História
das mulheres e relações de gênero: debatendo
algumas questões
Rachel
Soihet
As
contribuições recíprocas decorrentes da explosão
do feminismo e das transformações na historiografia,
a partir da década de 1960, foram fundamentais na emergência
da História das Mulheres. Nesse sentido, ressaltam-se as
contribuições da História Social, da História
das Mentalidades e, posteriormente, da História Cultural,
articuladas ao crescimento da antropologia, que tiveram papel decisivo
nesse processo, em que as mulheres são alçadas à
condição de objeto e sujeito da História. Fato
relevante, se considerarmos a despreocupação da historiografia
dominante, herdeira do iluminismo, com a participação
diferenciada dos dois sexos, já que polarizada para um sujeito
humano universal.
A partir
da década de 1970, "gênero" tem sido o termo
usado para teorizar a questão da diferença sexual.
Foi inicialmente utilizado pelas feministas americanas, sendo inúmeras
as suas contribuições. A ênfase no caráter
fundamentalmente social, cultural das distinções baseadas
no sexo, afastando o fantasma da naturalização; a
precisão emprestada à idéia de assimetria e
de hierarquia nas relações entre homens e mulheres,
incorporando a dimensão das relações de poder;
o relevo ao aspecto relacional entre as mulheres e os homens, ou
seja, de que nenhuma compreensão de qualquer um dos dois
poderia existir através de um estudo que os considerasse
totalmente em separado, constituem-se em algumas dessas contribuições.
Acresce-se a significação, emprestada por esses estudos,
à articulação do gênero com a classe
e a raça/etnia. Interesse indicativo não apenas do
compromisso com a inclusão da fala dos oprimidos, como da
convicção de que as desigualdades de poder se organizam,
no mínimo, conforme estes três eixos.
Todas
essas reflexões das mais fecundas não excluem, porém,
críticas à continuidade nos estudos de gênero
dos dualismos, especialmente, da divisão binária da
humanidade, a partir das construções baseadas no sexo.
Reflexões e pesquisas têm se desenvolvido com vista
a ultrapassar tais impasses, questionando-se a utilização
de uma categoria que tem como referência a diferença
sexual quando as discussões 'politicamente corretas' parecem
exigir, cada vez mais privilegiar outras marcas na explicação
das desigualdades. Uma proposta seria partir de uma perspectiva
pluralista, considerando-se uma multiplicidade identitária.
A historiadora Joan Scott, entusiasta da categoria gênero,
alinha-se entre as pioneiras que acentuam a necessidade de se ultrapassar
os seus usos descritivos, buscando a utilização de
formulações teóricas, com o que concordam muitas
das pesquisadoras. Uma exceção, nesse particular,
é Maria Odila da Silva Dias que discorda da necessidade da
construção imediata de uma teoria feminista, pois,
a seu ver, tal reconstrução significa substituir um
sistema de dominação cultural por outra versão
das mesmas relações, talvez invertidas de poder, já
que o saber teórico implicaria, também, num sistema
de dominação. Sugere partir de conceitos provisórios
e assumir abordagens teóricas parciais. Scott argumenta que,
no seu uso descritivo, o gênero é apenas um conceito
associado ao estudo das coisas relativas às mulheres, mas
não tem a força de análise suficiente para
interrogar e mudar os paradigmas históricos existentes. Assim,
não teria sido suficiente às historiadoras das mulheres
provar que as mulheres tiveram uma história, ou que as mulheres
participaram das mudanças políticas principais da
civilização ocidental. Após um reconhecimento
inicial, a maioria dos historiadores descartou a história
das mulheres ou colocou-a em um domínio separado. Esse tipo
de reação encerra, segundo Scott, um desafio teórico.
Ele exige a análise não só da relação
entre experiências masculinas e femininas no passado, mas
também a ligação entre a história do
passado e as práticas históricas atuais. Scott ressalta,
ainda, que as análises de gênero, no seu uso descritivo,
tem incidido apenas nos trabalhos sobre temas em que a relação
entre os sexos é mais evidente: as mulheres, as crianças,
as famílias etc. Aparentemente, temas como a guerra, a diplomacia
e a alta política não teriam a ver com essas relações.
O gênero parece não se aplicar a esses objetivos e,
portanto, continua irrelevante para a reflexão dos historiadores
que trabalham sobre o político e o poder. O resultado é
a adesão a uma visão funcionalista baseada sobre a
biologia e a perpetuação da idéia das esferas
separadas na escrita da história: a sexualidade ou a política,
a família ou a nação, as mulheres ou os homens.
Por
outro lado, a polêmica entre Joan Scott e as historiadoras
Louise Tilly e Eleni Varikas oferece um panorama da pluralidade
de concepções acerca da questão do gênero.
