A
fertilização tecnológica dos nossos corpos,
nossas vidas
Martha
Celia Ramírez-Gálvez
O movimento
de mulheres, na década de 70, lançou a máxima
our bodies, ourselves, que cristalizava a reivindicação
do controle reprodutivo como condição essencial para
o chamado, posteriormente, empowerment das mulheres. A posse
e o conseqüente controle do próprio corpo se tornou
uma condição essencial para o acesso à cidadania
das mesmas, na procura de dotá-las, pela via da função
reprodutiva, de direitos em um longo e ainda inacabado processo.
Ainda que este tenha tido suas particularidades nos diferentes contextos
locais, o significado filosófico e político desta
formulação norteou muitas das ações
e políticas que se seguiram nas décadas posteriores
no campo dos direitos reprodutivos.
Nesse
processo, separar sexo e reprodução se tornou um aspecto
essencial da modernidade, viabilizado em função do
desenvolvimento de tecnologias reprodutivas, entre as quais se encontram
as contraceptivas e as conceptivas. As primeiras permitiram, mediante
o desenvolvimento de métodos anticonceptivos e do aborto
seguro, o sexo sem reprodução. Em termos gerais, permitiram
às mulheres, sujeito privilegiado de saber e de políticas
no campo da reprodução, se desvencilhar do "destino"
biológico e escalar posições no mundo do trabalho
remunerado, profissional/econômico, assim como o acesso à
dimensão lúdica e prazerosa da sexualidade. O sexo
sem reprodução teria jogado um papel de grande importância,
uma condição "libertadora" que possibilitou
a escalada social das mulheres e transformações no
nível macro-social.
De
lá para cá se passaram várias décadas,
possibilitando a realização de diversas análises,
com diversos enfoques, acerca das implicações sociais
trazidas pelo controle moderno da fecundidade. No entanto, encontramo-nos,
atualmente, frente ao que pode ser considerado o avesso desse processo,
isto é, das tecnologias que possibilitam a reprodução
sem sexo.
As
chamadas Novas Tecnologias Reprodutivas Conceptivas (NTRc) abarcam
uma série de procedimentos de assistência médico-tecnológica
que possibilitam a ocorrência de uma concepção
sem coito. A evolução deste desenvolvimento tem características
de um acelerado processo, no qual técnicas como a fertilização
in vitro - usada na concepção da primeiro bebê
de proveta há 25 anos - tornam-se, em pouco tempo, tradicionais
ou são consideradas de baixa complexidade frente a outras
mais sofisticadas como a Injeção Intracitoplasmática
de Espermatozóide (ICSI) e a outras técnicas complementares,
como a fabricação e maturação de gametas
in vitro ou o diagnóstico genético pré-implantacional.
Por outro lado, a aceleração desse processo também
é observada no rápido crescimento de serviços
de reprodução assistida no país e na proliferação
de programas para diminuir os custos da reprodução
assistida, visando "democratizar" o acesso à mesma.
Essas
tecnologias colocam a intervenção médico-tecnológica
como condição necessária para a ocorrência
da fecundação. A reprodução sem sexo,
que acontece no laboratório e requer intervenção
profissional, parece introduzir outros paradoxos. As implicações
do sexo sem reprodução não são equivalentes,
em termos sociais e políticos, à reprodução
sem sexo.
A ausência
involuntária de filho, no contexto da proliferação
de serviços de reprodução assistida no Brasil,
é colocada como resultado das transformações
do mundo contemporâneo-moderno, entre as que se apontam as
mudanças na condição das mulheres. A inserção
das mesmas no mercado de trabalho estaria levando ao adiamento da
maternidade e a liberdade sexual aumentaria, segundo os médicos
especialistas, o risco de infertilidade em conseqüência
das doenças de transmissão sexual. Ambas as questões
são atribuídas às lutas dos movimentos de mulheres
e do sexo sem reprodução.
Nesse
sentido, Baudrillard (1999) aponta que a função sexual
estaria ameaçada pela sua própria emancipação
e realização. A contracepção, antes
pensada como transgressão de uma ordem, é redefinida
no mundo atual, onde cada vez mais parece adquirir sentido a reprodução
sem sexo que enaltece e possibilita (em menor grau), no âmbito
do laboratório, o desejo de ter filhos biológicos,
do próprio sangue, a escolha de características genéticas
desejáveis socialmente ou a realização das
chamadas adoções biológicas, quando não
há possibilidade de procriar com o próprio material
genético. A realização das mulheres modernas
que querem expandir os limites da natureza para dar lugar a sua
realização maternal, conjugal, financeira e profissional
é um argumento usado reiteradamente para justificar a necessidade
da assistência médico-tecnológica à reprodução.
No
entanto, a infertilidade passível de ser contornada mediante
o uso dessas tecnologias ultrapassa a definição inicial,
dada pela OMS, de ausência de gravidez ao longo de um ano
de relações heterossexuais não protegidas.
A possibilidade de ter filho biológico é estendida
a outras situações nas que a dificuldade reprodutiva
não necessariamente está dada por um impedimento da
função orgânica/corporal, como no caso da reprodução
em mulheres celibatárias ou em relações homossexuais.
