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Fisiologia feminina ainda é atravessada por enigmas

À conquista de maior espaço da mulher na sociedade, correspondeu, nos anos mais recentes, o fortalecimento do corpo feminino como objeto da pesquisa científica. Os caminhos da saúde e das doenças femininas, as diferenças da fisiologia decorrentes do gênero, mesmo em sistemas em que sequer se supunha que elas pudessem existir, adquiriram uma importância imprevisível num passado nem tão distante assim.

Assim, para além das mudanças de comportamento, de seu papel na sociedade, de sua inserção na cena política e econômica, pode-se dizer que, a rigor, a mulher tem hoje um novo corpo. Ela passou a ter controle sobre a sua fertilidade, tem maior expectativa de vida, passa um terço de sua vida na pós-menopausa e, neste período, com freqüência se submete aos tratamentos de reposição hormonal.

Mas nessa mudança, a mulher teve também que aprender a conviver com novas doenças, em certa medida produzidas por suas novas condições de vida. Entre elas destaca-se a endometriose, um problema de saúde intrigante, marcado pela presença do tecido que normalmente reveste a parede interna do útero - o endométrio - fora da cavidade uterina. Cerca de 5% a 10% das mulheres que se encontram no período fértil de sua vida, na fase entre 11 e 45 anos, apresentam essa doença.

"A endometriose relaciona-se ao estresse, à ansiedade e ao estilo de vida moderno, em especial nas grandes cidades. Ocorre principalmente em mulheres que nunca tiveram filhos", diz o professor Carlos Petta, da Faculdade de Medicina da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Ginecologista e obstetra, ele é responsável pelo ambulatório de endometriose do Centro de Pesquisa das Doenças Materno-Infantis de Campinas (Cemicamp), ligado ao Centro de Atenção Integrada à Saúde da Mulher (Caism).

Conhece-se muito pouco sobre a endometriose, segundo Petta, e isso foi justamente uma das motivações para sua pesquisa sobre o perfil e o estilo de vida das mulheres que manifestam a doença. Os resultados do trabalho foram publicados em artigo científico na revista norte-americana Human Reproduction, de abril de 2003 (Volume 18, N o 4, 756-759), com o título "Time elapsed from onset of symptoms to diagnosis of endometriosis in a cohort study of Brazilian women".

Uma de suas conclusões é que a qualidade de vida das mulheres com endometriose é pior do que a de mulheres na menopausa portadoras de problemas cardíacos e do que a de mulheres com artrite reumatóide. Petta e outros três pesquisadores brasileiros que assinam o artigo avaliaram, entre outros, aspectos emocionais e físicos das pacientes de endometriose, e mostraram que 90% daquelas que constituíram a amostra da pesquisa tinham depressão. A incidência do problema é ainda maior entre as pacientes que tinha dor como um dos sintomas mais significativos. Aliás, a dor, caracterizada como uma cólica menstrual que vai se tornando cada vez mais freqüente até se transformar em contínua, é o principal sintoma da doença e afeta, segundo a pesquisa, de 80% a 85% das pacientes.

Metade das mulheres com endometriose pode ter dificuldade para engravidar e outras apresentam alterações intestinais e urinárias cíclicas. "Não se conhece ainda a causa da endometriose, apenas fatores de risco, entre os quais, além do estresse, encontram-se fatores genéticos e a dioxina, um poluente orgânico", diz Petta. Sabe-se que as mulheres estão protegidas da doença na gravidez e no período pós-menopausa, quando o estrogênio está baixo ou, até mesmo ausente no segundo caso.

Responsabilidade do estrogênio
A endometriose tornou-se mais conhecida há 15 anos, com o surgimento da videolaparoscopia, que tornou mais fácil o seu diagnóstico. O professor Maurício Abrão, do Departamento de Ginecologia no Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (USP), é um dos pesquisadores que hoje buscam maneiras novas e ainda menos invasivas de diagnosticar o problema, entre as quais a ultrassonografia especializada, a ressonância magnética e a endoscopia retal.

A melhor prevenção da endometriose, segundo os especialistas, é um estilo de vida mais tranqüilo, com prática de exercícios aeróbicos, que melhoram a imunidade e aumentam o limiar para a dor. Alimentação rica em fibras, com vitamina C e E, sem condimentos, também ajuda. As formas de tratamento disponíveis hoje são a remoção cirúrgica do tecido endometrial encontrado fora da cavidade uterina, análogos do hormônio liberador de gonadotrofinas (GnRH), progestogênios orais, injetáveis ou na forma de DIU e contraceptivos hormonais combinados.

Uma pesquisa sobre o tratamento da endometriose com DIU de mirena (um derivado do hormônio progesterona, desenvolvido na Finlândia) vem sendo feito na Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto pelo professor Rui Alberto Ferriani, em colaboração com Carlos Petta e Maurício Abrão. Ele envolve 142 pacientes, 60 da região de Ribeirão Preto e as demais de Campinas e de São Paulo.

