Gestão
das águas e soluções técnicas tradicionais
são alternativas à transposição
“Riscos previsíveis, conseqüências
incalculáveis”: é o título do Manifesto ao País
contra a Transposição do Rio São Francisco, divulgado em
novembro de 2004 e assinado por dezenas de entidades civis. O documento gerou
liminares em diferentes estados nordestinos que provocaram o adiamento
da aprovação e do início da obra. Os argumentos contrários
ao projeto federal são de naturezas diversas – sociais, econômicas,
hídricas, ambientais, políticas e históricas. As soluções
viáveis apontadas por estudiosos de recursos hídricos são
também tão numerosas quanto as críticas ao projeto. De
acordo com muitos pesquisadores, o problema do Nordeste não é
a falta d’água, mas a má gestão na distribuição:
são possíveis diversas alternativas à transposição,
como a integração dos reservatórios (águas represadas)
com as adutoras por meio de canalização, assim como o reuso da
água, a construção de cisternas, a utilização
das águas de subsolo ou, ainda, a dessalinização.
O Nordeste tem potencial de recursos hídricos para se abastecer, garante
o engenheiro agrônomo e estudioso de recursos hídricos João
Suassuna, da Fundação Joaquim Nabuco, no Recife (PE). “A
água em açudes atende ao dobro da demanda atual”. Segundo
ele, existem cerca de 70 mil reservatórios e 400 açudes públicos
que acumulam 37 milhões de metros cúbicos de água. É
o maior volume de água represada em regiões semi-áridas
do mundo. Metade desse volume está no Ceará, um dos estados a
receber parte da vazão transposta do Rio São Francisco. A maior
represa do Nordeste também está localizada no Ceará, o
Castanhão, com 6 milhões e 700 mil metros cúbicos de água.
“Capaz de abastecer a grande Fortaleza por várias gerações”,
diz Suassuna. O sistema de açudes foi criado pelo Departamento Nacional
de Obras Contra a Seca (DNOCS) a partir de 1909. Até hoje a água
desses açudes irriga menos que 120 mil hectares, mas tem potencial para
irrigar até 700 mil hectares no semi-árido. Ou seja, falta gestão,
avalia Suassuna.
Integração de açudes e canalização
No Rio Grande do Norte, outro estado a receber águas do São Francisco
como prevê o projeto, e onde a classe política se uniu em defesa
da obra, está a represa Armando Ribeiro Gonçalves, a segunda maior
do Nordeste, que tem capacidade de 2 milhões e 400 mil metros cúbicos
de água. Para Suassuna, portanto, “falta vontade política
de distribuição das adutoras e de canalização”.
Uma das alternativas que ele defende é a interligação das
represas. “Seria uma opção mais barata que o projeto gigantesco
da transposição, que puxa a água do Rio São Francisco
a 500 quilômetros de distância”.
João Abner Guimarães Júnior, professor da Universidade
Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), defende a mesma alternativa: “é
preciso integrar os sistemas que captam água dos açudes médios
aos sistemas das adutoras (açudes maiores) para garantir a oferta de
água no abastecimento das cidades. As adutoras deveriam ter uma capilaridade
maior”. O pesquisador diz que acreditava no novo momento do Brasil de
gestão dos recursos hídricos com a atuação dos comitês
das bacias, “mas a transposição atropela tudo isso”.
Os Comitês de Gerenciamento de Bacia Hidrográfica foram criados
em 1994, pela Lei 10.350/94. Eles são conhecidos como os Parlamentos
da Água. Têm, portanto, função deliberativa, com
poder para decidir sobre questões relacionadas ao uso da água,
além de atuarem como fóruns de debate. Os primeiros comitês
de bacias de rios estaduais surgiram no Rio Grande do Sul, em 1988 (Comitê
da Bacia do Sinos) e 1989 (Comitê Gravataí).
