Nas
humanas, elas são maioria. Mas chegar ao topo ainda é
difícil
Foram
as ciências sociais que impulsionaram o ingresso das mulheres
na área de humanas, ainda na década de 30, com as
primeiras manifestações do movimento feminista chegando
ao Brasil, época em que se iniciou o processo de entrada
das mulheres no mercado de trabalho. Tidas como ciências desprestigiadas
no mundo científico, principalmente em relação
às exatas, as humanas concentram o maior número de
mulheres. Suas disciplinas constituintes são caracterizadas
como espaços para o exercício da reflexão,
disciplina e sensibilidade, atributos ligados ao universo feminino
pela cultura ocidental. Contudo, quando se trata dos cargos de chefia,
esses mesmo valores dificultam a ascensão na carreira pois,
aos postos de comando, são atribuídas características
masculinizantes.
O Conselho
Nacional de Pesquisa de Desenvolvimento (CNPq), principal órgão
de fomento que atende a todos os estados brasileiros, teve, em 2002,
cerca de um sexto do total de bolsas concedidas para pesquisas em
ciências humanas. Nestas, o número de mulheres bolsistas
foi quase o dobro do que o de homens: cerca de 2990 mulheres receberam
bolsas do órgão, contra aproximadamente 1550 homens.
Embora sejam maioria, as mulheres ainda enfrentam dificuldades para
progredirem na carreira acadêmica.
A cientista
social Maria da Glória Bonelli, pesquisadora da Universidade
Federal de São Carlos (UfsCar), explica que a criação
da Escola Livre de Sociologia Política, em 1933, e da Faculdade
de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP), em 1934,
possibilitou que as mulheres ingressassem no meio acadêmico.
"A Escola tinha uma formação para a elite intelectual,
que não tinha tempo para freqüentar as aulas. Então
surgiu a idéia de fazer um convênio com a Escola Normal
para que o curso fosse mantido. Com essa divisão de origem,
surgiu um grupo de mulheres que ingressaram no curso como uma complementação
da Escola Normal", explica Bonelli.
Na
USP, as mulheres migraram, aos poucos, para outros cursos que surgiram
nas ciências humanas e, posteriormente, ingressaram em outras
áreas fora das humanidades. Para Bonelli, existe a idéia
de que as mulheres têm um empenho maior para a realização
de tarefas que exigem reflexão e sensibilidade, atividades
que caracterizam as ciências humanas. Além disso, para
a pesquisadora, as mulheres tendem a pesquisar áreas socialmente
identificadas como femininas, tais como relações familiares
e de gênero.
Pesquisas
de gênero
As
pesquisas de gênero paulatinamente ganharam espaço
na academia, depois de sofrerem uma resistência inicial para
adoção de linhas de pesquisa com essa temática.
A coordenadora do Núcleo de Estudos da Mulher e Relações
Sociais de Gênero (Nemge), do Departamento de Sociologia da
USP, Eva Blay, vivenciou um exemplo dessa resistência. Por
volta de 1965, ela ofereceu um curso de especialização
sobre o papel social da mulher e não houve nenhum inscrito.
"O tema era muito inovador na academia. Além disso,
era considerado por vários de meus colegas, com honrosas
exceções, um tema secundário, não importante",
explica Blay.
Para
a historiadora Rachel Soihet, docente da Universidade Federal Fluminense
(UFF), houve um avanço na academia, mas os estudos de gênero
ainda eram considerados menos importantes do que outros, relativos
às questões de classe, raça e de etnia. Para
a historiadora, o feminismo era muito ridicularizado e as mulheres
feministas eram consideradas masculinizadas. A persistência
desse pensamento na academia faz com que, até hoje, as questões
de gênero sejam desprestigiadas nas ciências humanas.
No
Brasil, as primeiras pesquisas de gênero ganharam destaque
somente na década de 80. "Esses trabalhos também
surgem da invisibilidade das mulheres durante muito tempo, o que
se percebe quando se trabalha com história. O recorte teórico
está muito ligado à trajetória de vida, à
experiência e sensibilidade da pesquisadora para essas questões",
afirma a historiadora Soihet.
Concentração
feminina
A
proporção de homens e mulheres varia conforme as áreas
que compõem as ciências humanas, que compreendem, segundo
a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal
de Nível Superior (Capes), arqueologia, antropologia, ciência
política, educação, filosofia, geografia, história,
psicologia, sociologia e teologia. A antropóloga e representante
das ciências humanas na Capes, Miriam Grossi, considera que
no caso das ciências sociais, a ciência política
concentra um maior número de homens, enquanto a sociologia
e a antropologia, possuem um equilíbrio entre ambos os sexos.
A pesquisadora Soihet lembra também que a filosofia concentra
um número maior de homens. "Temos apenas uma Marilena
Chauí no Brasil", exemplifica.
O número
de mulheres é maior na antropologia, de acordo com Grossi,
por motivos culturais. "Os métodos da antropologia falam
de subjetividade, de sentimento, de relação, que são
valores delegados ao feminino pela cultura ocidental. Um antropólogo
só fará uma boa antropologia se ele for capaz de elaborar,
de registrar seus sentimentos. É um treinamento de reflexibilidade,
que é um valor atribuído ao feminino", explica.
A antropologia
serve de exemplo como uma das áreas das ciências humanas
que, mesmo com maior concentração feminina, (tem média
nacional de 70% egressas no mestrado), observa uma "masculinização"
conforme a progressão dos níveis de titulação
acadêmica: no doutorado a média nacional de egressas
na antropologia, por exemplo, cai quase pela metade.
Dados
da UfsCar servem de exemplo para esse fenômeno. O curso de
ciências sociais, por exemplo, teve, em 2002, uma turma de
graduação composta por 12 homens e 23 mulheres. No
mesmo ano, no mestrado, o número de homens passa a ser maior
do que o de mulheres: 11 contra 8. No doutorado, o número
se equipara, e a turma passa a ser composta por 5 homens e 5 mulheres.
Teto de vidro
A
redução da concentração do número
de mulheres e conseqüente equilíbrio entre os sexos
nos níveis mais elevados da academia nas ciências humanas
ocorre porque a mulher encontra obstáculos para a progressão
na carreira. É o que Grossi chama de teto de vidro. "As
mulheres têm a ilusão de que elas podem subir, mas
em algum momento alguma coisa impede", afirma. Isso faz com
que os cargos de diretoria, de chefia e de representação
continuem sendo ocupados por homens.
Grossi
é uma das 3 mulheres que ocupam os cargos de representação
nos Conselhos Técnicos Científicos (CTCs), da Capes,
dentre 20 pessoas. No Conselho Técnico Científico
Superior, órgão acima do CTC, não há
nenhuma mulher atuando como representante. "Esse é o
não-lugar da mulher na ciência no Brasil", afirma
Grossi.
Para
Grossi, além da discriminação que a mulher
sofre no meio acadêmico, outros papéis atribuídos
socialmente às mulheres contribuem para o adiamento ou abandono
da carreira. Nesse sentido, Soihet acrescenta que a maneira como
a sociedade se organizou faz com que a obrigação de
socializar os filhos seja feminina. "O Estado deveria fazer
com que as escolas preparassem essas crianças. Uma re-adequação
do papel da mulher é também um dever do Estado",
afirma Soihet.
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