técnico científico-informacional, está cada
vez mais presente o uso da tecnologia para o planejamento urbano, rural, regional.
Essa relação passa a ser tão intrínseca que alguns
autores o denominam de era da tecnociência ou tecnosfera ressaltando a
inseparabilidade de ambas.
Assim, o progresso acelera-se. As mazelas são consideradas desvios do
modelo: os problemas urbanos são atribuídos à falta de
planejamento, à migração, etc. Os problemas ambientais
à pobreza que não sabe “preservar”, ou seja, que desmata,
que joga lixo nas águas, etc. Ou seja, os impactos não são
analisados em sua complexidade, mas atribuídos a falhas técnicas
e/ou humanas. As análises dos impactos são simplistas, definem
como prioridade a mitigação dos mesmos no “meio-ambiente”
nos locais onde haverá empreendimentos.
Os impactos sócio-ambientais
Praticamente todos os elementos da natureza e a própria natureza se transformaram
em “recursos”, ou melhor, mercadorias. A água, elemento vital,
é denominada “recurso” hídrico. A escassez da água
faz com que se procurem formas de “administrá-la” com o “gerenciamento
de recursos hídricos”, de “gestão de bacias hidrográficas”,
criando-se órgãos administrativos como os comitês de bacias
hidrográficas que tentam “organizar” a captação,
a distribuição, o uso da água.
Mas as bacias hidrográficas integram a paisagem e não podem ser
isoladas sem considerar a localização, características
do relevo, de clima, de drenagem, de ocupação sócio-espacial,
das atividades econômicas das áreas onde se inserem. Também
não é possível considerar que a dinâmica das bacias
hidrográficas possa ser definida nos limites administrativos (município,
estado, país). Basta lembrar que a bacia amazônica drena mais de
um país e que a do São Francisco banha mais de um estado brasileiro.
Além disso, os comitês de bacias hidrográficas não
dispõem de instrumentos para analisar ou intervir no processo de ocupação
do território. Ocorrem centenas de intervenções pontuais
do poder público, da iniciativa privada, desarticuladas entre si e dos
comitês. Também não estão integradas com propostas
gerais do chamado planejamento sócio-ambiental.
As alterações do regime hídrico devem ser, assim, objeto
de compreensão e análise da complexidade e não apenas “imaginar”
a água como um recurso isolado. As mudanças de cursos de rios,
de captação de águas, têm sido relacionadas apenas
à questão do abastecimento e não à complexidade
do significado que envolve uma área drenada por um rio e seus afluentes.
Os “recursos hídricos” são problemáticos em
todas as bacias hidrográficas, pois o recurso água é rapidamente
exaurido por empreendimentos que comprometem sua qualidade e quantidade com
soterramento de nascentes, derrubada de matas galerias, impermeabilização
do solo, alteração do escoamento das águas pluviais.
Indiretamente como produto do processo de industrialização e
urbanização, altera-se a quantidade e qualidade de água
disponível. Escondem-se os rios (canalização), ocupam-se
várzeas, esgotos são despejados sem tratamento, sedimentos são
carreados pelas chuvas provocando o assoreamento de rios, córregos, represas.
As ilhas de calor (micro-clima) interferem na precipitação e,
portanto, na quantidade de água das chuvas que abastecem os mananciais
hídricos. Na metrópole paulista está ocorrendo deslocamento
das chuvas de convecção (verão) das áreas de mananciais
para as áreas centrais, dada a maior temperatura dessas áreas.
A mudança climática global interfere no clima, na pluviometria
mundial. Altera-se, em conseqüência, a dinâmica da circulação
das águas superficiais e as possibilidades de uso, tornando-a mais escassa
e cara.
Diretamente há inúmeros exemplos de interferência na problemática
das águas com alteração de cursos de rios, como o do Rio
Pinheiros que teve seu curso revertido para gerar energia elétrica, retificação
de rios meândricos, transferência de águas de uma bacia para
outra, tornando-a “furada”, com água captada para outra área
alterando a dinâmica natural.