Para João Abner, a transposição do Rio São Francisco
reproduz o velho. “O novo é a gestão de recursos hídricos”,
diz ele em referência à política de comitês. “A
política hídrica do governo é a mesma desde o Império,
de fazer grandes obras. Não é à toa que esse projeto é
do século XIX e dá continuidade à indústria da seca.
Ficamos a mercê de lobbies que querem os recursos públicos”,
conclui.
Águas da chuva e do subsolo
Suassuna apresenta ainda outras quatro alternativas ao desabastecimento de água
no Nordeste: a utilização das águas de subsolo, a construção
de cisternas, o reuso da água e a dessalinização. “Devemos
ir atrás dessas águas de aqüíferos, especialmente
nas regiões sedimentares, que têm capacidade de acumular água”,
afirma o engenheiro. Segundo ele, mais de 60 mil poços foram perfurados
em programas do governo, dos quais 35% estão secos ou obstruídos,
em alguns casos a água está indaquada para uso e salinizada. “Isso
acontece em parte devido à questão natural – a geologia
local faz secar – e em parte devido à falta de gerenciamento, porque
não recebem manutenção”, diz Suassuna. A construção
de cisternas rurais também é defendida pelo engenheiro. Com apoio
de ONGs internacionais, o atual governo federal promete a construção
de um milhão de cisternas em regiões onde a transposição
não pode chegar, como a caatinga e os pés de serra. Uma cisterna
com capacidade para 15 mil litros custa cerca de R$ 1,5 mil e pode abastecer
uma família de cinco pessoas por sete a oito meses de estiagem. “Se
bem manejada, essa água não se contamina e tem boa qualidade”,
diz Suassuna. Abner sugere o mesmo recurso. “A solução para
a seca está na época das chuvas. É preciso gerar excedentes”,
diz o professor, que destaca ainda a vantagem de ser uma água sem custo.
Fotos: Adriana Menezes |
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Cisterna construída em aldeia indígena |
Na Aldeia Pancararu, que fica entre Jatobá,
Tacaratu e Petrolândia, há casas com cisternas. Os índios
também têm uma bomba exclusiva na beira do Rio São Francisco.
Mas os 8,1 mil hectares de terras indígenas (ao lado da represa de Itaparica)
ainda não têm irrigação nem canalização.
Eles dependem de carro-pipa ou buscam água em latas carregadas por jegues.
O pajé Miguel reclama: “O rio tem muita riqueza. Aqui dá
tudo, não precisa nem adubar. Mas a água até para beber
é sacrifício”. Estar próximo ao rio, portanto, não
representa solução ao abastecimento nem à irrigação.
O professor Abner critica a falta de percepção dos governos quanto
à diferença entre o uso da água para consumo humano e para
irrigação. Ele lembra ainda a falta de integração
das soluções isoladas dentro de um plano mais “macro”,
com uma visão nacional.
Reciclagem e dessalinização
O reuso da água, segundo Suassuna, pode ser uma outra solução
hídrica para o Nordeste. “Aqui nós damos descarga no sanitário
com água tratada. Isso custa muito caro. Precisamos fazer um programa
de economia de água”, defende. Uma das formas é reutilizar
a água do banho, da cozinha e outros usos, por meio de filtro de calcário,
para fins menos nobres como jardins e descargas sanitárias. A última
alternativa, que Suassuna defende no lugar do projeto da transposição,
é a dessalinização da água para fins de abastecimento,
que tem um custo maior que as idéias anteriores mas que pode resolver
o problema da água existente nas áreas de geologia cristalina.
Ele alerta, no entanto, que os programas precisam ter manutenção
dos equipamentos, porque as membranas importadas se inutilizam quando obstruídas
pelo sal. Ou seja, inicialmente dá certo, mas sem manutenção
pode acabar.
Desenvolvimento e desigualdade
Doutoranda em recursos hídricos, a brasileira Renata Marson Teixeira
de Andrade, do Energy and Resources Group na Universidade da Califórnia
(em Berkeley, EUA), lamenta que não exista uma contra-proposta que reúna
alternativas possíveis à transposição. “Não
existe um projeto único em oposição ao que o governo pretende”.
