Estudos
da ciência na ótica feminista
Claudia
Fonseca
Quem
não lembra ter lido num jornal cotidiano qualquer - de preferência,
na página dedicada ostensivamente à "ciência"
- algum artigo revelando verdades profundas do comportamento humano
com argumentos a base de pesquisas sobre a taxa de hormônios,
o tamanho de cérebros, ou a periodicidade do cio em mamíferos
(ou abelhas, ou amebas) - criaturas tidas como "parentes próximos"
de nós? Embora possam surgir nos mais variados debates (sobre,
por exemplo, a maioridade penal), tais argumentos "científicos"
proliferam com força redobrada em discussões sobre
relações familiares e práticas de namoro. Assim,
por exemplo, desde o início das modernas ciências sociais,
de Morgan a Lévy-Strauss, encontramos tratados em que a promiscuidade
masculina, a domesticidade da mulher, a competição
entre os homens e outras condutas sexuadas são apresentadas
como fenômenos pré-culturais, fatos óbvios da
natureza.
Tudo
isso mudou com a nova geração de teoria feminista.
Já na década de 1970, pesquisadoras feministas passaram
a desconstruir a "mulher eterna", revendo as perspectivas
canônicas que localizavam no corpo biológico a chave
da verdade feminina. Num primeiro momento proliferaram os estudos
históricos e etnográficos que, à la
Margaret Mead, demonstravam a enorme variabilidade de comportamentos
padronizados conforme o sexo do indivíduo. Com isso, tornava-se
cada vez mais inviável a crença em universalidade.
Mas não tardou para surgir a pergunta: de onde veio a noção
da "eterna feminina", a idéia de que nós
(especialmente as mulheres) somos o produto de nossos corpos? E,
com esse tipo de inquietação, a desconstrução
feminista foi se alastrando aos princípios fundantes da própria
ciência.
Em
After Nature, Marilyn Strathern fez um avanço considerável
nessa linha de reflexão ao problematizar a concepção
ocidental da relação entre natureza e cultura. A própria
idéia de que a cultura se constrói a partir de uma
"base sólida" dos "fatos concretos" da
biologia passou a ser revista. Já que essa concepção
não era só dos leigos, mas aparecia também
nos tratados científicos, era evidente que a desconstrução
feminista não devia parar, do lado de fora, na porta da academia.
Houve uma rejeição da pretensa neutralidade do "domínio
sagrado" da ciência; ressaltou-se a historicidade das
supostas "verdades transcendentes", até das ciências
naturais. No novo e mais radical capítulo de teoria feminista
(conhecido como "Science Studies"), pesquisadores passaram
sistematicamente a demonstrar como os produtores da ciência,
ao longo da história, formulavam a ciência "universal"
em termos de valores altamente particulares. Em outras palavras,
"mulheres escrevendo sobre a ciência" passou a ser
uma proposta ainda mais radical do que mulheres na ciência.
As
brilhantes escritas de Donna Haraway (1991) sobre simians e cyborgs
são sem dúvida as mais conhecidas nessa linha, mas
têm muitas outras. Por exemplo, numa recente publicação,
Susan McKinnon (2001a) apresenta uma hilariante análise dos
psicólogos evolucionistas, e de suas teorias tão atraentes
ao público leigo, que apresentam nossos corpos biológicos
como a explicação última dos comportamentos.
Conforme essas teorias, os seres humanos são motivados antes
de tudo pelo desejo de reproduzir (através de seus filhos)
seu código genético. Assim, para garantir a replicação
adequada, machos naturalmente investem em mulheres bonitas e sadias
(e o maior número possível), e fêmeas naturalmente
procuram machos com dinheiro e posses, sinais da ambição
e diligência necessárias para proteger sua prole. McKinnon
passa então a examinar as "evidências" que
esses pesquisadores apresentam para fundamentar seus argumentos.
Os
psicólogos evolucionistas encontram inúmeros exemplos
- entre pássaros, gorilas, e lobos - para nos convencer de
que certos comportamentos são universalmente femininos, outros
masculinos. No entanto, McKinnon, lembrando que o reino animal é
extremamente diversificado, pergunta quais as preocupações
que, entre os psicólogos evolucionistas, orientam sua escolha
de exemplos. Por que, por exemplo, evocam a chimpanzé (que
copula pudicamente apenas durante o período de cio) em vez
de falar da bonobo, espécie simiana em que a fêmea
tem sexo, constantemente, com machos e fêmeas? E responde
a sua própria pergunta:
"O
comportamento sexual polimórfico das fêmeas bonobo
contradiria os relatos estereotipados de gênero e parentesco
propagados por psicólogos evolucionistas; estes, portanto,
evitam cuidadosamente tais exemplos. Ao invés, investem
em espécies amplamente diversas - de zangões a gralhas-de-campo,
de gansos a peixe-boi, de avestruzes a sapos gladiadores, de elefantes
marinhos a babuínos - para encontrar o comportamento animal
que confirma os estereótipos unidimensionais de gênero
que são centrais à sua narrativa". (2001a:
66)
McKinnon
também chama atenção para a retórica
dos psicólogos evolucionistas que projeta para o reino animal
atitudes e valores eminentemente humanos. Assim, as pavoas preferem
pavões com plumagem de brilho vibrante, deixando machos com
plumagens monótonas na poeira evolucionária. Outra
passarinha inspeciona o ninho construído pelo seu macho,
e decide que o ninho não está à altura de seus
padrões, partindo em busca de um parceiro mais competente.
