A
universidade num ambiente de mudanças
Renato
Janine Ribeiro
Meus
comentários sobre a universidade nos próximos anos
- melhor dizendo, minhas reflexões sobre ela para o período
que coincide com o próximo mandato presidencial - talvez
sejam um pouco marginais em relação às discussões
mais usuais que tenho ouvido. Não discutirei, embora a repute
essencial, a questão do financiamento das universidades;
o que pretendo é, partindo de uma experiência que estou
montando há alguns anos, pensar o que significa um ambiente
universitário em nossos dias. Daí decorrerão
algumas sugestões e críticas.
Começo
assim da experiência de montar um curso de graduação
experimental, interdisciplinar, em Humanidades, o que venho tentando
na USP desde três ou quatro anos, infelizmente sem muita facilidade
- curiosamente, este projeto, que tem tido amplo sucesso de crítica
no país afora, parece até ter chances de ser implantado
antes em outras universidades do que naquela em que trabalho. Remeto,
para quem o queira conhecer no detalhe, ao livro e ao site que o
contêm (os dados estão no fim do artigo); aqui me limito
a delinear seus grandes traços.
O propósito
deste novo curso é dar uma boa base em filosofia, em artes
(sobretudo visuais, mas também em música) e em literatura,
a fim de formar futuros pesquisadores em ciências humanas
e sociais de modo geral. A idéia é que não
se forma um profissional pela reiteração dos temas
de sua área, mas pelo confronto com linguagens à primeira
vista diferentes da sua. Por exemplo, hoje muitos querem ser cineastas
vendo filmes; mas um dos maiores diretores do século XX,
Federico Fellini, certa vez disse que via pouquíssimos filmes,
e que concebia os seus a partir basicamente de livros, ou de outras
experiências que tivesse.
Diria,
seguindo o seu mote, que hoje as ciências humanas estão
vendo cinema demais - isto é, que tendem a se confinar em
sua área, a conhecer muitíssimo bem o que nela se
faz ou discute, mas com isso perdem de vista a estranheza, a perplexidade,
a indagação que vêm do confronto com o radicalmente
outro. E é por isso que vamos, para formar em ciências
humanas, investir nas humanidades, ou seja, no que não é
ciência.
Por
ser um curso experimental, Humanidades não terá uma
grade curricular fixa. Isso, por um lado, reduz o valor de seu diploma,
pelo menos do ponto de vista imediatista de quem deseja ter uma
reserva de mercado, mas por outro lado - e é o que conta
para nós - confere enorme liberdade aos docentes e aos alunos.
Poderemos mudar a programação sempre que quisermos.
Aliás, não teremos um corpo docente fixo, nem um departamento.
Daí, também, que para esse curso não haja um
vestibular como os habituais: a seleção será
efetuada entre estudantes da USP que, desejando entrar nele e já
tendo completado um mínimo de créditos em outro curso,
prestem um exame especial, mais voltado para suas capacidades do
que para seus conhecimentos. (A cabeça bem feita, mais que
repleta, como pretendia Rabelais em sua escola ideal).
Durante
os dois primeiros anos do curso, os alunos de Humanidades terão
acesso a diversos enfoques - diferentes entre si, opostos mesmos
- em filosofia, em artes e em literatura, mas também nas
ciências sociais, na história, em direito, economia,
tudo isso podendo alterar-se de ano para ano. A partir do terceiro
ano no curso, freqüentarão matérias da universidade
como um todo, construindo - com o apoio de um professor tutor -
um itinerário pessoal que leve a um trabalho de conclusão
de curso, que por sua vez constituirá a base para uma futura
pós-graduação. Eis as linhas gerais do projeto.
Passo agora a expor quais idéias da universidade me vieram
em função deste projeto. Algumas destas idéias
existiam antes do projeto, e ele as aplica; outras, porém,
nasceram dele. É delas que quero tratar, mais do que do curso
em si.
