Reportagens






 
O gênero na ciência: os interesses da medicina na mulher 1

Fabíola Rohden


Analisando o conjunto de teses produzidas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, percebe-se que a onda de progressos nas teorias e técnicas e o surgimento de novas especialidades médicas implica uma desigualdade na atenção dedicada a cada um dos sexos. Uma preocupação singular com a delimitação do papel social de cada sexo pode ser percebida a partir do processamento dos títulos das teses produzidas na Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro entre 1833 e 1940, que constam do Catálogo de teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro publicado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro em 1985. Neste catálogo constam todas as teses do acervo da antiga Faculdade de Medicina que passou a fazer parte da Universidade Federal. As teses ao longo desse período constituíam o último requisito para que o aluno recebesse o grau de doutor em medicina. Variavam muito no decorrer do tempo quanto às exigências, formatos e conteúdos a serem seguidos. Porém, o mais importante é que este tipo de material é oriundo de uma instituição de reprodução profissional, além de representar aquilo que poderia existir de mais oficial no pensamento médico. Utilizando as informações do Catálogo entre 1833 e 1940, o que totaliza 7.149 teses sobre os mais diferentes temas e especialidades médicas, encontrei 1.593 referentes à sexualidade e à reprodução, o que significa 22,3%. Este número é bastante expressivo do interesse da medicina por esta temática (Rohden, 2001).

A seleção procurou levar em conta todas as possibilidades em que pudesse aparecer, mesmo que de forma sutil, a preocupação médica com a sexualidade e a reprodução. Neste sentido, não me limitei aos temas que seriam mais tradicionalmente definidos como do domínio da obstetrícia e ginecologia, até porque naquele momento as fronteiras entre as especialidades médicas ou não existiam ou ainda eram bastante indefinidas. Quanto aos temas que aqui estou rotulando de "sexualidade e reprodução", selecionados no conjunto total das teses, estão divididos em três grandes vertentes. A primeira diz respeito a assuntos que poderiam ser classificados dentro do arcabouço compreendido pela ginecologia e obstetrícia, como as doenças no aparelho reprodutor feminino, cirurgias, parto, gravidez. A segunda se refere a categorias que também compreendem sexualidade e reprodução, mas implicam fenômenos que têm uma conotação mais explicitamente social como casamento, aleitamento, aborto. E por último, foram incluídas as teses que poderiam expressar a preocupação médica com a sexualidade e reprodução no caso masculino, o que significou a inclusão de doenças no aparelho reprodutor masculino, doenças venéreas e urologia.

Do total de 1593 teses catalogadas, temos 1345 referentes à mulher e apenas 248 ao homem. É claro que, como estamos tratando aqui de sexo e reprodução, e como a fecundação, gestação, parto, aleitamento se dão no corpo feminino, justifica-se em parte esta diferença. A elevada frequência de teses que focalizam gravidez, parto, puerpério estritamente ou que se relacionam a estas fases, evidenciam como a obstetrícia passou ao longo do século XIX e do início deste a ser um tema de franco interesse para a medicina. Contudo, resta ainda uma grande porcentagem de trabalhos sobre os órgãos e funções reprodutivas femininas que não têm correspondência no caso do homem. Por exemplo, há teses sobre a natureza do ovário, o que é, como funciona, para que serve. Mas não há teses sobre os testículos. No conjunto que denominei doenças no aparelho reprodutor masculino (apenas 56) a maioria das teses é sobre tumores ou problemas na próstata e só começam a aparecer a partir de 1869. As teses referentes à urologia (um total de 83) não implicam o tratamento da função reprodutiva. As doenças venéreas (109 teses) abrigam, em uma certa medida, a preocupação com a degeneração da capacidade reprodutiva masculina. Porém, os órgãos reprodutivos masculinos não são analisados por si mesmos. Muitas vezes, as teses sobre menstruação ou mesmo sobre puberdade feminina caracterizam a vida da mulher a partir das passagens que sofre em função da preparação, exercício e perda da capacidade reprodutiva. Não há nada equivalente para o homem, ou seja, a vida masculina não é problematizada pela medicina em função da reprodução.

Essa preocupação particular da medicina em relação à mulher aparece nitidamente também no surgimento da ginecologia enquanto um ramo específico da medicina. Isso fica evidente, por exemplo, nas definições apresentadas nos dicionários. No Oxford English Dictionary editado em 1933 (Vol.4:529) temos a seguinte referência: "Ginecologia: o ramo da ciência médica que trata das funções e perturbações peculiares às mulheres. Em sentido lato, a ciência da feminilidade [womankind]". Ou seja, estamos tratando de uma ciência dos atributos essenciais da mulher ou da sua natureza específica. A definição dada pela Grande Enciclopédia Portuguesa e Brasileira (s/d:396) segue a mesma linha quando define a ginecologia como: "Estudo da mulher. Parte da medicina que se ocupa especialmente da fisiologia da mulher e das doenças que lhe são próprias."

Sem dúvida, as definições são bastante abrangentes e podem ser resumidas na noção de ciência ou estudo da mulher. Esta preocupação da medicina em dedicar-se ao estudo da mulher não nos causaria espanto se houvesse também uma ciência ou estudo do homem. Nos mesmos dicionários citados acima não há qualquer referência à andrologia, a disciplina que teria se constituído para tratar da sexualidade e reprodução no homem. Quanto à urologia, só em alguns casos sua definição expressa, além do estudo e tratamento do aparelho urinário em ambos os sexos, a preocupação com os órgãos sexuais masculinos. Jamais a noção de um estudo do homem apareceu nas referências. Como isso também não se revela no quadro das teses defendidas na Faculdade de Medicina ou em outras fontes consultadas, podemos suspeitar que há uma diferença de consideração a respeito das duas metades que compõem a humanidade. De um lado, a mulher é tratada no discurso médico como eminentemente presa à função sexual/reprodutiva, diferentemente do homem. De outro lado, quando se fala em reprodução, quase que maciçamente se evoca a mulher e raras vezes o homem.