Na saga da seleção natural, seriam essas fêmeas
que venceriam, deixando "na poeira evolucionária"
aquelas "que não tinham preferências e que acasalavam
com qualquer um que surgisse pelo caminho". O raciocínio
circular nesse tipo de argumento é evidente. Selecionam-se
as espécies que ilustram a "verdade" dada de antemão
pela cultura do pesquisador, descreve-se o comportamento dessas
espécies em termos humanos, e depois usa-se essa descrição
de animais antropomorfizados para explicar o comportamento dos humanos.
Mas
será que McKinnon não está exagerando? Depois
de tudo, um psicólogo evolucionário tal como David
Buss, aplicando o rigor metodológico que aprendeu nas grandes
universidades por onde passou (Berkeley, Harvard, Universidade de
Texas, em Austin), não realiza ou pelo menos consulta pesquisas
em populações humanas contemporâneas para testar
suas hipóteses? McKinnon responde: os psicólogos evolucionistas
não somente ignoram a vasta produção etnográfica
sobre cultura e comportamento humano; quando resolvem testar empiricamente
suas hipóteses, é em geral numa "amostra"
altamente problemática:
"O
material primário e mais extenso sobre "preferências
de parceiro" vem da América, e não de uma amostra
diversificada e aleatória de americanos, mas de uma pequena
fatia da população de americanos mais prontamente
acessíveis aos pesquisadores da universidade: estudantes
não diplomados, entre 17 e 21 anos". (2001a: 70)
Trata-se
de uma população específica, numa situação
"cativa", que devolve ao pesquisador, respostas no papel
- um recorte que exigiria, no mínimo, uma certa dose de auto-análise
metodológica. No entanto, como McKinnon lembra, embora a
população pesquisada pelos psicólogos evolucionistas
raramente seja representativa da América do Norte, é
freqüentemente apresentada por eles como representativa da
espécie humana. Assim, não é de admirar-se
que os comportamentos masculino e feminino, tidos como "naturais"
parecem estranhamente aos dos jovens da classe média norte-americana.
Devemos
acrescentar que o espírito profundamente iconoclasta da teoria
feminista (que, por sinal, é aplicada por pesquisadores tanto
quanto por pesquisadoras) não se limita ao "outro"
das ciências naturais. McKinnon, em outro artigo recente (2001b),
vira seu olhar examinador para o ícone antropológico
dos tempos modernos - Lévy-Strauss - mostrando como sua análise
sobre a troca de mulheres também reflete vieses da época.
Citando trechos clássicos das Estruturas elementares do
parentesco, McKinnon revela uma persistente presença
de noções da bolsa de ações: a escassez
de um produto (mulheres), a necessidade de criar relações
de confiança que abrem linhas de crédito, de tomar
riscos - uma forma de especulação - que traz lucros
a longo prazo etc.. Chamando atenção para, por um
lado, essa "economia do parentesco" e, por outro, a naturalização
da escassez de mulheres (homens inevitavelmente querem muitas mulheres
e mulheres naturalmente têm atrações desiguais),
McKinnon abre o caminho para uma nova leitura das próprias
ciências etnológicas. Certamente, a intenção
dela não é minimizar as enormes contribuições
de Lévy-Strauss (ou qualquer outro clássico da antropologia)
para a nossa "ciência d@ homem". No entanto, o recado
é claro. Os estudos feministas da ciência partem da
premissa de que não existe produtor de conhecimentos "acima"
de seu contexto. E, nesse sentido, trata-se de uma perspectiva profundamente
perturbadora que não deixa nenhum pesquisador, nem mesmo
os da teoria feminista, a salvo de escrutínio.
Claudia
Fonseca é professora no programa de pós-graduação
de antropologia, da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.
Bibliografia:
- Haraway,
Donna J. 1991. Simians, cyborgs, and women: the reinvention
of nature. New York: Routledge.
- McKinnon,
Susan. 2001a. "A obliteração da cultura
e a naturalização da escolha nas confabulações
da psicologia evolucionista". Horizontes Antropológicos
16: 53-84.
- McKinnon,
Susan. 2001b. "The economies in kinship and the paternity
of culture: origin stories in kinship theory." In Franklin,
Sarah e Susan McKinnon. 2001. Relative values: reconfiguring
kinship studies (Franklin e McKinnon, eds.) Durham & London:
Duke University Press.
- Strathern,
Marilyn. 1992. After Nature: English kinship in the late twentieth
century. Cambridge: Cambridge University Press.
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