Do
império à atualidade: marcas de continuidade na
história das universidades
A transferência da família real para o Brasil transformou
o país em sede da coroa portuguesa. Essa mudança impulsionou
a implementação de medidas administrativas, econômicas
e culturais para estabelecimento da infraestrutura necessária
ao funcionamento do império. A criação dos
primeiros estabelecimentos de ensino superior buscava formar quadros
profissionais para os serviços públicos voltados à
administração do país. As áreas privilegiadas
eram: medicina, engenharia e direito. Em 1808, foram criados os
primeiros estabelecimentos de ensino médico-cirúrgico
de Salvador e do Rio de Janeiro. O Rio de Janeiro foi cenário
de outras iniciativas culturais e científicas, como a criação
da Imprensa Régia, da Biblioteca Nacional e dos primeiros
periódicos científicos.
Faculdade
de Medicina, uma das duas primeiras do país,
que atualmente integra a UFBA
Na história da ciência e tecnologia, são as continuidades
que chamam a atenção da professora Silvia Figueirôa,
especialista em História das Ciências, do Instituto
de Geociências da Unicamp. "Não teríamos
chegado ao desenvolvimento científico e tecnológico
que temos hoje se não tivesse sido construída uma
tradição em pesquisa desde, pelo menos, o século
XVIII", afirma a professora. Atravessando o tempo, estão
presentes na cultura das universidades atuais, formas de pensar
e atuar que marcaram o tempo do império. A forma de buscar
o novo nas universidades, por exemplo, ainda é feita muitas
vezes à moda de Dom Pedro II. Este, vendo a necessidade de
modernizar a ciência e tecnologia brasileira, viajava, se
empolgava com o que via na Europa, e trazia modelos e profissionais
para reformar as instituições brasileiras. "Ainda
hoje, buscam-se pesquisadores de outros países, trazendo-os
para implantar laboratórios e linhas de pesquisa no Brasil",
diz a pesquisadora.
Figueirôa comenta que há um certo desprezo na literatura
pelo período anterior à constituição
das universidades. As análises também costumam desconsiderar
a produção científica dessa época, bem
como quando o sistema educacional brasileiro compreendia Insituições
de Ensino Superior e Grandes Escolas, como as de Engenharia, e mesmo
os colégios e seminários jesuítas, comenta;
e desabafa, "a idéia de que apenas na universidade se faz
ciência também permanece forte até hoje". O
livro Espaços da ciência no Brasil: 1800 - 1930,
editado pela Fiocruz em 2001, traz importantes contribuições
nesse sentido, analisando a atuação e papel desempenhado
por instituições como o Jardim Botânico do Rio
de Janeiro, o Instituto Bacteriológico em São Paulo,
o Instituto Butantan e também da Academia Brasileira de Ciências,
da Sociedade Auxiliadora da Indústria Nacional e da Comissão
Geológica do Brasil.
A criação de universidades foi
amplamente discutida por grupos sociais diversos no
país, porém, apenas no século XX surge a
primeira universidade brasileira. Apesar das controvérsias
históricas, parece ser consensual entre os historiadores
que a primeira universidade criada pelo governo federal brasileiro
foi a do Rio de Janeiro em 1920, que aglutinou as Escolas
Politécnica, de Medicina e de Direito já
existentes. Para José Luís Sanfelice,
professor do Departamento de História e Filosofia
da Educação, da Faculdade de Educação
da Unicamp, "é provável que esta iniciativa oficial
tenha tido o propósito, dentre outros, de ditar um modelo
universitário, uma vez que as ações privadas
e nos estados tendiam a se proliferar sem controle. Afinal de contas,
um ensino elitizado, e para as elites, não podia estabelecer-se
à revelia do poder central".
Reunir escolas e/ou faculdades já
fundadas, tornou-se uma marca do desenvolvimento do
sistema de ensino universitário brasileiro.
Baseadas na universidade do Rio de Janeiro foram criadas as
universidades federais nos estados. A presença de oligarquias na
criação das universidades, e os diversos
acordos realizados entre o poder federativo e os
estados, são apontadas como intimamente relacionados
aos diversos caminhos trilhados pelas universidades brasileiras
desde a sua criação. Para grande parte dos historiadores
, a instauração de muitas universidades significou o
desvio de recursos financeiros para os estados, local de
prestígio político e de emprego para os
filhos das elites.
