Reportagens






 
No que o mundo da ciência difere dos outros mundos?

Léa Velho e Maria Vivianna Prochazka

A pequena proporção de mulheres em posições de poder e destaque na maioria dos ramos de atividade tem sido freqüentemente associada ao menor nível de escolaridade das mulheres. Como corolário, seria de se esperar que, uma vez que as mulheres tivessem acesso à educação de maneira similar aos homens, elas passariam a partilhar com eles, proporcionalmente, tais posições de poder e destaque, inclusive aquelas do mundo da ciência. Este artigo apresenta evidências de que acesso à educação é condição necessária, mas não suficiente, para a almejada paridade entre gêneros em termos de inserção e progresso profissional, rendimentos financeiros e, principalmente, de poder. O argumento é construído com base em alguns dados para a América Latina e Caribe, com destaque para aqueles relativos às atividades científicas.

Nos últimos 20 anos, as disparidades entre gêneros em termos de acesso à educação diminuíram sensivelmente na maioria dos países da América Latina e Caribe. Na verdade, em alguns destes países, as mulheres têm conseguido melhores resultados que os homens neste aspecto. Na educação primária, as taxas de matrícula são similares para meninos e meninas, exceto em alguns países que têm uma população indígena bastante significativa, como a Bolívia, o Equador e a Guatemala. Em outros países como Venezuela, Honduras, Nicarágua e República Dominicana e também nas pequenas ilhas de Trinidade Tobago e Barbados, a taxa de matrícula de mulheres é maior que a de homens na escola primária.

Essa vantagem das mulheres aparece com maior força e num número maior de países na educação secundária: apenas na Bolívia a taxa de meninas é inferior a de meninos na escola secundária (85%), embora, de modo geral, a taxa de matrícula nesse nível seja sensivelmente mais baixa para os dois gêneros que na educação primária. Isso significa que, embora a evasão do primeiro para o segundo nível escolar seja grande na América Latina, esse fato não afeta mais as meninas que os meninos. Pelo contrário, em média, as meninas continuam a sua educação por mais anos que os meninos, na medida em que os últimos tendem a abandonar a escola mais freqüentemente que as meninas, pelas mais diversas razões, entre as quais, para trabalhar. (ver tabelas)

Entre os matriculados na educação superior a participação dos gêneros é, no conjunto, equilibrada na região, talvez até mesmo mais favorável para as mulheres em países como Argentina, Uruguai e Brasil. Embora em algumas disciplinas técnicas e científicas, como ciências agrárias, engenharias e física, exista uma prevalência dos homens, as mulheres são maioria em química e biologia e, em alguns países, como Cuba, Costa Rica e Peru, até mesmo na medicina. Já nas ciências sociais, a proporção de mulheres é de cerca de 50% e nas ciências humanas, é superior a 60%.

Concomitantemente ao aumento da educação formal das mulheres na região, deu-se o incremento da participação delas na força de trabalho, atingindo 45% da população economicamente ativa em 2000 (fatos que, não necessariamente, refletem relação de causa e efeito). Entretanto, maiores níveis de escolaridade não garantiram oportunidades equivalentes de emprego para mulheres em relação aos homens. Pelo contrário: a disparidade de renda entre os sexos parece aumentar com os anos de estudo. As mulheres nos países latino-americanos precisam, em média, dois anos mais de escolaridade do que os homens para ter as mesmas oportunidades de emprego formal e quatro anos mais de escolaridade que eles para receber o mesmo salário. A disparidade em termos de renda permanece um dos mais importantes indicadores de desigualdade de gênero na América Latina, particularmente revelador quando se considera que quase todos esses países são signatários das convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT) que reconhecem o princípio de salários iguais para trabalhos similares. (ver documento).

É de se esperar que essa situação discriminatória contra a mulher trabalhadora não se repita no mundo da ciência que se orienta por critérios universalistas e meritocráticos. Nele, acredita-se, o que conta é a qualidade do trabalho realizado e não as características pessoais de quem o realizou, sejam elas relativas a gênero, raça, religião ou outras. Vamos examinar brevemente o que se passa em alguns países da região para os quais se dispõe de informação, com destaque para o Brasil.