Entender a conformação desse discurso implica em mergulhar no contexto da época, tentar perceber as conexões entre o pensamento científico e os padrões sociais vigentes em cada momento, como se tenta fazer a seguir.

As diferenças entre os sexos ou a própria idéia de dois sexos biológicos distintos é uma concepção que pode ser historicamente contextualizada (Laqueur, 1992). Em algum momento do século XVIII passa-se a considerar a existência de um modelo de dois sexos, contrariamente à percepção herdada dos gregos de que haveria apenas um sexo biológico, enquanto o gênero se apresentaria pelos menos em duas possibilidades. Neste modelo antigo, de um sexo, homem e mulher não seriam definidos por uma diferença intrínseca em termos de natureza, de biologia, de dois corpos distintos, mas, apenas em termos de um grau de perfeição. Dependendo da quantidade de calor atribuída a cada corpo, ele se moldaria em termos mais ou menos perfeitos, em um corpo de homem quando o calor foi suficiente para externalizar os órgãos reprodutivos, ou em um corpo de mulher quando foi insuficiente e os órgãos permaneceram internos. As diferenças seriam de grau, compondo uma hierarquia vertical entre os gêneros. Os órgãos reprodutivos, vistos como iguais em essência e reduzidos ao padrão masculino. Ou seja, homens e mulheres seriam igualmente dotados de pênis e testículos, por exemplo. A única diferença é que na mulher esses órgãos não foram externalizados. Haveria, então, um só corpo, uma só carne, para a qual se atribuem distintas marcas sociais. Inscrições, certificados culturais baseados em caracteres sociais mais que biológicos e que comportam uma relação hierárquica entre seres considerados de acordo com uma escala de perfeição. Esse modelo teria prevalecido até o Renascimento, quando entra em curso uma série de fatores, complexos e, em última medida indetermináveis. Fatores que, por algum tipo de combinação especial, vão propiciar a passagem para o modelo de dois sexos, para uma biologia da incomensurabilidade, um novo dimorfismo, instituindo uma diferença radical entre homens e mulheres e não mais uma hierarquização.

Nota-se agora uma inversão: o corpo, o sexo, passa a ser a fundação da sociedade. As diferenças biológicas diagnosticadas pelos cientistas passam a oferecer a base para que pensadores sociais dissertem sobre as diferenças inatas entre homens e mulheres e a consequente necessidade de diferenciações sociais. A natureza já se encarregou de postular a divisão. Cabe à sociedade respeitá-la e promover um comportamento adequado. Para os iluministas, a mulher era incapaz de assumir plenamente as responsabilidades cívicas pretendidas no contrato social. A biologia da incomensurabilidade fornecia um modo de explicar as diferenças sociais, já que na própria natureza, homens e mulheres eram diferentes, e mais do que isto, as mulheres eram naturalmente inferiores. No século XIX essas distinções e conclusões políticas a partir da natureza tornam-se inquestionáveis. E a ciência, ou a medicina, só acrescenta cada vez mais novos e intrigantes detalhes que provam a intransponibilidade da diferença.

As alterações nas funções ocupadas pelas mulheres começavam a ameaçar a ordem social estabelecida, desde a vida doméstica cotidiana. Os cientistas tentavam dar conta de entender as mudanças e prescrever as soluções nas quais acreditavam. Isso implicou em um detalhado exame das diferenças entre homens e mulheres que justificariam seus distintos papéis sociais tradicionais. Anatomia, fisiologia, biologia evolucionária, antropologia física, psicologia e sociologia construíam teorias da diferença sexual. Apesar das distinções entre as disciplinas, imperava o consenso de que as mulheres eram inerentemente diferentes dos homens em sua anatomia, fisiologia, temperamento e intelecto.

Uma série de transformações científicas e sociais implicaram no desenvolvimento do que é possível chamar de "uma ciência da diferença" - a ginecologia. Na verdade, sexo e gênero, assim como raça, eram algumas das mais importantes categorias que ajudariam os cientistas do século XIX a preencher a sua ânsia classificatória. Elaboravam-se diversas formas de classificação dos indivíduos, enfatizando a diferenciação e a hierarquia. Entre estas formas, o sexo e o gênero se constituíam em dois dos grandes temas de interesse da época, pois colocavam em cena a relação do homem com a natureza.

Fabíola Rohden é pesquisadora do Centro Latino Americano em Sexualidade e Direitos Humanos, do Programa de Estudos e Pesquisas em Gênero, Sexualidade e Saúde, do Instituto de Medicina Social da UERJ.

Referências:

  1. Este trabalho sintetiza algumas reflexões desenvolvidas em Rohden, F. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro, Fiocruz, 2001 [voltar].

Bibliografia:

  • Catálogo de teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: UFRJ, 1985.
  • Grande enciclopédia portuguesa e brasileira. Lisboa/Rio de Janeiro: Editorial Enciclopédia, s/d.
  • LAQUEUR, Thomas. Making sex: body and gender from the greeks to Freud. Cambridge: Harvard Univ. Press, 1992 [1990].
  • ROHDEN, F. Uma ciência da diferença: sexo e gênero na medicina da mulher. Rio de Janeiro, Fiocruz, 2001.
  • The Oxford English dictionary. A new English dictionary on historical principes. Oxford: Clarendon Press, 1933.
 
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Atualizado em 10/12/2003
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