Ao reforçar a necessidade de se ultrapassar os usos descritivos
do gênero, buscando a utilização de formulações
teóricas, Scott afirma a impossibilidade de uma tal conceitualização
efetuar-se no domínio da história social, segundo
ela, marcado pelo determinismo econômico. Salienta a necessidade
de utilizar-se uma "epistemologia mais radical", encontrada,
segundo ela, no âmbito do pós-estruturalismo, particularmente,
em certas abordagens associadas a Michel Foucault e Jacques Derrida,
capazes de fornecer ao feminismo uma perspectiva analítica
poderosa. Nesse sentido, segundo Scott, os estudos sobre gênero
devem apontar para a necessidade da rejeição do caráter
fixo e permanente da oposição binária "masculino
versus feminino" e a importância de sua historicização
e "desconstrução" nos termos de Jacques
Derrida - revertendo-se e deslocando-se a construção
hierárquica, em lugar de aceitá-la como óbvia
ou como estando na natureza das coisas (Scott, 1994, 16) .
Louise
Tilly contrapõe-se a tal postura, com o que concorda Eleni
Varikas, ao afirmar que a vontade política de conceder às
mulheres o estatuto de sujeitos da história contribuiu para
o encontro das historiadoras feministas com as experiências
históricas das mulheres. E, para muitas, este encontro teve
lugar no terreno da história social, do que resultaram análises
notáveis de relações entre gênero e classes
sociais. Desse modo, as críticas formuladas por Joan Scott
contra a história social, quanto à marginalização
das experiências femininas, a redução do gênero
a um subproduto das forças econômicas, a indiferença
pela influência do gênero na constituição
do sentido na cultura e na ideologia política foi, segundo
Varikas, precisamente o que desapareceu nas tentativas bem sucedidas
de re-escrita feminista da história. Também, Tilly
e Varikas manifestam seu ceticismo quanto ao potencial de epistemologias
situadas no âmbito do pós-estruturalismo para elaborar
uma visão não determinista da história e uma
visão das mulheres como sujeitos da história. Nesse
particular, ocorre-me uma opinião sobre o assunto das mais
ponderadas: "se a linguagem constitui-se num dado ou obstáculo
inevitável, ela não é o começo e o fim
de tudo. Assim, importa não substituir a tirania do logos
por uma nova tirania", ou seja, a da linguagem, do discurso.
Varikas
critica, porém, as restrições de Tilly ao que
denomina "uso mais literário e filosófico do
gênero", atentando para a importância de se refletir
com mais precisão, acerca da influência do paradigma
lingüístico sobre a história das mulheres. Acentua
Varikas a importância das abordagens no âmbito da história
das idéias e das mentalidades, que concederam um lugar privilegiado
para a análise das representações, dos discursos
normativos, do imaginário coletivo; as quais chamaram a atenção
para o caráter histórico e mutante dos conteúdos
do masculino e do feminino, reconstruindo as múltiplas maneiras
pelas quais as mulheres puderam re-interpretar e re-elaborar suas
significações. E os estudos feministas não
esperaram o pós-estruturalismo para sublinhar a importância
das representações e dos sistemas simbólicos
na análise e na compreensão da construção
do gênero e das relações sociais que os sustentam.
Ainda,
Scott propõe a política como domínio de utilização
do gênero para análise histórica. Justifica
a escolha da política e do poder no seu sentido mais tradicional,
no que diz respeito ao governo e ao Estado Nação.
Especialmente, porque a história política teria se
constituído na trincheira de resistência à inclusão
de materiais ou de questões sobre as mulheres e o gênero,
vistos como categoria de oposição aos negócios
sérios da verdadeira política. Acredita que o aprofundamento
da análise dos diversos usos do gênero para justificativa
ou explicação de posições de poder fará
emergir uma nova história que oferecerá novas perspectivas
às velhas questões; redefinirá as antigas questões
em termos novos - introduzindo, por exemplo, considerações
sobre a família e a sexualidade no estudo da economia e da
guerra. Tornará as mulheres visíveis como participantes
ativas e estabelecerá uma distância analítica
entre a linguagem aparentemente fixada do passado e a nossa própria
terminologia. Além do mais, essa nova história abrirá
possibilidades para a reflexão sobre as atuais estratégias
feministas e o futuro utópico.
A análise
de Scott é de extrema relevância, pois incorpora contribuições
das mais inovadoras no terreno teórico, como no do próprio
conhecimento histórico. Considero, porém, que, a partir
do modelo de análise proposto, alguns elementos essenciais
ao desvendamento da atuação concreta das mulheres
tornam-se dificilmente perceptíveis. Importa, portanto, examinar
contribuições de outras historiadoras, entre elas
Michelle Perrot e Arlette Farge que, com esse objetivo, não
se limitam a abordar o domínio público. Recorrem a
outras esferas, como o cotidiano, no afã de trazer à
tona as contribuições femininas.
