A
expansão do ensino superior no Brasil
Carlos
Henrique de Brito Cruz
A moderna
teoria econômica, assim como o bom senso, mostram que somente
a capacidade de criar e trabalhar com o conhecimento pode garantir
desenvolvimento sustentável. Por isso, educar as pessoas
capazes de trabalhar com o conhecimento é fundamental para
uma nação. Não somente para criar conhecimento
em atividades de Pesquisa e Desenvolvimento (P&D), mas também
para usar, transformar e aplicar conhecimento são necessários
profissionais qualificados e capazes de aprender continuamente.
Transformando
a matriz herdada de modelos medievais, a universidade hoje é
a instituição à qual as sociedades modernas
atribuem a tarefa de produzir, exercer um indispensável papel
crítico e pôr em circulação o saber nas
diferentes áreas da ciência, das humanidades, das artes
e da tecnologia. O fato notável - e que contraria o discurso
privatista posto em voga a partir da década de 90 - é
que, em todo o mundo, as melhores universidades são aquelas
que têm o anteparo do Estado e são sustentadas majoritariamente
com recursos públicos1.
Criada
no Brasil só nos anos 30 do século XX, com uma história
muito curta e, portanto, com uma tradição ainda frágil,
a universidade brasileira firmou compromisso com a educação
superior pública e gratuita que não pode e não
deve ser rompido, sob pena de esvaziamento de uma das poucas instituições
públicas brasileiras que tem sido efetivamente pública,
democrática e maciçamente eficiente.
É
um fato, no entanto, que a brusca mudança de cenários
e as dificuldades daí decorrentes têm levado os diversos
setores da sociedade a questionar e cobrar mais intensamente da
universidade pública os investimentos nela efetuados. A universidade
pública tem contribuído para o desenvolvimento nacional
através da formação de pessoal e da geração
de conhecimento, mas é preciso fazer isto ainda mais e melhor.
A defesa da universidade pública brasileira exige um projeto
de excelência que demonstre, de maneira inequívoca,
que é possível desempenhar o papel social esperado
da universidade, efetiva e responsavelmente, mantendo-se pública,
gratuita e de qualidade.
O desenvolvimento
econômico e social brasileiro foi todo construído a
partir da formação de quadros qualificados na universidade
pública. Essa contribuição se expressa no currículo
da quase totalidade dos profissionais bem sucedidos nas mais distintas
atividades de diferentes campos de atividade empresarial e cultural,
bem como nos cargos mais altos da própria administração
pública. Em todos os países desenvolvidos do mundo
o ensino superior público tem papel fundamental, seja por
seu impacto no desenvolvimento econômico, seja no desenvolvimento
cultural da sociedade e, mais do que tudo isto, por seu papel no
desenvolvimento do ser humano.
Basta
ver que até mesmo no país campeão mundial da
iniciativa privada, os Estados Unidos, 78% dos 14 milhões
de matrículas em cursos superiores se concentram nas instituições
públicas. Vale destacar que, ali, dos 22% de matrículas
em instituições privadas, somente 1,4% estão
em instituições com fins lucrativos. Este último
dado indica que, em países onde os cidadãos estão
acostumados a exigir valor e qualidade em troca de seu dinheiro,
ensino superior não é uma maneira de enriquecer empresários.
Por que razão no Brasil isto deveria ser diferente?
Como
tenho destacado em outras oportunidades2, a maior parte do investimento
anual em ensino superior nos Estados Unidos - em torno de US$ 120
bilhões - é feito pelo governo. No estado da Califórnia,
13% dos dispêndios do governo estadual (mais de US$ 7 bilhões
anuais) são destinados à educação superior.
Também lllinois, Texas, Wisconsin, Washington, Flórida
e Ohio têm a mesma política: destinam às universidades
entre 11% e 12% de seu orçamento. São percentuais
comparáveis àquele praticado por São Paulo,
um dos poucos estados brasileiros a investir adequadamente no ensino
superior e na pesquisa científica.
Na
Inglaterra, 100% das matrículas no ensino superior são
em instituições públicas. Na Itália
e na Alemanha, idem. Na França, mais de 95% das matrículas
são públicas. Em quase todo o mundo a estratégia
para o ensino superior tem sido baseada no esforço estatal.
Bastariam esses números para desarmar o discurso privatista
mais empedernido. Mas a realidade nacional oferece um argumento
a mais: nossas universidades públicas são o patrimônio
institucional brasileiro que, apesar de sua juventude, maior nível
de eficiência obteve ao longo do século. Em algumas
áreas, como na pós-graduação, por exemplo,
muitas delas nada têm a perder em relação às
melhores do mundo.
Não
se deve atribuir a nenhum milagre o peso específico que o
País ganhou - apesar de suas contradições sociais
não resolvidas - a ponto de se estabelecer como a nona economia
do mundo. Este salto se deve sobretudo à formação
nas universidades de novos quadros profissionais e técnicos,
em número ainda insuficiente, é verdade, mas efetivo.
Imagine-se quando chegarmos (se chegarmos) ao patamar ideal. Mas
para isso é preciso investir sem vacilação
na educação superior e, sobretudo, em seu segmento
que se mostrou mais eficiente até aqui - o público.
A atividade
fundamental da universidade é o educar, em todos os sentidos.