A proporção entre gêneros é mais ou menos equilibrada entre estudantes no nível de Mestrado: as mulheres já representavam 50% deste contingente no Brasil e 41% no México em meados dos anos 90. No mesmo período os cursos de doutorado brasileiros tinham 46% de estudantes mulheres e, na Argentina, entre os que obtiveram título de doutor na Universidade de Buenos Aires, nos anos de 1996 a 1999, 55% eram mulheres. Entretanto, quando se considera acesso a bolsas de pós-graduação, a situação é, em muitos casos, menos favorável às mulheres. As pós-graduandas brasileiras que estudavam no país em meados da década passada, no conjunto, não se diferenciavam de seus colegas homens quanto a bolsas. Apenas nas ciências exatas e engenharias os homens doutorandos tinham, proporcionalmente, maior cobertura de bolsas que as mulheres - 55% das mulheres e 65% dos homens eram bolsistas nas exatas, e 41% das mulheres e 57% dos homens nas engenharias. Entretanto entre os brasileiros que receberam bolsa Fulbright para pós- graduação no exterior na década de 90, apenas 32% eram mulheres. No México, de cada 10 bolsas de pós-graduação, apenas 3 são concedidas a mulheres. No Uruguai as mulheres receberam cerca de 35% das bolsas de doutorado e no Equador apenas 27%. Na Nicarágua, para cada 3 homens bolsistas de doutorado da agência sueca SAREC, encontra-se apenas 1 mulher (fontes para os dados sobre Brasil e Nicarágua podem ser conseguidas com a autora; para o México, Equador e Argentina, ver www.segecyt.org.uy; para Uruguai, www.conicyt.gub.uy).

Graças ao crescimento da participação das mulheres na educação superior e na pós-graduação, hoje elas representam entre 35 e 50% do total de pesquisadores dos países latino-americanos. Tais proporções encontram-se bem acima daquela exibida pelas mulheres nos países da União Européia onde, em média, mais de 2/3 dos pesquisadores em institutos públicos de pesquisa e ¾ daqueles nas instituições de ensino superior são homens; ou nos Estados Unidos, onde em cada 5 pesquisadores se encontra apenas 1 mulher. (veja dados detalhados para a América Latina, União Européia, no Theme 9 - 7/2001, e para os Estados Unidos).

Os dados acima parecem indicar que o acesso à formação científica e ao trabalho em instituições de pesquisa não parece ser diferente para homens e mulheres na região e tende a se igualar. Entretanto, uma vez dentro do sistema, em termos de progresso na carreira científica e posição hierárquica, as mulheres na América Latina têm que enfrentar as mesmas dificuldades e barreiras que suas colegas pesquisadoras nos demais países do mundo. Hierarquia implica poder de decisão, que é importante para a seleção de tópicos de pesquisa e alocação de recursos, e é exatamente neste aspecto que a posição das mulheres deteriora sensivelmente. A única exceção parece ser Cuba, onde as mulheres são 58% dos pesquisadores e cerca de 50% dos diretores de pesquisa nas universidades.

Na Argentina, de todas as pesquisadoras registradas no Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet), 72% se concentram nos níveis mais baixos, comparados com 51% dos pesquisadores do sexo masculino. Somente 0.4% das mulheres alcançam o nível mais alto da carreira, comparado com 4.5% dos homens que o fazem, o que significa uma proporção de 10 homens para 1 mulher no topo.

O mesmo ocorre no Uruguai onde os homens ocupam 80% das posições de direção no Consejo Nacional de Ciência y Tecnologia (Conacyt). Lá também se identificou uma relação negativa entre o valor do projeto e ter o mesmo uma mulher como pesquisadora principal: 33% dos projetos com valores abaixo de US$30 mil são coordenados por mulheres, mas apenas 19% daqueles com valor acima de US$150 mil. No Equador, as mulheres conduziram 13% dos projetos de pesquisa nas universidades e 9% daqueles financiados pela Fundación para la Ciência y la Tecnologia (Fundacyt) entre 1994 e 1996.

No Brasil, existe equilíbrio de gênero apenas nos estágios iniciais da carreira científica (entre os pesquisadores com menos de 30 anos, os líderes distribuem-se eqüitativamente entre homens e mulheres); daí em diante a situação deteriora para cerca de 40% nas demais faixas etárias. Dos pesquisadores líderes com mais de 65 anos, 33% apenas são mulheres. A diferença entre a menor e a maior faixa etária indica uma tendência a crescimento da liderança científica das mulheres, que, mesmo não sendo equivalente à dos homens, encontra-se em significativos 40%. Isso deveria se refletir, por exemplo, na composição dos comitês de julgamento de projetos de pesquisa, mas pelo menos no caso do CNPq, o quadro é bastante diferente do esperado. Entre os 75 membros dos comitês assessores das engenharias, ciências exatas e da terra, encontram-se apenas 3 mulheres (menos de 4%). Nas áreas de ciências da vida, as decisões são tomadas por 60 homens e 19 mulheres (24%) e existem comitês específicos (agronomia e genética, por exemplo) conformados inteiramente por homens. Apenas nas áreas de ciências humanas e sociais existe uma participação equivalente entre homens e mulheres na composição dos comitês assessores.