A idéia
pela qual começo diz respeito à relação
entre a universidade e o mercado. Com a possível exceção
dos cursos seqüenciais, que me parecem idéia muito boa
- e aos quais voltarei -, parece-me que os cursos propriamente universitários
talvez devam emancipar-se da preocupação com o mercado
de trabalho.
Dizendo
isso, é possível que eu vá a contrario sensu
de uma das idéias mais enfatizadas dos últimos anos,
inclusive por boa parte dos próprios alunos, receosos hoje
de terem uma formação boa em termos acadêmicos,
porém inútil na prática. Mas quero deixar claro
que não sustento esta tese - de que a universidade não
deva clonar o mercado - por defender um modelo antigo de universidade,
afastada das lides cotidianas. Na verdade, o que me inspira é
exatamente a percepção de que o mundo mudou tanto,
e com ele o mercado, que é vão e ocioso a Universidade
tentar tomar o seu pulso e seguir o seu ritmo.
Se
não, vejamos. Espera-se que um jovem opte por uma carreira
universitária em torno dos dezesseis ou dezessete anos, ao
iniciar o último ano do segundo grau. Daí a um ano,
ele estará começando um curso universitário
de quatro ou cinco anos. Sua maturidade profissional é de
se esperar que ocorra daí a quinze ou vinte anos. Seu apogeu,
sua acme, como diriam os gregos, daí a vinte e cinco ou trinta.
Tudo isso somado, quer dizer que esperamos o sucesso inicial - o
que chamei de maturidade - vinte ou vinte e cinco anos depois do
momento da escolha. Opto por uma carreira hoje, com dezessete anos,
e espero ser um profissional reconhecido aos trinta e cinco, quarenta
anos, entre 2020 e 2025, digamos. Ora, alguém que acompanhe
o andar das coisas neste mundo pode considerar sensata alguma pretensão
de prever como estará o mercado nessa data? Não será
quase delirante esperar que um jovem possa realizar hoje uma escolha
passível de ser bem sucedida daqui a duas décadas,
e capaz de manter-se viável por três, quatro décadas,
em suma, por toda a sua vida profissional, até uma aposentadoria
que - tudo indica - será mais tardia do que hoje é?
Não
é completamente irrealista essa expectativa? Some-se a isso
um fato, talvez peculiarmente brasileiro. Em nossa sociedade, os
pais - especialmente de classe média - se tornaram bastante
permissivos. Ou porque não dão importância à
educação ética, à imposição
de regras, ou porque está cada vez mais difícil decretar
e manter limites (penso que há os dois lados neste fenômeno),
os pais favorecem um certo hedonismo filial. A adolescência,
antecipada já para os anos pré-teen e prolongada para
depois dos vinte anos, desenha assim um período de busca
de prazer e de pouca responsabilidade. Exemplar disso é o
recurso à babá eletrônica para a pacificação
dos filhos, emblemática de uma sistemática terceirização
da relação com eles (até festas de aniversários
são feitas em ambientes especializados: muito do que outrora
era resolvido - ainda que mal - no âmbito da família
vai agora para profissionais, uns ótimos, outros péssimos;
ninguém, da classe média para cima, cresce sem fonoaudiólogo
ou psicólogo).
Mas
num momento da vida, num só, quando se avizinha a escolha
profissional, esses pais que até então apostaram -
para usarmos a linguagem freudiana - no princípio de prazer
para aplacar os desejos dos filhos, subitamente, invocam um princípio
de realidade claro, implacável: a carreira profissional,
o futuro financeiro. Valem-se de um argumento que cala fundo: meu
filho, o seu nível de vida não se manterá se
você não tiver uma boa profissão. Os prazeres
que lhe proporcionei, a ausência de regra, tudo isso depende,
para se manter, de você agora curvar-se a uma regra duríssima,
a que lhe manda escolher uma profissão de futuro.