Nessa
perspectiva, ressaltam a necessidade de se buscar às mulheres
nos domínios nos quais ocorria maior evidência de participação
feminina. Os estudos sobre a sociabilidade feminina que deram lugar
a importantes trabalhos sobre o lavadouro, o forno, o mercado, a
casa, assim como os estudos sobre os tempos marcantes da vida, tomando
como objetos o nascimento, o casamento e a morte são destacados.
Daí não se aterem unicamente à esfera pública
- objeto exclusivo, por largo tempo, do interesse dos historiadores
impregnados do positivismo e de condicionamentos sexistas. Explica-se,
assim, a emergência do privado e do cotidiano, nos quais emergem
com toda força a presença dos segmentos subalternos
e das mulheres. Longe está o político, porém,
de estar ausente dessa esfera, na qual se desenvolvem múltiplas
relações de poder.
Tais
historiadoras evitam o binômio dominação/subordinação
como terreno único de confronto. Apesar da dominação
masculina, a atuação feminina não deixa de
se fazer sentir, através de complexos contra-poderes: poder
maternal, poder social, poder sobre outras mulheres e "compensações"
no jogo da sedução e do reinado feminino. Sua proposta
metodológica é estudar o privado e o público
como uma unidade, assaz renovadora frente ao enfoque tradicional
"privado versus público".
Advertem
as pesquisadoras que tais conclusões, acerca dos poderes
femininos, não devem, porém dar lugar a enganos, em
termos de uma perspectiva conciliadora, de justaposição
de culturas, ao mesmo tempo plurais e complementares, esquecendo-se
da violência e da desigualdade que marcam a relação
entre os sexos. Inúmeros exemplos são apresentados,
assinalando-se a presença da complementaridade na divisão
sexual das tarefas, o que não exclui uma hierarquização
dos papéis exercidos por homens e mulheres. Assim, reiteram
a existência da dominação masculina, instrumento
indispensável para captar a lógica do conjunto de
todas as relações sociais. Entretanto, na perspectiva
que adotam, a "dominação masculina" não
é mais uma constante sobre a qual toda reflexão tropeçaria,
mas a expressão de uma relação social desigual
que pode desvendar engrenagens e marcar especificidades de diferentes
sistemas históricos.
Voltando
à proposta de Scott, esta não abre espaço para
que emerjam as diversas sutilezas presentes nas relações
entre os sexos, das quais não estão ausentes as alianças
e consentimentos por parte das mulheres. Nesse particular são
muito adequadas as considerações de Roger Chartier,
pautado em Pierre Bourdieu, que destaca na dominação
masculina o peso do aspecto simbólico, que supõe a
adesão dos dominados às categorias que embasam sua
dominação. Utiliza-se Chartier do conceito de violência
simbólica que ajuda a compreender como a relação
de dominação - que é uma relação
histórica, cultural e lingüisticamente construída
- é sempre afirmada como uma diferença de ordem natural,
radical, irredutível, universal. Outrossim, alerta Chartier,
uma tal incorporação da dominação não
exclui a presença de variações e manipulações,
por parte dos dominados. O que significa que a aceitação
pelas mulheres de determinados cânones não significa,
apenas, vergarem-se a uma submissão alienante, mas, igualmente,
construir um recurso que lhes permita deslocar ou subverter a relação
de dominação. As fissuras à dominação
masculina não assumem, via de regra, a forma de rupturas
espetaculares, nem se expressam sempre num discurso de recusa ou
rejeição. Definir os poderes femininos permitidos
por uma situação de sujeição e de inferioridade
significa entendê-los como uma reapropriação
e um desvio dos instrumentos simbólicos que instituem a dominação
masculina, contra o seu próprio dominador.
A noção
de resistência torna-se, dessa forma, fundamental nas abordagens
sobre as mulheres, revelando sua presença e atuação
no seio de uma história construída pelos homens, com
vistas a reagir à opressão que sobre elas incide.
Historiadoras, como aquelas mais uma vez citadas, M. Perrot, Natalie
Davis, A. Farge, Silva Dias, eu própria, têm se baseado
nesse referencial na obtenção de pistas que possibilitem
a reconstrução da experiência concreta das mulheres
em sociedade, que no processo relacional complexo e contraditório
com os homens têm desempenhado um papel ativo na criação
de sua própria história.
Importa
esclarecer que tais observações não visam excluir
a abordagem das mulheres do terreno da política formal, sem
dúvida da maior importância no estudo da movimentação
feminina, na luta por direitos e de sua participação
como sujeitos na sociedade. Afinal, penetrar na esfera pública
foi um velho anseio por longo tempo vedado às mulheres. Passavam
as mulheres, segundo Hannah Arendt, a garantir sua transcendência,
pois o espaço público, afirma aquela filósofa,
não pode ser construído apenas para uma geração
e planejado somente para os que estão vivos: deve transcender
a duração da vida dos homens mortais, aos quais acrescentamos,
também, a das mulheres mortais.
Rachel
Soihet é professora do Programa de Pós-Graduação
em História da Universidade Federal Fluminense - UFF e pesquisadora
do CNPq.
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