Delegacias
da mulher extrapolam funções legais
A primeira
Delegacia de Defesa da Mulher (DDM), criada em 6 de agosto de 1985
na cidade de São Paulo, serviu de exemplo para a abertura
de instituições semelhantes em outros países
e para a criação de delegacias especiais para a defesa
de minorias marginalizadas socialmente (tais como as delegacias
da criança, do adolescente, do idoso e as de crimes de racismo).
Atualmente, embora as DDMs sejam um importante instrumento para
a garantia dos direitos das mulheres, elas correm o risco de se
tornarem meros aparelhos estatais para o controle de relações
familiares não propriamente reguladas em lei e para o tratamento
de infrações penais de menor potencial ofensivo identificadas,
em sua maioria, como crimes de lesão corporal e ameaça.
O movimento
feminista, que nas décadas de 70 e 80 chamou a atenção
dos governos para questões relativas à violência
de gênero e intrafamiliar, teve grande importância política
no momento da criação das Delegacias de Atendimento
à Mulher (DDMs ou DEAMs), que hoje somam mais de 300 unidades
espalhadas pelo país. São distritos policiais especializados,
que têm como objetivo o combate à violência contra
a mulher e o atendimento diferenciado às vítimas que
recorrem aos seus serviços.
A questão
da orientação adotada pelas funcionárias dessas
delegacias no tratamento de vítimas que procuram atendimento
especializado e a punição de seus agressores ocupa
um lugar central nas pesquisas sobre gênero e violência,
fazendo dessa instituição uma das mais estudadas pelos
cientistas sociais envolvidos com a temática. Tais pesquisas
apontam que as DDMs são importantes ferramentas no combate
à violência e sugerem que o atendimento que oferecem
seja guiado por um feminismo que vá além da visão
simplista da mulher como vítima isolada de um crime. Nesse
sentido, estudos recentes procuram chamar a atenção
para o fato de que a mulher é vitimizada por um processo
social mais abrangente, no qual é discriminada e tem seus
direitos violados em diferentes esferas em que atua, seja no trabalho,
em casa, na escola ou na rua.
Para
a antropóloga Miriam Grossi, da Universidade Federal de Santa
Catarina, hoje, as delegacias da mulher são o espaço
feminista que o SOS Mulher era na década de 80. Mas, de acordo
com a pesquisadora, esse espaço é atualmente caracterizado
por um determinado discurso de suas funcionárias contra os
homens, no sentido de serem malvados e cruéis. "Ao colocarem
o homem na cadeia da delegacia, as mulheres que ali trabalham exercem
um poder coercitivo, uma espécie de revanche feminista. Nesse
sentido, elas são feministas, embora não se considerem
como tais. Elas têm um modelo de feminismo que vê o
homem como perigoso, inimigo etc.", afirma Grossi.
Na
virada para o século XXI, foi realizada uma pesquisa nacional
sobre condições de funcionamento das delegacias especializadas
no atendimento às mulheres. Coordenada pela Secretaria de
Estado de Direitos Humanos/Secretaria Executiva do Conselho Nacional
dos Direitos da Mulher (CNDM), em parceria com a Secretaria Nacional
de Segurança Pública e com apoio do Ministério
do Orçamento e Gestão, uma de suas conclusões
é que a melhoria no atendimento oferecido não foi
proporcional ao aumento do número de delegacias na década
de 90 (veja quadro).
Além
dessa pesquisa, outros estudos têm chamado a atenção
para a dinâmica de funcionamento das DDMs, que varia conforme
as particularidades dos municípios em que foram criadas.
Apesar disso, existem pontos em comum nesse sistema, destacados
por alguns pesquisadores. Para a antropóloga Guita Grin Debert,
do Pagu (Núcleo de Estudos de Gênero da Unicamp), surpreende
o fato de que, nas DDMs, a maioria das queixas seja tipificada como
lesão corporal leve ou ameaça, independentemente do
tipo de agressão sofrida. Outra característica comum
a todas as delegacias brasileiras é o número reduzido
de boletins de ocorrência registrados em relação
ao número de pessoas que as procuram. Poucas queixas chegam
ao judiciário e grande parte das vítimas não
leva o caso adiante, pois não deseja a punição
de seus agressores.