Veja-se
o contraste entre a omissão paterna, ao longo de vários
anos, a demissão da Lei, a renúncia ao papel de impor
limites, de fazer reconhecer a alteridade - e a súbita invocação
de uma lei abstrata, intangível, impiedosa, a do mercado;
veja-se, aliás, como isso é terrível para o
próprio papel de pai, reduzido que ele se vê a porta-voz
acovardado de uma lei vaga e sem rosto, de uma mão invisível,
tão invisível que nem face tem e assim priva o pai
do que lhe poderia restar de nome, autoridade e voz, voz que ele
perdeu porque carrega a do mercado.
Pois
bem, para além dos problemas que isso coloca para a psique
de nossos jovens, o que quero salientar é que essa inesperada
preocupação com o futuro deles é totalmente
inútil. Não há condições, hoje,
de prever qual carreira terá destaque em vinte anos. Nossa
própria história, a dos que têm vinte, trinta
ou quarenta anos de exercício profissional, pode ilustrar
este ponto. Profissões que pareciam prometidas ao sucesso
ou fadadas ao fracasso deram resultados opostos aos que se esperava.
Provavelmente a maior parte das pessoas teve sucesso mesmo em carreiras
das quais pouco se esperava, o que indica o alcance da autonomia
individual, com o sucesso resultando da iniciativa pessoal e não
só do escaninho escolhido no vestibular.
Porém,
mais importante ainda é que várias profissões
simplesmente desaparecem. O avanço da informática
foi impiedoso, e pode continuar a sê-lo. Certas profissões
- o mais das vezes, as não criativas, burocráticas,
mecânicas - deixaram ou deixarão de ter sentido. É
verdade que isso pouco se aplica a carreiras que tenham formação
universitária, mas não posso esquecer as páginas
de Italo Svevo, na Consciência de Zeno, em que o personagem-título
se gaba de sua capacidade para escriturar balanços em partidas
dobradas. Hoje, certamente um programa de DOS, num daqueles disquetes
flexíveis que já nem encontramos, daria conta de todo
o saber que Zeno demorou anos para acumular. Treinamentos inteiros
se tornaram dispensáveis. Então, para quê?
Acrescento
uma experiência pessoal: sou professor num curso de filosofia.
Sabidamente, este não forma ninguém para uma carreira
profissional bem paga. A única habilitação
que damos permite lecionar no segundo grau - com salários
baixos - ou na universidade, aí em condições
melhores mas que não chegam a ser competitivas com as promovidas
por outras carreiras. No entanto, nossos egressos têm tido
êxito profissional às vezes admirável, em outras
áreas, como o jornalismo, a edição, a empresa,
e isso devido à formação que receberam. A inutilidade
do ponto de vista burocrático (o diploma) ou linear (como
naquelas perguntas em suplementos para vestibulandos: para que serve
o curso?) resulta, na prática, razoavelmente útil.
E isso
porque, cada vez mais, os profissionais seguem, no mercado e na
vida, uma trajetória em diagonal, que os leva de uma primeira
formação escolhida com certa segurança - a
partir de avaliações que se acreditam bastante realistas
(o princípio de realidade, a pressão familiar, a ambição,
a ilusão de que dá para escolher como vencer na vida)
- para outros caminhos. A pergunta relevante é: o que determina
essa evasão? O que faz muitos, dentre os mais brilhantes
cérebros, mas não apenas, seguirem um itinerário
profissional que acabará longe de seu diploma?
Histórias
de vida nesse rumo são das mais variadas. Há os que
prestam seguidos vestibulares, não se formando em nenhum
curso - ou pelo menos não no primeiro, nem no segundo -,
mas acumulando primeiros lugares em concursos de seleção
os mais diversos. Há os que se formam, mas não exercem
a profissão, ou apenas a seguem por algum tempo. Há
os que perdem o emprego, e por isso se vêem forçados
a rever seu perfil e vida. Este último caso é mais
triste, e aqui a mudança no trajeto é ditada por fatores
externos, negativos; mas são inúmeros os casos em
que as alterações vêm por assim dizer de dentro.
