As
desigualdades de gênero e o novo Código Civil
Fabiane
Simioni
A proposta
deste texto é problematizar alguns aspectos do novo Código
Civil brasileiro, a partir de três temas que apontam para
algumas das especificidades das desigualdades entre homens e mulheres.1
Parte-se do pressuposto de que, embora tenhamos como princípio
constitucional e garantia jurisdicional a eqüidade de gênero,
há um descompasso entre a declaração de tal
direito fundamental e as práticas sociais, entre elas, a
jurídica, notadamente no que tange à família,
à reprodução e à sexualidade.
O novo
Código Civil, em vigência desde 11 de janeiro de 2002,
de fato, não acompanhou inteiramente as transformações
tecnológicas e humanas de nossa sociedade. Em poucas palavras,
tratou de incorporar no texto normativo questões já
pacificadas na prática social e na jurisprudência.
No
que toca à regulação sobre família,
o novo código, no artigo 1.511, refere que o casamento estabelece
a comunhão de vida plena, com base na igualdade de direitos
e deveres dos cônjuges.2
Da mesma forma, no artigo 1.565, considera que, pelo casamento,
o homem e a mulher assumem mutuamente a condição de
consortes, companheiros e responsáveis pelos encargos da
família.
Com
efeito, trata-se de hipóteses em que o novo código
apenas acolhe o preceito constitucional da igualdade de direitos
entre homens e mulheres, erigida em direito fundamental no artigo
5º, inciso I da Constituição Federal; bem como
incorpora a igualdade de direitos e deveres conjugais, na esteira
do artigo 226, parágrafo 5º do mesmo diploma fundamental.
Quanto
aos direitos civis decorrentes do convívio em parcerias entre
homossexuais, o legislador ignorou a jurisprudência, a qual
acatou as transformações na realidade social e construiu
novas possibilidades sobre a pertinência das uniões
homossexuais ao direito de família.3
Nesse
contexto, uma das principais conseqüências dessa assimetria
de tratamento, ora repetindo fórmulas, ora silenciando, será
a valorização da atividade interpretativa dos operadores
de justiça, na medida em que os obrigará a seguir
na direção das transformações pelas
quais passa a sociedade, repensando o sistema jurídico como
uma ordem capaz de vincular a normatividade às realidades.
Na
hipótese de separação ou dissolução
da sociedade conjugal, o artigo 1.584 do novo código declara
que, havendo desacordo entre os pais, a guarda será atribuída
a quem revelar melhores condições para exercê-la.
Observa-se, nesse caso específico da guarda dos filhos, outro
exemplo que expõe a desigualdade de gênero nas relações
familiares. Mais uma vez, o legislador deixou de contemplar a possibilidade
da guarda dos filhos ser atribuída explicitamente ao pai.
Quando
o Estado garante uma licença maternidade de cento e vinte
dias, enquanto a licença paternidade é de cinco dias4,
reforça-se sobremaneira a concepção de que
os cuidados primários devem ser exercidos pelas mulheres.
Mesmo sendo a relação mãe-filho apenas mais
uma entre tantas outras, a maternagem e a paternagem estão
estruturalmente relacionadas a arranjos e formulações
ideológicas que acabam justificando a divisão de trabalho
por sexo. Ao não se explicitar o direito do pai à
guarda dos filhos, o direito corrobora determinadas representações.5
Em
relação às tecnologias de reprodução
medicamente assistidas, o novo código deixou de contribuir
para a regulação de matérias específicas
como o tratamento dispensável às pesquisas em engenharia
genética, a elegibilidade quanto ao acesso às tecnologias,
a maternidade substituta, entre outros temas. Tratou, tão-somente,
de reiterar as presunções jurídicas quanto
à paternidade e à maternidade, no artigo 1.597, incisos
III, IV e V, que regulam a filiação por fecundação
artificial.6
Verifica-se
que o legislador, ao definir naqueles termos a representação
jurídica de família, associou o parentesco ora com
a chamada 'verdade afetiva', ora com a 'biológica'. Se, por
um lado, os laços de sangue seriam o fundamento real do parentesco,
considerada a 'verdade biológica', por outro, a moralidade
compartilhada em relação às condutas, encerraria
a dimensão da 'verdade afetiva', ressaltando o aspecto intencional
para a constituição do parentesco. Destaca-se aqui
que tais presunções reproduzem o modelo tradicional
que reifica a ordem da natureza em termos biológicos como
critério verificador/atribuidor da parentalidade.