A educação é a base de uma sociedade pluralista,
democrática, em que a cidadania não é um conceito
garantido apenas formalmente na lei, mas é exercida plena
e conscientemente por seus membros.
Uma
universidade se distingue de qualquer outro tipo de instituição
de ensino superior por ser o locus privilegiado em que os
participantes do processo educacional interagem proficuamente, desenvolvendo
e adquirindo conhecimentos e habilidades com o objetivo de entender
e agir sobre a realidade que os cerca. Este processo resulta não
apenas na capacitação dos alunos técnica e
formalmente para desempenhar suas atividades no seio da sociedade,
mas deve proporcionar o desenvolvimento de uma visão global
desta realidade. Agrega, assim, compreensão do mundo à
sua volta e tolerância a visões distintas, características
essenciais de uma cidadania integrada e ativamente democrática.
Não
há como contestar a necessidade urgente da expansão
do sistema superior público em São Paulo. Aumentar
o número de matrículas no ensino superior público
é questão emergencial e essencial para o desenvolvimento
nacional. A atual estratégia nacional, baseada no aumento
de vagas em escolas privadas, muitas delas com fins lucrativos,
não é moralmente aceitável, nem economicamente
viável. Além disso tem se demonstrado academicamente
desastrosa.
O aumento
das matrículas nas universidades públicas precisa
ser feito mediante projetos, elaborados pelas universidades, que
levem em conta as especificidades de cada instituição
e provendo-se as condições adequadas de infra-estrutura
e pessoal, especialmente docentes. No caso da Unicamp, é
necessário considerar o compromisso com a excelência
acadêmica e, por isso, com atividades de pesquisa na fronteira
do conhecimento. A Unicamp desempenha um papel insubstituível
no sistema brasileiro de pós-graduação, sendo
a única universidade brasileira na qual a população
de pós-graduandos é equivalente à de graduandos.
São
fatores a serem considerados também pelas universidades públicas
em geral, onde a expansão do ensino deve ser tratada de um
ponto de vista estratégico pelo governo, para além
das medidas tópicas de cada instituição. Um
avanço importante tem ocorrido no estado de São Paulo
através de um programa de suplementações orçamentárias
para projetos de aumento de vagas nas três universidades públicas
paulistas, já aplicado em 2002 e 2003. Este programa já
trouxe nestes dois anos um crescimento de mais de 2.000 vagas no
sistema estadual paulista. Na Unicamp, as 360 vagas adicionais aprovadas
pelo Conselho Universitário em dezembro de 2002 trouxeram
a duplicação do número de vagas oferecidas
anualmente em relação ao oferecido em 1989, em que
se estabeleceu o regime de autonomia com vinculação
orçamentária à receita de ICMS em São
Paulo.
Neste
sentido, é fundamental a elaboração de um plano
diretor plurianual, com um horizonte de médio e longo prazos,
capaz de gerar políticas de estado (duradouras) em vez de
políticas de governo (transitórias). A dimensão
dos desafios hoje postos ante o estado de São Paulo no campo
do ensino superior exige um tratamento diferenciado, com horizonte
de tempo necessariamente longo para tornar as ações
realizáveis. Tal projeto precisa ser produzido a partir de
amplas discussões na comunidade acadêmica - universidades,
faculdades isoladas, seus conselhos universitários - e fora
dela, envolvendo atores tão relevantes como a Assembléia
Legislativa, o Conselho Estadual de Educação e órgãos
de representação estudantil no âmbito estadual.
Além
da questão da expansão do sistema, é preciso
que o Plano Diretor trate das questões relativas à
eqüidade no acesso, da distribuição geográfica
das instituições e sua eventual conexão a focos
e oportunidades regionais, das maneiras de viabilizar o financiamento
e outras questões relevantes para um plano estratégico.
Esta
linha de ação - a de um Plano Diretor Estadual - foi
justamente apresentada pelos reitores das universidades públicas
paulistas - Unicamp, USP e Unesp - e aprovada pela Secretaria de
Ciência e Tecnologia do estado, no contexto de um projeto
que, para ganhar a legitimidade necessária e garantir sua
permanência e seu sucesso, deverá ser necessariamente
elaborado de comum acordo entre as universidades, o poder executivo,
o poder legislativo e a sociedade paulista. Certamente que é
um objetivo ambicioso, e, por isso mesmo, apaixonante.
Carlos
Henrique de Brito Cruz, físico, é reitor da Universidade
Estadual de Campinas (Unicamp) e ex-presidente da Fundação
de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp)
Notas:
1. Até mesmo nos Estados Unidos, onde muitos
pensam ser o ensino superior dominado por instituições
privadas, o predomínio no financiamento do ensino superior
é do estado. Em 1991, o investimento no sistema público
de ensino superior naquele país foi de 94 bilhões
de dólares, contra 55 bilhões investidos no sistema
privado (S. Slaughter e L. Leslie, "Academic Capitalism",
(The Johns Hopkins University Press, Baltimore, 1997). Também
nos EUA, 78% das matrículas no ensino superior são
em instituições públicas (Digest of Education
Statistics, 1997). [voltar]
2. "Universidade pública e desenvolvimento",
Carlos H. De Brito Cruz, publicado em Tendências e Debates
da Folha de São Paulo em 21 de Junho de 2001. [voltar]
|