Riscos
da transposição
Clóvis Cavalcanti
Se falta água no Ceará e parece que
dela sobra no Rio São Francisco, por que não fazer uma transposição
do “Velho Chico”, levando água para os sertões cearenses
(e também para os paraibanos e potiguares)? Populações
numerosas, que querem cultivar a terra e precisam da água igualmente
para suas necessidades básicas, espalham-se no interior semi-árido
do Nordeste, enquanto, ao mesmo tempo, o longo rio São Francisco corta
o Polígono das Secas como único curso de água perene dessa
região. A intenção de transpô-lo (em parte, evidentemente)
surge como solução “natural”, como saída para
a escassez do líquido, alegrando as populações que possam
se beneficiar da iniciativa. O modelo por detrás de tal proposta, porém,
além de se nutrir de uma visão mecanicista do mundo, contempla
somente um dado do complexo problema da vida no semi-árido da região.
Transpor um rio – ou parte dele, como no caso – não pode
ser pensado apenas como um problema mecânico de engenharia, ou seja, tirar
água daqui e pôr acolá. Um rio constitui mais do que água
deslocando-se por uma vala no solo. Trata-se de todo um enorme ecossistema da
natureza, de um conjunto orgânico, de um tecido complexo que tem vida
e onde o todo é mais do que a simples soma das partes. Nesse sentido,
a construção de barragens para a produção de energia,
como ocorre de forma substancial no São Francisco, já constitui
uma agressão ambiental grave. Fazer a transposição de sua
água vai acentuar essa agressão. Um estudo completo, equilibrado
e isento, de impacto ambiental, que é elemento indispensável para
avaliar-se a possibilidade de realizar a transposição, falta gritantemente
no caso.
Vale a pena lembrar aqui os problemas que, no mundo inteiro, têm sido
criados por grandes projetos hidráulicos, seja para que finalidade se
destinem. O caso talvez mais assustador a esse respeito é o do lago (ou
mar) de Aral, na Ásia Central (Casaquistão e Usbequistão),
um corpo de água doce que já teve a metade do tamanho do estado
do Ceará. Os dois principais rios que o abasteciam foram desviados para
projetos de irrigação, aí por volta de 1960. Com isso,
apenas 10 por cento da vazão que corria para o lago continuou chegando,
fazendo com que sua superfície se reduzisse a menos da metade do que
era, suas águas se tornassem salgadas e todas as suas espécies
de peixes, todas – que faziam do Aral o mar interior mais piscoso da Terra
– se tornassem hoje extintas.
Trágica, sob todos os aspectos, a saga desse grande lago – que
se faz acrescer de um amplo elenco de efeitos malignos, como a forte salinização
de solos, a perda de biodiversidade e outros resultantes da “salvadora”
irrigação – representa uma advertência que não
pode ser ignorada. Além disso, trata-se de um roubo hidrológico
em grande escala, agravado pelo fato de que somente 50 por cento da água
dos rios desviada para irrigação, em virtude da evaporação,
chega efetivamente às terras que deveria fertilizar.
A transposição do São Francisco merece um encaminhamento
sistêmico, integrado, envolvendo uma ampla lista de fatores, e não
limitado apenas a um dado, a uma variável do problema complexo a ser
resolvido. Se se busca uma saída para a limitação da oferta
de água do Nordeste – que, a rigor, não chega a ser de nível
devastador, exceto em períodos de secas prolongadas e em determinadas
áreas –, por que não procurar soluções que
se adaptem mais suavemente à realidade do nosso semi-árido? A
esse respeito, existem experiências de aproveitamento dos recursos hídricos
da região, em condições de sua falta extrema, como o faz
o engenheiro José Artur Padilha em Afogados da Ingazeira, Pernambuco,
através, no seu dizer, de uma “perfeita captura das contribuições
gratuitas da natureza” (insolação, ventos, chuvas, energia
gravitacional, trabalhos biológicos da flora, da micro e da mesofauna,
em combinação com o trabalho humano), com resultados notáveis.
Pena que isto não sensibilize quem só pensa em obras grandiosas,
que tanta alegria causam às empreiteiras.
Clóvis Cavalcanti é economista
e pesquisador social da Fundação Joaquim Nabuco (Recife) e professor
da UFPE.
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