No
Brasil, o único ato em vigor sobre o tema é a Resolução
do Conselho Federal de Medicina n. 1.358/92. Trata-se de uma norma
pouco conhecida fora da classe médica e que elenca alguns
princípios básicos, inspirados em legislações
estrangeiras. Um exame preliminar dos projetos de leis que tramitam
no Congresso Nacional sobre a regulação das tecnologias
de reprodução assistida demonstra alguns entraves,
os quais suscitam dúvidas quanto às implicações
dessa espécie de intervenção político-jurídica
no campo da reprodução humana.7
De
outra parte, quando atentamos para a volição do sujeito
na formação das relações familiais,
destaca-se a obrigatoriedade de prévia autorização
do marido para a realização da inseminação
artificial heteróloga8
Segundo Novaes e Salem, a legitimidade das relações
de parentesco construídas por meio das tecnologias reprodutivas
pressupõe sua semelhança e proximidade com as relações
biológica ou genética dadas, o que constitui uma afirmação
com fundamento na ordem da natureza como se fosse uma ordem moral
por excelência.9
Outro ponto que merece destaque é o dispositivo que trata
do planejamento familiar, no artigo 1.565, parágrafo 2º
do novo código10,
o qual corresponde, mutatis mutandi, ao preceito do artigo 226,
parágrafo 7º, da Constituição Federal.
Neste caso, há a repetição de normas já
positivadas em outros diplomas, embora ainda careçam de sua
respectiva efetividade nas práticas de saúde pública
no Sistema Único de Saúde.11
Por
fim, destacamos o conteúdo do artigo 1.520 do novo código,
o qual permite, excepcionalmente, o casamento daqueles que ainda
não alcançaram a idade núbil (16 anos), a fim
de evitar imposição ou cumprimento de pena criminal
ou em caso de gravidez. Com efeito, incorreu-se na falácia
do casamento como restaurador da honra em âmbito público.
Não se justifica que o casamento seja a medida adequada para
a hipótese de gravidez (não) planejada. Implícita
está a ideologia que coloca a sexualidade como um campo que
deva ser vigiado, controlado e regulado, sob pena dos chamados 'comportamentos
desviantes' constituírem-se em regra. Essa percepção
é mais aguçada ainda quando tratamos da sexualidade
na infância e adolescência. Conforme Fry, muito embora
a sexualidade carregue o estigma do biológico, do impulso
natural, é, ao contrário, limitada e controlada através
de conceitos e categorias construídas historicamente. A sexualidade
varia de região para região, de classe social para
classe social e, sobretudo, de momento histórico para outro.12
Assim
sendo, a sexualidade na juventude, da mesma forma, não escapa
a esses esquemas e representações compartilhados na
sociedade. Acrescenta-se a esse quadro a peculiar condição
de, nesta fase, a transgressão das normas - incluem-se as
que tratam da regulação do comportamento sexual -
operar como um imperativo para a constituição das
identidades. Nesse contexto, entende-se que a sexualidade, assim
como outras categorias engendradas socialmente, se constitui em
uma experiência pedagógica.13
Pode-se
afirmar, à guisa de conclusão, que o novo Código
Civil cumpriu o seu papel de catalizador e sistematizador de algumas
das transformações político-sociais que sucederam
sua edição anterior, datada de 1917. Andou bem ao
incorporar os preceitos constitucionais da igualdade entre homens
e mulheres e da igualdade de direitos e deveres entre os cônjuges
e companheiros. Todavia, foi omisso em relação a outros
temas urgentes, bem como negligente ao reeditar algumas percepções
calcadas em uma moralidade discriminatória.
A superação
das iniqüidades de gênero é condição
básica para a existência de uma sociedade com justiça
social. Para tanto, esse mapa das desigualdades não poderia
ser restringido ao campo dos problemas das mulheres, ao contrário,
deveria ser objeto de ação e reflexão de toda
a sociedade.
Fabiane Simioni é mestranda em Direito pela PUCRS (Capes),
bolsista da Fundação Carlos Chagas/MacArthur Foundation
(Programa GRAL), advogada e pesquisadora na ONG Themis.
Referências:
1.
Para
refletirmos sobre essas desigualdades adotamos como marco teórico
as análises de gênero, para tal, destacamos o pensamento
de Joan Wallach Scott. Segunda esta autora, quando se fala em gênero,
a referência que se faz é ao discurso da diferença
dos sexos. Este termo não se refere apenas às idéias,
mas também às instituições, às
estruturas, às práticas cotidianas, como também
aos rituais e a tudo que constitui as relações sociais.