Inúmeros outros casos podem ser citados no Brasil, assim como nos demais países da região, sobre a pequena participação das mulheres pesquisadoras em postos de direção e de poder de decisão no sistema de C&T. Mesmo que os dados não estejam à mão, basta olhar quem ocupa as pró-reitorias e diretorias nas universidades, a composição dos conselhos superiores das mais variadas agências de financiamento, os comitês assessores, a filiação honorífica às academias, e rapidamente se revela a preponderância masculina. O que é ainda bastante desconhecido nas nossas condições, é se, e em que medida, essa exclusão das mulheres é provocada por práticas discriminatórias (ainda que involuntárias e inconscientes) e que efeitos tal exclusão tem na atual e futura participação da mulher no sistema de C&T, assim como na natureza do conhecimento que se produz.

Estudos recentes revelaram a existência de práticas discriminatórias em instituições de alta reputação e em países-modelos de democracia. No prestigioso Massachusetts Institute of Technology (MIT) encontrou-se clara evidência de diferenças institucionais em termos de salário, espaço, financiamento e resposta a ofertas externas, com as mulheres consistentemente recebendo menos que os homens apesar de terem a mesma qualificação e desempenho profissional que eles. Resultados semelhantes foram encontrados nos centros internacionais de pesquisa agrícola do sistema Consultative Group on International Agricultural Research (CGIAR) (ver relatório)

Mas o estudo que mais provocou impacto e acabou publicado na Nature foi sobre o Conselho de Pesquisa Médica da Suécia que foi considerado como a primeira prova cabal de discriminação contras as mulheres no sistema de julgamento de propostas de pesquisa. Os resultados indicam que as mulheres tinham que ser 2.5 (duas e meia) vezes mais produtivas que os homens com quem competiam, para que conseguissem receber financiamento. Na Europa esse estudo é considerado um marco de que não é mais possível assumir que a menor presença das mulheres nos postos mais altos da ciência deve-se às próprias mulheres que não produzem tanto quanto os homens, que decidem criar filhos ou acompanhar os maridos e por isso interrompem suas carreiras ou caminham mais lentamente. Reconhece-se, a partir deste estudo, que as disparidades entre homens e mulheres na ciência devem-se às próprias instituições científicas e à maneira como elas operam. A partir desse reconhecimento, pode-se desenhar políticas e criar mecanismos para evitar descriminação.

Não existem estudos semelhantes para os países da América Latina. Uma indicação de que algo nesta linha pode ocorrer foi obtida em uma pesquisa sobre a Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) que revelou que as pesquisadoras do Instituto de Física e do de Química eram tão produtivas quanto seus colegas homens (inclusive em periódicos indexados pelo Índice de Citação Científica - SCI), mas avançavam muito mais lentamente na carreira do que eles. Mas este estudo está longe de ser representativo. Muito mais tem que ser feito, a começar pela iniciativa básica que é desagregar as estatísticas de todo o sistema de C&T de modo a permitir a análise comparativa entre gêneros.

Garantir uma participação eqüitativa entre homens e mulheres na ciência não é importante apenas por uma questão de justiça, ainda que esse motivo por si já seja suficiente. Mas é também fundamental porque a visão de mundo das mulheres é diferente da dos homens, o que faz com que elas façam perguntas científicas diferentes, tenham opinião distinta quanto a prioridades e tragam perspectivas de análise diversas.

Os novos sociólogos da ciência vêm argumentando há anos que não há nada no mundo científico que o diferencie das demais esferas da atividade humana. A ciência, como qualquer outra forma de conhecimento, é socialmente construída e incorpora os valores e práticas de seu contexto, incluindo aqueles que permeiam a relação entre gêneros. Isso é o que o breve relato acima parece confirmar.

Léa Velho é professora do Departamento de Política Científica e Tecnológica, Unicamp e pesquisadora do Instituto para Novas Tecnologias, Universidade das Nações Unidas. Maria Vivianna Prochazka é consultora na área de economia para a América Latina.

 
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Atualizado em 10/12/2003
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