Católicos, liberais e positivistas:
projetos contraditórios para as universidades
Para compreender as diferentes posições assumidas
na história pelas instituições de ensino superior
brasileiras parece ser importante conhecer as principais forças
políticas atuantes, seus interesses e projetos. Roberto Romano
da Silva, professor do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas
da Unicamp, destaca três grupos atuantes no século
XIX: a alta hierarquia do clero católico, as lideranças
civis liberais e os pensadores positivistas. Estes grupos apresentavam,
na opinião do pesquisador, idéias conflitantes sobre
o papel da universidade na vida política e social brasileira.
Para a igreja católica, a
criação de uma universidade com hegemonia
religiosa ajudaria a aumentar os quadros intelectuais a
serviço do projeto religioso. A universidade nos moldes
católicos privilegiaria disciplinas como: Filosofia, a Tomista,
que era adotada oficialmente pela Igreja Católica e que se
caracterizava pela tentativa de conciliar o aristotelismo com o
cristianismo; Teologia; Direito, com base na doutrina social da
igreja; Letras; Artes; e, quem sabe no futuro, alguns poucos setores
tecnológicos. Já os liberais definiam um programa
totalmente diverso dos católicos, privilegiando os setores
jurídicos de estudo, as áreas humanísticas
e a medicina. O projeto seria desvinculado de compromissos religiosos
e buscaria assegurar as formas de autoridade, e de pensamentos,
gerados pela Revolução Francesa e Revolução
Industrial.
Os positivistas, defendiam idéias
contrárias às duas posições
anteriores argumentando que "o Brasil não
precisava de universidades, mas de ensino fundamental
para as massas, sobretudo no campo tecnológico". Nessa
perspectiva, seria um absurdo a preocupação com o
ensino universitário quando "tudo ainda estava por fazer,
entre nós, em matéria de ensino primário e
secundário", comenta Romano citando Pereira Barreto,
um grande nome da ala positivista de 1880. Para os positivistas,
o controle das universidades pela igreja prejudicaria o advento
da idade científica e técnica no Brasil, e se fossem
dominadas pelos liberais, transformariam o país em uma anarquia
social e política, com os devaneios metafísicos que
imperaram na Revolução Francesa. Defendiam, por sua
vez, a criação de escolas técnicas e
científicas que ensinassem as leis da natureza, e
os meios de aproveitá-las em favor da humanidade.
Para Romano, o debate sobre a universidade e
sua inserção na vida social ainda
mantém, atualmente, as grandes linhas dessas
doutrinas: "o problema da passagem da ciência
à técnica, e a educação das massas
populares (ensino fundamental versus ensino
universitário), permanecendo o desafio de
compatibilizar as garantias individuais e as necessidades
coletivas, na sociedade e no Estado".
Ditadura imprime suas marcas via Reforma
Universitária
A reforma universitária, gestada pelo governo militar em
1968, é considerada um grande marco na história das
universidades brasileiras. Sanfelice comenta que o objetivo da reforma
era "modernizar a universidade para um projeto econômico
em desenvolvimento, dentro das condições de
'segurança' que a ditadura pretendia para si e
para os interesses do capital que o representava". A Lei
5540/68 introduziu a relação
custo-benefício e o capital humano na educação,
direcionando a universidade para o mercado de trabalho, ampliando
o acesso da classe média ao ensino superior e cerceando a
autonomia universitária.
Diversas medidas foram tomadas para
alcançar tais metas, entre elas: a
unificação do vestibular por região; o ingresso
por classificação; o estabelecimento de limite no
número de vagas por curso; a criação do curso
básico que reunia disciplinas afins em um mesmo departamento;
o oferecimento de cursos em um mesmo espaço, com menor gasto
de material e sem aumentar o número de professores; a
fragmentação e dispersão da
graduação; o estabelecimento de
matrícula por disciplina. Em 1971, foi promulgada a Lei
5692 que instituiu também a reforma do ensino fundamental,
com mudanças que determinaram, por exemplo, a
extinção das disciplinas de Geografia e
História que foram substituídas pelo
ensino de Estudos Sociais. Entre os resultados obtidos com
as políticas implementadas os pesquisadores apontam: a
diminuição na qualidade do ensino
fundamental público, com a respectiva
valorização do ensino particular, e a consequente
elitização do ensino universitário, que impede
até hoje o acesso de grande parte da população
à universidade pública.
Mas algumas medidas tomadas, com o decorrer dos anos, resultaram em
verdadeiras inversões nos objetivos iniciais das reformas
do ensino superior no país determinadas pelo regime militar.