Disso se segue, não mais uma pergunta, mas um questionamento
mais complexo. Vamos a ele.
Será
que a evasão, tão denunciada pelos gestores das universidades,
é mesmo o monstro que tanto se critica? Esforços notáveis
foram envidados para reduzi-la, penso que com êxito a curto
prazo. Mas penso também que a evasão não se
explica apenas pelo ambiente interno à universidade, por
uma dialética entre aluno e curso. Ela tem a ver com um mundo
em mudança, que torna as escolhas - desse a quem chamamos
de aluno, numa fase jovem de sua vida, mas que deveríamos
considerar ao longo de toda ela, como alguém que não
cessa de aprender - muito mais difíceis e precárias.
É
claro que nenhum de nós deseja currículos superados,
professores desmotivados, bibliotecas desatualizadas - para mencionarmos
alguns dos fatores que fazem os alunos se evadirem dos cursos. Mas
minha pergunta é se a chamada evasão não tem
a ver com fatores mais amplos, que dizem respeito à sociedade,
à inclusão social do ser humano, jovem e depois adulto,
e não apenas à instituição escolar e
ao corpo-a-corpo que nela se trava entre os alunos e o estabelecimento.
Se
eu tiver razão, isso significa que numa sociedade em rápida
mudança é ilusório acreditar que identidades
profissionais sejam fixadas a partir de escolhas efetuadas antes
ou em torno dos vinte anos de idade. Mesmo adiar a data da escolha,
aliás, não adiantaria grande coisa, até porque
certamente nossos jovens dispõem hoje de uma informação
muito maior do que seus equivalentes em qualquer época do
passado. O problema não está no jovem, está
no mundo. Talvez eu devesse então radicalizar a frase com
que comecei o parágrafo, e dizer que numa sociedade em rápida
mudança é ilusório acreditar que identidades
profissionais sejam fixadas, ponto - pouco importando as idades.
Ora,
isso significa nos prepararmos para mudanças mais freqüentes
de profissão - no limite, para uma sociedade na qual as pessoas
troquem de inserção profissional até com certa
regularidade. Não sei se os presentes lembram um texto que
aparecia nas primeiras páginas da carteira profissional,
de lavra de algum administrador da era Getúlio Vargas, e
que dizia que aquele documento permitiria ver se o trabalhador se
tinha esforçado no seio da empresa, fiel à mesma -
ou, ficava implícito, se teria saltado de emprego em emprego,
o que seria menos nobre.
Pois
bem, é esse antigo vício da mudança que veio
a constituir uma característica de nosso tempo.
Seria
preciso promovermos uma pesquisa de longo fôlego, que considerasse
os egressos das instituições de ensino superior, e
procurasse ver - passados cinco, dez, vinte anos - o que ficou para
eles, o que passou a fazer parte do seu DNA, de que maneira foram
incorporados o conhecimento e as vivências havidos ao longo
de seus cursos. Certamente colheremos muitas surpresas.
Lembro
que, quando entrei no que então se chamava ginásio,
costumava-se dizer que o aluno bom em Latim saía-se bem igualmente
em Matemática; haveria afinidades eletivas, secretas, entre
as matérias; no caso, o que unia o bom conhecimento das declinações
e a capacidade de compreender os versos de Catulo à Aritmética
e à Geometria era o domínio do pensamento lógico.
Foi,
depois, suprimido o latim porque seria inútil. Ninguém
pensaria em excluir a Matemática ou em dizê-la inútil,
é claro.
Mas,
se havia mesmo algum parentesco entre as duas disciplinas, como
então se murmurava, é claro que a incorporação
do latim ao patrimônio mental dos alunos iria muito mais longe
do que o simples conhecimento dos clássicos romanos: ela
significaria uma agilidade maior no trato da frase como construção
lógica. Ou seja, o Latim seria tão bom quanto a matemática
para desenvolver o pensamento científico.
