Autoritarismo
emperra gestão participativa das águas
Apesar da formação de alguns Comitês
Gestores de Bacias Hidrográficas no Brasil – dos quais participa
a sociedade civil – vários fatores ainda impedem a efetiva democratização
dos processos decisórios sobre a água. Pesquisadores apontam o
autoritarismo e o clientelismo, responsáveis pela falta de recursos e
motivação da sociedade, como as principais dificuldades para a
gestão das águas se tornar efetivamente participativa.
Na avaliação de Cláudio de Mauro, presidente do Comitê
Gestor das Bacias Hidrográficas dos rios Piracicaba, Capivari e Jundiaí,
o período de ditadura militar, que privou a sociedade de participação
política por muitos anos, teria gerado “uma sociedade amorfa e
com imensas dificuldades para implementar um processo participativo”.
Mas mesmo diante deste quadro, a professora Rebeca Abers, da Universidade Federal
de Brasília (UnB), acredita que a participação da sociedade
brasileira na gestão pública é grande, se comparada a outros
países. Para ela, os movimentos para implementar a gestão participativa
são influenciados pela demanda de maior participação da
sociedade nas decisões públicas em todas as áreas, como
parte da proposta de democratização que vem se implementando no
país desde o fim do governo militar, e que teve como marco principal
a Assembléia Nacional Constituinte.
Rebeca também atribui o crescimento do modelo de gestão participativa
no Brasil ao contexto internacional, criado após a Conferência
Internacional sobre Água e Meio Ambiente, realizada em 1992, em Dublin,
Irlanda. Durante a conferência, foi elaborado um documento, a Declaração
de Dublin, no qual a comunidade internacional estabeleceu alguns princípios,
entre os quais a participação da sociedade na gestão das
águas é apontada como um dos mais importantes. Além disso,
a conferência indicou a bacia hidrográfica como unidade apropriada
para planejamento e gestão compartilhados, como vem ocorrendo no sistema
de gerenciamento das bacias hidrográficas no Brasil.
Lais Mourão, também pesquisadora da UnB, conta que em Brasília,
grupos da sociedade civil, ONGs, universidades e órgãos do governo
federal têm realizado estudos bastante aprofundados sobre as questões
ambientas ligadas à água. Mas segundo ela, “as discussões
não chegam ao ponto de gerar um processo de gestão coerente por
parte do poder público local”. Para a pesquisadora, o principal
obstáculo para a formação dos comitês – até
hoje inexistentes oficialmente na região do Distrito Federal –
é de âmbito organizacional: “falta vontade política
de fazer o processo funcionar de forma participativa”, conta a pesquisadora.
Ela aponta o clientelismo como um dos grandes impedimentos para a efetivação
do processo na região. Para ela, o favorecimento de clientela específica
para receber melhorias, em troca de favores eleitoreiros acaba por dificultar
a mobilização da sociedade.
Lais afirma que “na maioria dos casos os comitês se formaram de
cima para baixo pelo interesse na regulamentação da cobrança
da água”. Ainda segundo a pesquisadora, “em Brasília,
mesmo que as pessoas se organizem para atuar nas questões locais, esse
movimento acaba minado pelo clientelismo”. O movimento brasiliense poderia
ser um exemplo de processo participativo mais intenso e democrático,
mesmo sem a formação oficial de comitês gestores, caso não
houvesse tanta interferência.
Participação esbarra nas possibilidades
legais dos comitês
Na análise de Rebeca Abers, a falta de poder de decisão dos comitês
gestores também inibe a motivação da sociedade para participar
mais efetivamente das decisões sobre as águas. Na maioria dos
estados brasileiros, as principais atribuições
dos comitês são: definir os valores e o destino dos recursos
hídricos e dos rendimentos resultantes da cobrança pelo uso das
águas. No entanto, “quando a mobilização se faz localmente,
em torno de objetivos importantes para a população, a participação
pode ser maior”, lembra. Um exemplo disso ocorre no estado do Ceará.
No caso cearense, a situação é bastante diferente do restante
do país, segundo Rebeca. Lá os comitês se desenvolveram
em torno de associações de usuários de reservatórios
de água e, depois, de bacias hidrográficas. Na opinião
da pesquisadora, o que impulsionou a formação do comitê
foi o fato da discussão estar bastante ligada à vida cotidiana
das pessoas. “No Ceará a relação é bastante
conflituosa porque os “fortes” sempre podem obter água em
reservatórios próprios”, lembra. Diante desse quadro, pequenos
agricultores e usuários de água, antes mesmo da formação
oficial dos comitês gestores, promoveram uma ampla discussão em
torno das diferentes formas de uso das águas. “Essa talvez seja
a experiência mais intensa de todo o país, pois contou com uma
participação grande de populações menos privilegiadas,
representantes de pequenos produtores junto com os grandes produtores rurais
e indústrias”, afirma a pesquisadora.
Outro exemplo de comitê originado pela luta e resistência a imposições
governamentais e escassez de água é o das bacias do Piracicaba,
Capivari e Jundiaí. A partir da década de 60, essas bacias –
que também abastecem a região de Campinas – tiveram boa
parte de sua água transposta para abastecer a grande São Paulo
e a baixada santista. A falta de água em diversos locais abastecidos
por essas bacias promoveu uma participação intensa da sociedade
já há 15 anos, como um consórcio, e há 11, como
um comitê. Dessa forma, Mauro acredita que “se constrói um
processo que caminha para a produção de uma nova sociedade, de
uma nova realidade e, infelizmente, de maneira geral, no Brasil ainda não
é essa prática que temos em todos os comitês”, desabafa.
Democratização passa por capacitação
técnica e aprimoramento das leis
Os três pesquisadores entrevistados concordam que um dos principais desafios
para a consolidação da gestão participativa é a
capacitação técnica dos participantes dos comitês,
para que eles possam, de forma efetiva, se tornar atores ativos no processo
de gestão. Além disso, na opinião de Mauro, seria necessário
um aprimoramento de leis que permitam uma participação cada vez
maior da sociedade, e mudanças na estrutura dos governos. “De baixo
para cima se transforma a realidade dos processos administrativos, se faz com
que sejam criadas as condições para que a sociedade como um todo
tenha voz e direito de opinar, participar e decidir”, conclui.
(AP)
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