A professora Albertina Lima Vasconcelos, da Universidade Estadual
do Sudoeste da Bahia (Uesb), conta que para satisfazer as novas
determinações da Lei 5692 foram criadas várias
faculdades no interior da Bahia, que deveriam formar os profissionais
de licenciatura curta para atender à nova demanda em Estudos
Sociais, Ciências e Letras. A professora analisa que, na Bahia,
as faculdades criadas no interior foram "equívocos que acabaram
dando certo". Após dez anos de extensas negociações
e luta dos docentes, as faculdades foram transformadas em universidades
estaduais e foram criadas as licenciaturas plenas em História
e Geografia. Criadas para satisfazer o mecanismo de formação
de profissionais da ditadura e promover a extensão do poder
governamental pelo interior da Bahia, as faculdades impediram a
migração de jovens para outras capitais e a expansão
do ensino particular no interior da Bahia, promovendo o fortalecimento
do ensino superior de caráter público no estado.
Analisar a história pela perspectiva
das rotas de fuga dos mecanismos ditatoriais, parece ser
importante, mas não apaga da história as
marcas da perseguição, cassação e
expulsão de pesquisadores, docentes e alunos em todo o Brasil,
que não aceitaram a ditadura e a ideologia da "segurança
nacional". Romano ressalta que "a universidade cumpriu
muitos papéis durante o regime castrador. Alguns de seus
membros foram heróicos na tarefa de manter a qualidade superior
da pesquisa e do ensino. Outros, se entregaram à
colaboração sem freios éticos com
os donos do mando político da hora. O movimento
estudantil, na época, foi um dos esteios da luta
em prol da democracia e do respeito aos direitos humanos".
A conivência de docentes das universidades com os militares
foi registrada na Revista
Adusp, da Universidade de São Paulo (USP). Uma ampla
cobertura traz à tona a colaboração da reitoria
da Usp com os órgãos repressivos que, inclusive,
antecedem o período do golpe militar. Ao mesmo
tempo a USP também teve uma intensa
movimentação política de combate
às condições da época realizando
passesatas, assembléias, manifestos e
reinvindicações que ficaram na
história.
A Universidade de Brasília (UnB) também traz em sua história
profundas marcas da política de desenvolvimento que imperou
durante a ditadura. Em contraposição aos modelos até
então existentes de universidade, na década de 60
a UNB surge com uma proposta, idealizada por Darcy Ribeiro e Frei
Mateus Rocha, que buscava criar a universidade necessária
para uma nação independente: mais democrática
e com maior autonomia. A "universidade necessária" ficou
no projeto, visto que a "universidade construída" durante
o regime militar foi bastante diferente. Duramente atacada, a UnB
tornou-se por meio do movimento estudantil e docente um importante
foco de resistência à ditadura na própria capital
da República. O site oficial da UnB
apresenta um interessante artigo de Geralda Dias, professora de
História das Universidades na instituição,
que aborda as mudanças no projeto da UnB e relata diversos
episódios da dura intervenção do governo na
universidade.
Se por um lado as universidades foram consideradas focos de subversão,
e a função da reforma era erradicar qualquer possibilidade
de contestação, por outro lado também ocorreu
uma expansão das universidades, e a reforma deveria atender
aos projetos estratégicos dos militares que, sob influência
da Guerra Fria, pretendiam transformar o Brasil em "potência".
As universidades que tinham fortes vínculos com o governo
passaram por uma modernização com ênfase na
pesquisa tecnológica e na ligação com o setor
produtivo. A relação entre laboratórios de
pesquisa, desenvolvimento e a segurança nacional é
ressaltada, e a universidade torna-se responsável pelo aumento
do "capital humano". Para Sanfelice essa diretriz parece ter orientado
a criação da Unicamp. Com o apoio do poder constituído,
foi implantada "em função de necessidades concretas
de mercado, que naquela conjuntura exigia engenheiros, químicos,
físicos, biólogos, matemáticos e economistas,
contando também com recursos públicos do estado e
posição geo-econômica estratégica". A
estas, entre outras razões, os pesquisadores atribuem o fato
da Unicamp constituir-se nos dias de hoje uma referência nacional
e internacional, tendo em vista sua capacidade de produção
científica, produção de conhecimentos e de
inovação tecnológica (leia reportagem
que mostra o interesse atual das universidades pela inovação
tecnológica).
Em todo o país, estudantes e professores buscam reorganizar suas
entidades representativas e denunciam a transformação
da universidade numa instituição muito mais estatal
do que pública. Uma das grandes bandeiras de luta que surge
nessa época é a autonomia universitária (leia
reportagem sobre a autonomia nas universidades).
O tempo passou... Constituição de 1988, nova Lei de
Diretrizes e Bases (LDB), e a comunidade universitária no
Brasil ainda discute questões que remetem ao tempo da ditadura,
e sua bandeira de luta também ainda parece hasteada no mastro
das agendas universitárias.
(SD)
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