É
possível, se fizermos a pesquisa que sugeri, que descubramos
por que tantos engenheiros viraram suco (o nome de uma lanchonete
na avenida Paulista, em São Paulo, no final dos anos 80),
por que tantas pessoas passam por uma formação de
primeira qualidade em carreiras disputadíssimas para, depois,
tomarem outro rumo. Parece um enorme desperdício alguém
estudar numa excelente faculdade de Medicina ou de engenharia para,
depois, escolher outra carreira. São numerosas essas pessoas,
ou constituem exceção? Certamente elas são
minoria, mas não quer dizer que sejam, em quantidade e em
qualidade, insignificantes.
Do
que aprenderam, quanto lhes serviu? E lhes serviu como? Porque servir
não quer dizer apenas ter um uso imediatista.
Acabo
de redigir um projeto de curso de ética para futuros empresários
e economistas, na Faculdade Pitágoras, de Belo Horizonte,
e nele proponho que a última aula - para essas pessoas que
por profissão cultuam e hão de cultuar o sucesso -
seja voltada para o sentido pedagógico e ético do
fracasso. É fundamental que elas saibam, que todos saibamos,
que em certas circunstâncias é melhor perder do que
vencer. Há vitórias de Pirro. Há um êxito
profissional que aniquila a pessoa. E da mesma forma há aprendizados
inúteis, profissionalmente, mas que dão à pessoa
em formação (isto é, potencialmente, a qualquer
um de nós) uma profundidade de campo para lidar com uma vida
em risco.
Não
se trata, então, de fazer esse follow-up dos nossos
ex-alunos para descartar as (in)formações que não
tiveram papel em sua vida. Às vezes, pode ser exatamente
o contrário: notar o que lhes faltou, perceber o que truncou
suas vidas pela falta. Alguns excelentes alunos que passaram por
mim, na pós-graduação, não conseguiram
terminar suas teses, não porque fossem fracos, mas porque
aliavam a uma inteligência de primeira qualidade uma autocrítica
tão severa que não chegavam a completar o trabalho;
faltou, na formação que tiveram, talvez psicologia
ou simplesmente humanidade. Ficaram amputados em sua capacidade
de realização. Imagino que no mercado de trabalho
possamos detectar multidões de egressos das Instituições
de Ensino Superior a quem falta algo essencial, algo que os impede
de se realizar melhor; e descobrir esse ponto truncado será
quase fabuloso, de tão importante para pensarmos melhor os
cursos, os currículos.
Mas
a questão é que a vida tornou-se extremamente arriscada.
Podemos perder o emprego; uma profissão inteira pode ser
substituída por um novo software; mesmo aqueles de nós
que são efetivos, como os professores de universidades públicas,
têm diante de si a perspectiva de uma aposentadoria muito
pior do que esperavam; os casamentos se desfazem; os filhos somem.
Todos
os fatores de estabilidade que antes tornavam a vida segura, dos
profissionais aos pessoais, dos mais secos aos mais quentes, do
dinheiro ao amor, estão sendo postos em xeque. Isso requer,
na formação da pessoa - e sobretudo na educação
que culmina na universidade -, que se construa para cada um o que
eu chamaria uma profundidade de campo, uma retaguarda. Não
podemos viver sem este espaço de intimidade onde possamos
retemperar nossas forças, assegurar uma nova dose de energia,
ter a convicção de alguma paz. Antes, a cena pública
- no caso, profissional - era mais segura, e a profundidade de campo,
para o caso do desemprego ou do insucesso na profissão, era
garantida pela família. O mundo público e o íntimo
ou, se quiserem, a boca e o fundo do palco eram, ambos, seguros.
Hoje, gostemos ou não, ambos os espaços, o da visibilidade
profissional e o da invisibilidade afetiva, o da transparência
exibida porém frágil e o do ocultamento tonificante,
foram seriamente perturbados.