A grande obra do governo: o projeto São
Francisco
O Projeto de Integração do Rio São Francisco com as Bacias
do Nordeste Setentrional, que pretende ser empreendido pelo governo Lula, sobretudo
pelo Ministério da Integração Nacional, da maneira que
está sendo proposto é um equívoco. Este projeto localiza-se
em área de clima semi-árido, com pequena precipitação
pluviométrica e temperatura elevada. A transposição de
rios, córregos de uma bacia hidrográfica localizada em clima semi-árido
provocará conseqüências que não estão sendo
analisadas. O que ocasionará “furar” a bacia do Rio São
Francisco? As análises consideram todas as possibilidades que a interferência
na natureza provocaria na região? Analisa-se a complexidade sócio-espacial?
Trata-se, na verdade, de um macro sistema de engenharia, onde o espaço
é pensado de forma geométrica e não geográfica,
ou seja, calcula-se a vazão para uma possível retirada –
3,5% da vazão total do Rio São Francisco, a capacidade das estações
de bombeamento, a extensão dos aquedutos, o diâmetro dos túneis,
e pouco, ou nada, se estuda sobre a complexidade sócio-espacial da região,
sobre os impactos sociais. Afinal, de que adiantaria levar água para
uma região onde a concentração fundiária é,
ainda, o principal obstáculo a ser transposto? De que adiantaria levar
água para uma região onde as pessoas não têm terra?
E por último, quem usará essa água? O problema fundamental
é a cerca das propriedades, ou a seca?
Com o investimento previsto de cerca de 5 bilhões de reais, o Projeto
de Integração visa inserir, ainda mais, a região Nordeste
na Divisão Internacional do Trabalho. A região de influência
dos eixos de transposição – Norte e Leste, funcionará
por uma racionalidade exclusiva do valor de troca em detrimento do valor de
uso, transformando-se, assim, em mais um espaço da “globalização”.
Verifica-se, assim, que a forma de atuação, intervenção
nas bacias hidrográficas não difere do processo geral de apropriação
e propriedade e do ideário do desenvolvimento entendido como progresso.
Essas intervenções são analisadas como se formassem um
circuito fechado do empreendimento que se pretende implantar. Mas a natureza
não tem fronteiras estabelecidas pelos homens nem seu tempo é
semelhante ao tempo social. A transferência de água de uma bacia
para outra, de uma área da bacia para outras regiões é
considerada apenas em aspectos pontuais sem considerar a complexidade do que
ocorre e ocorrerá com esses processos.
Genericamente os estudos aparecem mais como um conjunto de justificativas para
os empreendimentos com propostas de mitigações de intervenção
definidas a priori pelos empreendedores públicos e privados. Consistem
em repor vegetação, implantar pequenos parques em outros locais
ou nas vizinhanças.
O efeito cumulativo e/ou indutor, o crescimento das atividades econômicas,
a expansão das áreas ocupadas, o crescimento da população,
a alteração de vazão dos rios em função da
ocupação das várzeas, maior consumo de água, a evapo-transpiração,
as alterações na infiltração das águas pluviais,
considerando a impermeabilização, destruição das
matas galerias em especial nas áreas de nascentes, etc., alterações
climáticas mundiais, de micro-climas, não são sequer mencionadas.
Dada as formas de apropriação/propriedade de um elemento da natureza
hoje escasso, procura-se gerir a natureza incluindo-se o que se chama de participação
social nas audiências públicas dos Estudos de Impactos Ambientais
(EIA), restritos ao empreendimento, utilizando-se das palavras mágicas,
a busca do desenvolvimento sustentável. Não se tem notícia
de análise de estudos prévia dos impactos de vizinhança
ou do debate sobre os planos diretores de todos os municípios que serão
atingidos como estabelece a Lei 10257/01 – Estatuto da Cidade –
para averiguar se uma obra dessa envergadura atende aos princípios da
função social da propriedade.
Para tratar da transposição do Rio São Francisco deve-se
considerar que haverá uma alteração em toda a dinâmica
territorial do país. Toda a sociedade brasileira deveria ter acesso aos
propósitos e debater essa problemática e não apenas o que
se define como áreas dos comitês da Bacia do São Francisco.
Afinal, como já dito, a natureza não tem fronteira administrativa.
Não é possível considerar válido que o que foi
proposto na época do Império, tenha sido retomado no final do
século XX e seja implementado no século XXI sem que se analise
o impacto social, econômico, político, considerando o que se hoje
se conhece dos processos da natureza e da sociedade.
Arlete Moysés Rodrigues é professora
livre docente em geografia do IFCH-Unicamp.
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