Para
Debert, esses fatores revelam uma característica das DDMs
bastante enfatizada por suas funcionárias. Segundo a pesquisadora,
as agentes policiais alegam que se vêem transformadas em uma
espécie de assistentes sociais ou psicólogas, atuando
para amenizar conflitos de famílias, e dificilmente conseguem
reunir provas necessárias para levar o caso à Justiça,
mesmo quando obtêm depoimentos plausíveis de crimes
graves.
Por
outro lado, atualmente a denúncia tem maiores chances de
chegar rapidamente ao judiciário. Debert explica que, embora
haja uma idéia difundida de que as denúncias demoram
a serem julgadas, esse tipo de crítica perdeu o sentido depois
da criação dos juizados
especiais criminais (JECRIMs), em 1995. Segundo a antropóloga,
tais juizados têm como objetivos centrais a ampliação
do acesso da população à Justiça e a
promoção rápida e efetiva do direito. Debert
salienta que as contravenções e crimes considerados
de menor potencial ofensivo, cuja pena máxima não
ultrapassa um ano de reclusão, fizeram com que os juizados
especiais passassem por um processo que ela chama de "feminização".
Isto porque "a maioria das audiências têm como
vítima mulheres, e prova também que elas são
vitimizadas pelo fato de serem mulheres", explica.
Lúcia
Cavalcanti de Albuquerque Williams, coordenadora do Laboratório
de Análise e Prevenção da Violência da
Universidade Federal de São Carlos (Laprev/UFSCar), aponta
dados que corroboram com a denúncia como fator importante
no combate às agressões. Em pesquisa realizada pela
equipe do Laprev, foram acompanhadas pelo período de um ano
mulheres vítimas de agressão que fizeram a denúncia
e outras que não o fizeram. Os resultados (ainda não
publicados) mostram que aquelas que recorreram às DDMs relataram,
no período, menor incidência de agressões pelo
parceiro, quando comparadas às que não denunciaram.
"Sobre a questão de porque denunciar funciona, ainda
são necessárias pesquisas futuras e, portanto, só
nos resta especular. Em nosso estudo, nenhum dos casos denunciados
resultou em uma penalidade séria - encarceramento, por exemplo.
No entanto, a denúncia desencadeou um processo que parece
ter sido eficaz em coibir futuras agressões. Por quê?
Houve uma reprimenda verbal do juiz e advertência. E, principalmente,
tornou-se público um problema até então privado".
Contudo,
as DDMs são apenas um dos mecanismos de defesa da mulher
contra a violência. Algumas pesquisas apontam que serviços
desse tipo deveriam ser mais abrangentes e estendidos a outras esferas
institucionais. É esta a opinião da pesquisadora Mireya
Suárez, que coordena, na UnB (Universidade de Brasília),
o Núcleo de Estudos e Pesquisa sobre a Mulher. Para ela,
deve haver um setor com atendimento especializado à mulher
vítima de violência em cada unidade policial. "Hoje,
um caso de roubo com estupro da vítima é tratado separadamente.
O estupro vai para a DDM e o roubo para um distrito policial comum.
É preciso um trabalho em rede", comenta.
Suárez
alerta para o fato de os crimes contra mulheres estarem ligados,
em sua maioria, a crimes comuns, como roubo e tráfico de
drogas, entre outros. A solução que propõe,
além da implantação de um setor dedicado à
mulher nas delegacias comuns, é um trabalho policial dedicado
à prevenção. "Falta um sistema de informação
eficiente, em que o histórico do agressor esteja disponível
para o caso de um novo atendimento", afirma. A pesquisadora
relata que já detectou, em suas pesquisas, que a cada uma
das cinco, seis ou dez vezes que uma mulher procura atendimento
na delegacia especializada, é aberto novo processo: as informações
não são cruzadas.