Para ela, é importante questionar o real objetivo do projeto. Ao contrário
do que o governo apresenta, como uma solução para a seca do semi-árido,
Andrade acredita que a transposição tem a finalidade única
de promover o desenvolvimento econômico. Portanto, mais que encontrar
alternativas à seca, é preciso pensar em outras formas de desenvolvimento
para a região. “Colocaram no mesmo nível a questão
do desenvolvimento com o abastecimento humano”, também argumenta
o professor Abner. “É um equívoco” (Leia artigo da
pesquisadora nesta edição).
“A questão técnica da água é fácil
de resolver. Mas o problema vai além da questão da água”,
alerta Andrade. Segundo ela, há economias que dependem menos de água,
apesar de ser um bem básico do qual dependemos para todas as coisas.
“É preciso manejar as perdas, manejar as demandas, reciclar a água
e pensar na questão social”, enumera. Na sua avaliação,
o projeto realizará obrigatoriamente várias desapropriações,
certamente de quem já vive lá e que não terá acesso
depois à compra da terra, devido ao alto valor destinado a investidores.
Portanto, levar o rio para o Nordeste setentrional pode não significar
água para a população mais pobre. A desigualdade continua.
Quando se pensa em desenvolvimento, lembra Andrade, deve-se levar em conta o
benefício à população local.
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Município de Piranhas no Vale do São Franscisco |
A desigualdade perceptível em grandes centros
brasileiros também pode ser vista com facilidade no trajeto de Xingó
(SE) a Sobradinho (BA), que corresponde a cerca de 800 quilômetros do
baixo ao médio São Francisco. Dentro desse universo que margeia
o rio, há desde pescadores que dependem da vitalidade do "velho
Chico", até pequenos produtores sem irrigação. Há
também os grandes produtores inseridos em programas de desenvolvimento,
como no vale do Rio São Francisco, em Petrolina (PE), onde a irrigação
beneficia grandes empresas e permite produções de uvas, mangas
e outras frutas voltadas para o mercado externo. Há também exceções
como o Projeto Apolônio Salles, em Nova Petrolândia (PE), mantido
pela Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (Chesf), que concedeu
terras irrigadas a pequenos produtores que perderam suas terras após
a inundação da barragem de Itaparica. Hoje eles sobrevivem da
comercialização de uma agricultura irrigada.
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O pescador Jair Tavares nas águas do São
Francisco |
Na região de onde será desviada a
água do rio, existe a desconfiança da população
em relação ao projeto. Em Piranhas, há água em abundância,
mas falta peixe onde antes havia excedente. O pescador Jair Cordeiro Tavares,
28 anos, filho, neto e bisneto de pescadores, se preocupa. O pai pegava peixe
praticamente com a mão, mas os peixes foram acabando. “Ficou mais
difícil sobreviver com a pesca. O rio está fraco. Com a transposição
a situação vai ficar ainda mais difícil, porque o rio vai
ter menos água”, diz Tavares. Em Delmiro Gouveia (AL), no assentamento
Maria Bonita, as 260 famílias de trabalhadores rurais vão colocar
uma caixa d’água de 10 mil litros para bombear a água do
rio, segundo o líder do assentamento, Arnon Alves Fideli. Eles estão
ali desde maio de 2004. Há famílias de pequenos agricultores,
a menos de dois quilômetros do Rio, que não têm água,
como Olindina Rosa Souza Damaceno Santo, de 63 anos. Ela está ao lado
do vale do São Francisco, mas sua terra é seca e sem irrigação.
Para consumo humano, ela mantém uma cisterna que guarda água da
chuva e ainda compra água de caminhão-pipa para encher sua caixa
d'água.
