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Cultura ligada aos rios é prejudicada
com grandes obras e urbanização

Os rios, muito além de meros elementos da paisagem geográfica, têm também grande ligação com a cultura e as tradições das regiões que fazem parte da sua bacia hidrográfica. Este aspecto, importante para compreensão do processo histórico de formação da cultura brasileira e muito ligado ao universo simbólico e religioso, acaba, muitas vezes, não sendo considerado ou discutido quando se trata de grandes obras ou do processo de urbanização que avança em diversas regiões do país.

“Para todas as religiões, seja da tradição judaico-cristã, seja das africanas ou orientais, a água é um fator de unificação da divindade”, explica o padre Eraldo Joaquim Cordeiro, pároco da cidade de Delmiro Gouveia (AL), próxima à margem do Rio São Francisco. Segundo ele, todas as regiões pelas quais o rio passa, desde a nascente em Minas Gerais até a foz em Alagoas, são cercadas de celebrações, rituais e procissões. “Seja para os índios, para os fiéis da Igreja Católica ou do Candomblé, o São Francisco é mais que o rio da integração nacional: ele é também o rio da fé e do simbolismo da vida”, completa. Para Maurício Laxe, do Ministério do Meio-Ambiente, coordenador nacional do Programa de Revitalização do São Francisco, a diversidade da população que vive na região explica essa riqueza cultural: ao longo do rio, explica, “temos 27 territórios indígenas e várias comunidades remanescentes de quilombos”.

A importância desse contexto já foi reconhecida por muitos autores, como Sérgio Buarque de Holanda. Segundo a antropóloga Mariana Françoso, doutoranda pela Unicamp, foram os rios que permitiram a entrada dos portugueses no interior da colônia, por meio de expedições denominadas monções, feitas com grandes barcaças: “essas entradas geraram povoamento no interior do Brasil e, acima de tudo, a confluência dos conhecimentos indígena e português para a sobrevivência naqueles locais”, explica. A antropóloga também afirma que, segundo investigações do Sérgio Buarque de Holanda (sobretudo no livro Monções, de 1945, mas também em Caminhos e fronteiras, de 1957, e Raízes do Brasil, de 1936), os rios desempenharam um papel muito além do acessório no desbravamento do sertão. Eram, na expressão do historiador, “caminhos que andam”. “Os rios”, afirma a antropóloga, “eram eles próprios caminhos que levavam os colonizadores no interior do território desconhecido e na constituição de uma nova civilização”. Este processo culminou com a assimilação de costumes indígenas pelos portugueses, que envolvem desde o modo de andar, até a assimilação de determinadas crenças e práticas curativas.

A compreensão dessa diversidade cultural e do processo histórico a ela relacionado, no entanto, já está sendo comprometida. O padre Eraldo Cordeiro cita o caso da tradicional procissão de Bom Jesus dos Navegantes, da cidade de Pão de Açúcar, próxima a Delmiro Gouveia, que não pode mais ser realizada com barcos grandes, devido ao processo de assoreamento: “mesmo os barcos menores têm que navegar em 'zigue-zague', procurando trechos mais fundos, pois o rio está muito raso em diversos pontos”. Outro exemplo relatado por ele, mais drástico, é relacionado às celebrações da colheita do arroz, que já não existem mais: “a construção da usina hidrelétrica de Xingó acabou com as lagoas que se formavam após a cheia do rio, onde a população ribeirinha plantava arroz. Conseqüentemente, as cerimônias acabaram”, afirma.

Questionado sobre os fatores que levaram à ocorrência de situações tão impactantes, Cordeiro explica que as grandes obras na região, sejam de combate à seca ou de construção de hidrelétricas, sempre privilegiaram os interesses de grandes grupos econômicos e latifundiários. O resultado é a permanência da chamada "indústria da seca" e a degradação constante do Rio São Francisco.

Para Maurício Laxe, um dos caminhos para conter a deterioração do rio é explorar turisticamente a diversidade cultural da região, aproveitando também a ligação de diversas personalidades que nasceram nas cidades que ficam às margens do rio, chamadas na região de “franciscanos”: “temos a história do cangaço e de Lampião, que nasceu e morreu próximo às margens do rio; o ‘pai da bossa-nova’, João Gilberto; o ‘rei do baião’, Luiz Gonzaga. E temos as histórias de Guimarães Rosa, que retratam muito bem a parte de Minas Gerais”. O termo “franciscano”, ou “filho do São Francisco”, é mais um fator que revela a ligação da população nativa com o local. O fenômeno repete-se na região Norte, onde muitos se definem como, por exemplo, “filhos do Solimões”, ao invés de dizerem "do estado do Amazonas", por exemplo.

Tanto para Maurício Laxe, como para o padre Cordeiro, o caminho para a revitalização do Rio São Francisco também passa pelos grandes centros urbanos. O padre é bastante enfático: “Existem grandes cidades na margem do Rio São Francisco, como Paulo Afonso, com cerca de 200.000 habitantes, que despeja todo o esgoto 'in natura' no rio”, ou seja, sem nenhum tipo de tratamento. Laxe também entende que o projeto de revitalização deve envolver as populações de grandes cidades: “É preciso que as populações de cidades como Belo Horizonte e Brasília tomem consciência que também são populações 'franciscanas', vivem dentro da bacia do São Francisco e devem trabalhar pela sua revitalização”, afirma. A expectativa de Laxe, no entanto, parece difícil de concretizar-se, considerando a situação dos rios em grandes centros urbanos.

Segundo Alexander Costa, pesquisador do Instituto de Geografia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), nas áreas densamente ocupadas e urbanizadas, os fatores que levariam a uma identificação da população com o rio já não existem mais: “os rios nem mesmo são reconhecidos como tais, sendo considerados ‘valões’ ou canais de esgoto a céu aberto, tal o grau de degradação em que se encontram”, afirma. O fenômeno é facilmente observado no Rio de Janeiro, por exemplo.“É uma grande incoerência, numa cidade que tem ‘rio’ no seu nome”, diz o pesquisador, que também realça que a ausência de um planejamento adequado, que acompanhe o processo de urbanização e ocupação das margens dos rios, acaba tendo conseqüências desastrosas que vão além da perda da questão cultural, como a ocorrência de enchentes de grandes proporções, que atingem quase todas as grandes cidades brasileiras.

(DC)

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Atualizado em 10/02/2005

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