Completando
as sugestões de trabalho em rede, Suárez explica que
é necessário que professores que percebem alterações
de comportamento em alunos entrem em contato com a polícia
e que uma assistente social procure a família. "Além
disso, o setor de saúde pública não pode se
omitir e apenas tratar as lesões corporais ou registrar a
facada, por exemplo. Os dados devem ser passados para a polícia",
afirma.
Para
Suárez, as DDMs perderam seu sentido inicial e o atendimento
foi burocratizado. Ela comenta que os serviços, desde o balcão
até o psicológico, estão precários.
"Não basta aplicar a lei. Uma mulher violentada é
uma mulher que precisa ser extraordinariamente bem tratada",
defende. Nesse sentido, todas as pesquisadoras são unânimes
ao afirmar que as agentes policiais precisam de uma formação
diferenciada para o tratamento das questões de gênero.
Além disso, defendem que existam políticas públicas
universalizantes para a conscientização sobre os direitos
da mulher e sua importância na sociedade.
Distribuição irregular e infra-estrutura precária
Estudo
coordenado pela Secretaria de Estado de Direitos Humanos/Secretaria
Executiva do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher (CNDM) mostrou
que o Brasil contava, em 1993, com 125 DEAMs. Em 1999, esse número
chegou a 307. Apesar desses dados indicarem uma evolução
na oferta de equipamentos de apoio à mulher vítima
de violência, ainda há insuficiência, se considerarmos
que menos de 10% dos mais de cinco mil municípios brasileiros
possuem delegacias especializadas. Além disso, a oferta está
distribuída de forma irregular pelos estados do país:
61% das delegacias encontram-se na região Sudeste; 16% no
Sul; 11% na região Norte; 8% no Nordeste e 4% no Centro-Oeste.
Das
307 DEAMs existentes em 1999, 267 responderam a um questionário
formulado pelo CNDM com o objetivo de construir um diagnóstico
da situação. Ficou constatado que, no ano estudado,
o número mínimo de notificações policiais
recebidas nessas delegacias foi de 411.123 casos, o que mostra um
aumento significativo em relação a 1993, ano em que
a CPI da violência contra a mulher registrou uma média
de 123.131 denúncias. O fenômeno foi atribuído
ao aumento do número de delegacias especializadas e do grau
de consciência das mulheres em relação a seus
direitos.
Analisados
os dados de 1999, os crimes mais denunciados foram: lesão
corporal (113.727 queixas), ameaça (107.999) e vias de fato
(32.183). Entretanto, o número de notificações
não reflete a situação de violência contra
as mulheres no Brasil, pois não estão computados crimes
denunciados em delegacias comuns e há, ainda, os casos não
denunciados. A pesquisa concluiu também que o aumento do
número de delegacias não foi acompanhado por melhoria
das condições de trabalho.
As
DEAMs executam funções que extrapolam o cotidiano
policial (aconselhamento, mediação e conciliação,
apoio comunitário e palestras, entre outros), mas a estrutura
de recursos humanos é precária. O estudo identificou
que 60% das delegacias não possuem assistentes sociais e/ou
psicólogos. Em termos de estrutura física e tecnológica,
32% das DEAMs não dispõem de armas de fogo, 20% não
têm linha telefônica convencional direta, 19% não
possuem viaturas e 79% não têm coletes à prova
de balas.
Análises
realizadas a partir da pesquisa realizada pela Secretaria demonstraram
que na base da precariedade pode estar o baixo status das DEAMs
na corporação policial, que valoriza trabalhos de
registro, investigação e resolução de
casos e despreza o papel de apoio. Tais conclusões sugerem
que a atuação do Poder Judiciário continua
reproduzindo, acriticamente, estereótipos e preconceitos
sociais, inclusive de gênero, impedindo a efetivação
da igualdade. A tese da legítima defesa da honra ainda é,
por vezes, defendida para absolver acusados de agressões
e assassinatos de mulheres.
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