Portanto, o gênero é a organização social
da diferença entre os sexos. Ele não reflete a realidade
biológica primeira, mas constrói o sentido dessa realidade.(GROSSI,
M.; HEILBORN, M. L.; RIAL, C. Entrevista com Joan W. Scott. Revista
Estudos Feministas, Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ), v.8, n.1, 1998,
p. 115) [voltar]
2. Alguns autores afirmam que essa disposição
não compreenderia a possibilidade de casamento entre pessoas
do mesmo sexo, pois o referido diploma e a Constituição
Federal fariam expressa menção à união
entre homem e mulher. Aqui, cabe citar o brocardo jurídico:
onde a lei não veda, há permissão. [voltar]
3. De acordo com Rios, através da superação
da visão que subordinava a dinâmica familiar à
consecução de determinados fins operou-se uma ruptura
com o paradigma institucional prevalente. Assim, em virtude da nova
disciplina constitucional dispensada à família, no
contexto brasileiro, pode-se conferir ao ordenamento jurídico
a abertura e mobilidade que a dinâmica social exigia, sem
a fixidez de um modelo único que desconhecia a pluralidade
de estilos de vida (Cf. RIOS, Roger Raupp. Dignidade da pessoa humana,
homossexualidade e família: reflexões sobre as uniões
de pessoas do mesmo sexo. In: MARTINS-COSTA, Judith. A reconstrução
do direito privado. São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais,
2002, p. 483-517). [voltar]
4. Tanto a licença gestante quanto a licença-paternidade
estão previstas na Constituição Federal de
1988:
Artigo 7º. São direitos dos trabalhadores urbanos e
rurais, além de outros que visem à melhoria de sua
condição social:
[...] XVIII - licença à gestante, sem prejuízo
do emprego e do salário, com a duração de cento
e vinte dias; XIX - licença-paternidade, nos termos fixados
em lei.
Ato das Disposições Constitucionais Transitórias:
Artigo 10, §1º. Até que a lei venha a disciplinar
o disposto no artigo 7, XIX, da Constituição, o prazo
da licença-paternidade a que se refere o inciso é
de cinco dias. [voltar]
5. Ver SIMIONI, Fabiane. Guarda compartilhada e responsabilidade
parental. Monografia apresentada na PUCRS/PPGD, 2003. Porto Alegre
(mimeo). [voltar]
6. Artigo 1.597. Presumem-se concebidos na constância
do casamento os filhos:
[...] III - havidos por fecundação artificial homóloga,
mesmo que falecido o marido;
IV - havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões
excedentários, decorrentes de concepção artificial
homóloga;
V - havidos por inseminação artificial heteróloga,
desde que tenha prévia autorização do marido.
[voltar]
7. As tecnologias de reprodução medicamente
assistidas introduzem uma outra variável na relação
entre o ato sexual e a procriação, a qual têm
gerado diferentes e, não raro, opostos argumentos justificadores.
Ver SIMIONI, F. Relatório de pesquisa: Tecnologias
Reprodutivas - a moral, a família e a sexualidade no contexto
jurídico. Porto Alegre: FCC/MacArthur Foundation, 2003, p.
02-3. (mimeo) [voltar]
8. A inseminação artificial heteróloga
se realiza com a doação de gametas feminino e/ou masculino
de uma terceira pessoa. [voltar]
9. NOVAES, Simone; SALEM, Tania. Recontextualizando o embrião.
Revista Estudos Feministas, Rio de Janeiro, v.3, n.1, p.
65-88, 1995. [voltar]
10. Artigo 1.565, §2º. O planejamento familiar
é de livre decisão do casal, competindo ao Estado
propiciar recursos educacionais e financeiros para o exercício
desse direito, vedado qualquer tipo de coerção por
parte de instituições privadas e públicas.
[voltar]
11. Ver Lei do Planejamento Familiar, lei 9.263/96. [voltar]
12. FRY, Peter. Da hierarquia à igualdade: a construção
histórica da homossexualidade no Brasil. In: ______. Para
inglês ver: identidade e política na cultura brasileira.
Rio de Janeiro: Zahar, 1982. [voltar]
13. Ver CARLOS, P. P.; SCHIOCHET, T.; SIMIONI, F. Saúde,
sexualidade e adolescentes no contexto jurídico brasileiro.
Peru: CLADEM. (no prelo) [voltar]
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