A vantagem
que situação tão adversa proporciona é
somente uma: que ficamos mais livres para trilhar caminhos mais
adequados às capacidades e desejos de cada qual. Não
precisamos mais nos modelar segundo um rol escasso de possibilidades,
tanto profissionais quanto pessoais. Mas esta vantagem tem de ser
agarrada com todo o empenho, com paixão, porque ela é
a única vantagem que se tem, num contexto tão caro
e custoso. Estamos pagando um preço muito caro pela vida,
hoje, em termos tanto profissionais quanto pessoais; então,
que pelo menos aufiramos o bem que nos custa tanto.
Como,
então, formar esta profundidade de campo? Penso que a universidade
tem sua contribuição nisso. Antes de sugerir qual
seja, porém, tenho de dizer que não é só
ela que deve incumbir-se disso; este deve ser um empenho de todos
nós, na medida mesma em que tomemos consciência desta
crise generalizada das posições sociais, incluindo
as profissões e os compromissos, que vem desde décadas
e parece que continuará ainda por bastante tempo. Mas a universidade
pode melhorar este quadro de duas formas.
A primeira
é alertando para esta instabilidade que tomou conta da vida
atual. Ela tem condições de captar o que é
um mundo de que desapareceu a solidez. Ela pode descrevê-lo,
conhecê-lo, apresentá-lo. Fazê-lo é diminuir
as ilusões de que se nutrem as pessoas, e isso é bom.
E assim agindo a universidade pode - segundo ponto - reduzir a dor
que esse chão ensaboado proporciona. É aqui que entra
o que chamei profundidade de campo. Não é a Universidade
que construirá a profundidade de campo afetiva, o espaço
formado por vínculos de amizade e de amor que é essencial
para nossa subsistência e crescimento. Mas a academia pode
elaborar uma outra profundidade de campo, numa associação
entre conhecimento e ação, entre saber e sabedoria.
Volto, aqui, ao projeto de curso de Humanidades, de que antes falei.
Tradicionalmente,
entendeu-se por muito tempo que, para sua boa formação
ética, o homem - e mais ele, o varão, do que a mulher
- deveria passar por uma boa leitura dos clássicos, de preferência
os greco-romanos. Essa convicção nasce em Roma antiga,
reaparece com a Renascença e está presente ainda nos
inícios do século XX, em nossa República Velha,
dessa feita com um forte viés conservador. Não é
nada disso o que pretende o nosso curso de Humanidades. E isso pela
simples razão de que o mundo atual não comporta, em
absoluto, a idéia de obras clássicas como fiadoras
da estabilidade dos valores essenciais, que era o que pretendia
a convicção a que aludimos. A formação
do homem de bem passava, então, pelo aprendizado de uma ética
permanente, inconteste. Ora, tudo o que dissemos até aqui
enfatiza, em nosso tempo, a mudança. Daí que um curso
de Humanidades tenha hoje um sentido inteiramente distinto do que
seria a formação ética estável de outros
tempos.
Seu
sentido só poderá ser o de lidar com a mudança.
Pode-se e deve-se trabalhar com os clássicos, sim, mas pela
sua qualidade, por sua excelência filosófica, artística
e literária, e não por valores morais que eles portariam
no lugar de sua qualidade específica. O que se procurará
estudando o cânone da cultura humana - ocidental mas também
oriental - será acentuar as diferenças, ao invés
portanto de uma ilusória homogeneidade e permanência.
Um dos mais destacados críticos literários do século
XX, Erich Auerbach, começa seu livro Mímesis distinguindo
uma forma de narrar bíblica, e judaica, de uma homérica,
e helênica. Essas diferenças, essas irredutibilidades
são o que interessa ressaltar.
Se
educarmos pessoas que não partam da crença na existência
de uma única teoria certa, mas que tenham sido formadas no
confronto de linguagens, de teorias, enfoques e abordagens, sabendo
que cada uma dessas ferramentas de pensar está dotada de
qualidades, mas também de limitações, teremos
diante de nós uma geração de pessoas mais apta
a lidar com o que é mutável no conhecimento e no mundo.