Urbano e rural
Renata Andrade também se preocupa com outros efeitos da transposição
na região. Uma das experiências usadas como modelo de transposição
é a do Central Valley, na Califórnia, uma região rica dos
Estados Unidos. Mas o projeto de abastecimento urbano errou na projeção
populacional. Além disso, hoje é preciso comprar água dos
agricultores para levar à cidade. No mundo não se faz mais projeto
de transposição para produção, a não ser
que haja grande consumo interno, segundo João Abner. “Uma transposição
para uma metrópole até faz sentido, mas é diferente. O
comitê da bacia não fechou as portas para uma transposição.
O que se questiona é um projeto atrelado ao desenvolvimento econômico”,
afirma.
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Foto da produção de uvas da Agrobras |
Entre outras falhas apontadas por técnicos
de recursos hídricos ao projeto, estão a abrangência dos
efeitos positivos da transposição que seria de apenas 5% do semi-árido
nordestino, enquanto a área seca corresponde a 900 mil km2, bem maior
que a extensão da França. O alto risco de encarecer o preço
final da água também gera reação no meio científico.
“A irrigação tem de ser sustentável e economicamente
viável, para que isso ocorra é preciso pensar na comercialização
também”, diz João Abner, que cita como experiência
bem sucedida as uvas do vale do Rio São Francisco voltadas para mercado
externo. A irrigação requer custos altos, por isso não
basta pensar só na infra-estrutura. O projeto de transposição
deverá irrigar 300 mil hectares com a água a R$ 0,11 centavos
o metros cúbicos, sem bombeamento. Hoje, a Codevasf leva a água
ao vale a um custo de R$ 0,02 o metros cúbicos, com bombeamento incluído.
“Isso quer dizer que a água vai ser proibitiva para irrigação.
O governo vai aumentar a conta de água do povo. Somente os grandes irrigantes
serão beneficiados”, diz João Suassuna. “Nós
precisamos montar estratégia para se fazer uma política de uso
adequado da água”, protesta o pesquisador. Entre os riscos do projeto,
Suassuna fala ainda da ameaça ao rio, que já sofre com a poluição.
“Eu acho que o governo deveria apostar todas as suas fichas na revitalização,
porque não existem mais as matas ciliares que seguravam os barrancos
dos rios”, explica.
Segundo João Paulo Maranhão de Aguiar, adjunto do presidente da
Chesf, a revitalização do rio é urgente para a empresa.
Aguiar diz que, em 2005, serão investidos pela Chesf R$ 6 milhões
em projetos de revitalização, como reflorestamento da bacia e
despoluição. Para Aguiar, a transposição está
mais relacionada a questões políticas e econômicas que técnicas.
A vazão da água, segundo ele, é um falso dilema. “Mas
a Chesf não é dona da água”, disse Aguiar. Em janeiro
o governo confirmou que a empresa será responsável pela operação
e manutenção do projeto de transposição.
Renata Andrade acredita que as mesmas empresas que já fazem assessoria
para irrigantes industriais fazem lobby no governo em favor do projeto. João
Abner diz que os lobbistas “perceberam que é agora ou nunca”.
Segundo ele, um dos pilares dos lobistas é a indústria do cimento
(grandes empreiteiras), outro pilar é a federação das indústrias
do Nordeste. Há também as multinacionais da indústria pesada
de turbinas e bombas, o lobby profissional formado por pessoas que circulam
entre as empresas de consultoria e o Estado ("já foram gastos R$
70 milhões em consultoria para o projeto de transposição").
E há, finalmente, o grupo de políticos interessados.
"(...) Amo os grandes rios, pois são profundos como a alma de um
homem. Na superfície são muito vivazes e claros, mas nas profundezas
são tranqüilos e escuros como o sofrimento dos homens. Amo ainda
uma coisa dos nossos grandes rios: sua eternidade. Sim, rio é uma palavra
mágica para conjugar eternidade." - JOÃO GUIMARÃES
ROSA (entrevista a Günter Lorenz, 1965)
A repórter Adriana Menezes viajou a Pernambuco, Alagoas e Bahia com
o apoio da TAM e da Chesf.
(AM)
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