Em princípio, essas tecnologias parecem "democratizar"
o desejo de ter filhos biológicos uma vez que sua realização
não estaria restrita ao contexto da heterossexualidade.
Se
nas décadas anteriores, nas que a preocupação
era a do sexo sem reprodução, a mulher era o sujeito,
por excelência, de pesquisas, formulação de
direitos e políticas públicas, o discurso contemporâneo
da reprodução assistida parece ter incorporado o conceito
de gênero. As causas da infertilidade aparecem distribuídas
eqüitativamente entre homens e mulheres, na procura de tirar
da mulher a responsabilidade de não conseguir "dar um
filho" para seu companheiro. Assim, não se fala mais
de mulher infértil, mas de casal infértil. Ainda que
no nível discursivo, das narrativas em torno da reprodução
assistida, se produza essa "democratização"
da responsabilidade pela infertilidade, as intervenções
tecnológicas continuam sendo realizadas no corpo das mulheres,
mesmo que a causa da infertilidade seja do homem. Com o advento
de técnicas como a ICSI, desenhadas para corrigir o chamado
fator masculino, parece que a infertilidade dos homens é
tratada no corpo das mulheres.
O campo
reprodutivo, de fato, tem sido re-significado por via da tecnologia.
As demandas reprodutivas de casais homossexuais, assim como de mulheres
em condições celibatárias trazem novos elementos
que extrapolam o modelo regulador de sexualidade heterossexual e
reprodutiva. Contudo, se existe uma re-significação
da reprodução por via das NTRc, pairam dúvidas
acerca de seu potencial subversivo, que possa ser equiparado ao
caráter libertador que as tecnologias contraceptivas tiveram
nas décadas de 60 e 70.
As
NTRc substituem tecnologicamente uma função corporal,
sendo que os corpos das mulheres parecem constituir extensões
da tecnologia. A medicina reprodutiva estimula o desejo de filho
biológico, mas se apropria da função criando
um ciclo de dependência tecnológica, e o requerimento
de tratamentos e regimes altamente invasivos que podem colocar em
risco a saúde, principalmente, das mulheres. Ainda é
cedo para fazermos avaliações rigorosas, ao longo
prazo, dos efeitos dos medicamentos e procedimentos utilizados,
tanto na saúde da mulher, como nas futuras gerações
"produzidas" mediante essas tecnologias.
Ao
transferir a reprodução da alcova para o laboratório,
observa-se o deslocamento da centralidade das mulheres nesse processo,
e a apropriação da reprodução por parte
da tecno-medicina. A mulher passa a ser agente passivo da habilitação
realizada pela tecnologia e a equipe médica, ampliando o
círculo de dependência tecnológica. A biotecnologia
se arroga o controle de sua instrumentalização nos
seus próprios termos e lógica, perpassada pela confluência
de diversos interesses num processo de "modernização
conservadora" que, a diferença do sexo sem reprodução,
aponta para a afirmação de valores tradicionais nos
velhos termos do parentesco e da família consangüínea.
O desenvolvimento e aprimoramento de sofisticadas técnicas
de diagnóstico e intervenção, assim como as
narrativas publicitárias da reprodução assistida
afirmam e lembram às mulheres que estão ali para ajudá-las
a cumprir seu destino, que não pode ser mais considerado
"natural", uma vez que as fronteiras do ciclo reprodutivo
são estendidas para permitir a reprodução inclusive
na menopausa ou com óvulos rejuvenescidos.
Nesse
novo panorama da reprodução sem sexo, em considerável
expansão, não se trata de se posicionar, a priori,
contra o uso das tecnologias reprodutivas conceptivas, mas de realizar
debates mais amplos, com participação de diversos
setores da comunidade, para avaliar e regulamentar sua utilização.
Em
suma, há de se considerar que nessa ampliação
da rede de participantes no processo de assistência à
reprodução, o casal, e mais particularmente a mulher,
parece perder centralidade e ser reduzida ao fornecimento de gametas,
matéria-prima para a transformação operada
por outros. O que está em jogo, atualmente, não é
só auto-determinação das mulheres sobre seu
corpo (como pode ter acontecido com o sexo sem reprodução),
mas também estão em jogo as alterações
da estrutura material/genética da espécie, a constituição
do humano reinventado, por uns poucos, no laboratório.
Martha
Celia Ramírez-Gálvez é doutora em Ciências
Sociais, e pesquisadora colaboradora do Núcleo de Estudos de Gênero
(Pagu/Unicamp).
Bibliografia
- Baudrillard,
Jean. Tela total: mito-ironias da era do virtual e da imagem.
Porto Alegre: Sulina, 1999 [1997]
- Ramírez-Gálvez,
Martha Célia. Novas Tecnologias Reprodutivas Conceptivas:
Fabricando a vida, fabricando o futuro. Campinas, 2003. Tese
(Doutorado em Ciências Sociais) - Instituto de Filosofia
e Ciências Humanas. Universidade Estadual de Campinas
- Rotania,
Alejandra. A celebração do temor. Biotecnologias,
reprodução, ética e feminismo. Rio de Janeiro:
E-papers, 2001
- The
Boston Women's Health Book Collective. Our bodies, ourselves.
New York: Simon and Schuster, 1971
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