Não as conformaremos a um único modo de conversar
com o mundo; esse tipo de formação é, hoje,
desastroso no mais alto grau, por deixar as pessoas inteiramente
despreparadas para as crises que tenham em suas vidas, além
de ser intelectualmente insuficiente, por vender-lhes como verdade
definitiva o que, cientificamente, nunca pode ser mais que provisório.
Uma
última palavra: é evidente que um projeto de curso
como o de Humanidades não pode servir de modelo para toda
uma universidade, ou sequer para o seu setor de Humanas. É
um curso experimental, antes de mais nada. Mas ele pelo menos permite
marcar um ponto, a meu ver essencial, que é o de como podemos
e devemos enfrentar um mundo em mudanças. Isso exige uma
reflexão final sobre o mercado de trabalho.
Penso
que à universidade cabe promover sobretudo a formação
dos alunos, enquanto o seu treinamento pode ser conduzido no ambiente
das empresas. Obviamente, a formação é mais
integral do que o treinamento. Este, por sua vez, é mais
mutável, mais específico, mais nervoso, mais sujeito
aos tempos: uma escola de jornalismo, por exemplo, que pretenda
treinar para as redações terá na verdade que
mudar a cada ano ou mesmo semestre suas rotinas - e o fará
mal, enquanto num órgão de imprensa o recém-contratado
poderá aprender, em bem poucos meses, as técnicas
que porventura ainda lhe falte saber.
A universidade
não deve tentar fazer (mal) o que a empresa pode fazer melhor.
O papel do ensino superior é o de fazer bem o que só
ele pode fazer - no caso, formar pessoas para um ambiente de mudanças.
Se dermos às pessoas a densidade intelectual, cultural e
ética que depois as capacite a enfrentar - e mesmo a esposar
- as mudanças que experimentarem ao longo de suas vidas profissional
e pessoal, teremos dado a elas o melhor de nós. E os ambientes
de trabalho em que elas depois se integrarem proporcionarão
a sintonia fina dos meios pelos quais exercerão sua vida
profissional.
É
claro que isso não significa dois compartimentos estanques,
um a cargo da universidade, outro, da empresa (e, por que não,
dos sindicatos, dos movimentos sociais). Um diálogo entre
esses dois mundos é mais que desejável. O curso seqüencial
pode ser um feliz exemplo disso, se articular bem disciplinas intelectuais
distintas para preparar um bom profissional em áreas que,
por sua própria natureza, são de fronteira. E quando
se diz que hoje o aprendizado nunca cessa, e que vivemos numa sociedade
do conhecimento, é importante que a empresa - a cliente por
excelência que pode, inclusive, custear esse trabalho de informação
e formação constantes - esteja articulada com o ambiente
da pesquisa acadêmica. Nada do que eu disse, portanto, propõe
um alheamento dos dois mundos. Mas não conseguiremos converter
o que é assustador, neste mundo instável em que hoje
estamos, em produtivo e promissor, se não soubermos proporcionar
uma formação densa e rica que prepare as pessoas para
as trajetórias tão díspares, tão imprevistas,
que é cada vez mais freqüente que venham a ter.
Renato
Janine é professor da Universidade de São Paulo (USP).
Este
texto foi publicado originalmente no caderno especial Políticas
Públicas de Educação Superior - Volume 1 -
Desafios e Proposições, ABMES/FUNADESP: Brasília,
2002. Pp. 427-441.
Referências
bibliográficas
A principal referência bibliográfica deste artigo é
o livro Humanidades - um novo curso na USP (São Paulo, Edusp,
2001), que organizei e para o qual escrevi dois artigos. O primeiro
deles é uma apresentação, na qual sustento
uma série de princípios sobre a universidade. O segundo
é o projeto propriamente dito do curso.
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