Esse tratamento, segundo Ferriani, melhora a dor das pacientes e reduz os níveis dos marcadores de atividade da doença para valores normais. Além disso, tem menos efeitos colaterais e mostra eficácia semelhante àquela do tratamento clássico. O DIU de mirena tem ainda a vantagem de ser mais barato, pois depois de implantado funciona por até três anos.

O corpo no climatério
Se a endometriose desafia os especialistas, outro campo aberto de pesquisa relativo ao corpo feminino é o da reposição hormonal no climatério. Esta palavra indica o período da vida da mulher em que ela transita da fase reprodutiva para a não reprodutiva. Estende-se em média dos 40 aos 65 anos, e em algum momento desse período vai ocorrer a menopausa - a última menstruação. A marca fundamental desse tempo é a queda da produção de hormônios pelos ovários, que pode determinar gradativa perda de massa óssea, hipertensão, problemas de pele etc.

Com o aumento da expectativa de vida das mulheres nas últimas décadas, o uso da terapia de reposição hormonal foi bastante ampliado. Mas no final dos anos 80 e durante os anos 90, vários estudos mostraram uma maior incidência de câncer de mama e de trombose em pacientes que utilizavam a reposição baseada na associação dos hormônios estrogênio e progesterona.

Em maio de 2002, o Women's Health Initiative (WHI) decidiu descontinuar nos Estados Unidos uma pesquisa de uso combinado de estrogênio e progesterona, em função dos resultados preocupantes que ela apresentou. O estudo baseado numa amostra de mais de 16 mil mulheres, com idades entre 50 e 79 anos, constatou, após 5,2 anos de acompanhamento em média, aumento no risco de câncer de mama, de doença cardíaca e derrame. As boas notícias, ou seja, a redução do risco de câncer de colo e reto, de útero, de fratura do quadril e de mortes por outras causas, não foram suficientes para recomendar o prosseguimento da pesquisa. As conclusões obrigaram os pesquisadores da área a rever a conduta em relação à terapia de reposição hormonal e a intensificar os estudos com medicamentos alternativos aos hormônios.

No Brasil, um desses medicamentos, o raloxifeno - já aprovado pela agência reguladora de alimentos e medicamentos dos Estados Unidos, a FDA, para o tratamento da osteoporose, - é objeto de pesquisa do professor Marcos Felipe Silva de Sá, da Faculdade de Medicina da USP de Ribeirão Preto. Ele investigou seus efeitos sobre a coagulação do sangue e mostrou que o medicamento apresenta efeitos tanto benéficos quanto maléficos nesse processo e tornou mais claro porque o raloxifeno aumenta o risco de trombose, que outros estudos já haviam constatado.

Silva de Sá constatou também que o raloxifeno não aumenta a incidência do câncer de mama, aumenta o "bom" colesterol (HDL) e diminui o colesterol total às custas do "mau" colesterol (LDL). ncontrou evidências de que ele diminui os níveis da homocisteína, uma substância que lesa as paredes dos vasos e, conseqüentemente, aumenta a incidência de doença coronariana. Mais: o raloxifeno aumenta o fluxo sangüíneo na artéria carótida interna, o que faz dele um possível candidato a melhorar o fluxo sangüíneo cerebral em idosos. No entanto, ao contrário do estrogênio, o raloxifeno não alivia as famosas ondas de calor do climatério.

Outro análogo do estrogênio, a tibolona, vem sendo pesquisado pelo professor Ferriani, com bons resultados, em pacientes em que o homônio é totalmente contra-indicado, como as portadoras de lúpus eritematoso sistêmico e de diabetes.

O tabu do auto-toque
Resultado de pesquisa dos mais surpreendentes foi apresentado em julho de 2003 no Simpósio Internacional de Pesquisa em Contracepção, pela socióloga Ellen Hardy, entre as conclusões de seu estudo da opinião de mulheres brasileiras sobre contraceptivos locais: a maioria das mulheres brasileiras não gosta de tocar em seus genitais.

Esse estudo, com 700 mulheres, buscava informações sobre quais seriam as características desejáveis de um produto de uso vaginal. A maioria das entrevistadas (96%) disse preferir um método contraceptivo que pudesse ser utilizado com um aplicador. Doutora em Saúde Pública pela Universidade de São Paulo (USP), e mestre pelo Goddard College, Vermont (EUA), Hardy enfatiza que a utilização de microbicidas vaginais, embora seja efetiva em diversas culturas, deve ser acompanhada de esforço no sentido da educação das mulheres sobre os seus corpos. "Mantidas na ignorância, com vergonha de nossos genitais e do aparente perigo representado por nossa sexualidade, nós acabamos perdendo o conhecimento de nós mesmas", afirma Hardy.

A relutância em tocar e observar os genitais, diz a pesquisadora, dificulta, inclusive, que as mulheres possam aprender como fazer o seu próprio exame ginecológico preventivo. Os esforços atuais de pesquisa concentram-se no desenvolvimento de métodos de barreira femininos, que não necessitem da cooperação masculina. Embora aproximadamente 60 compostos e formulações já estejam sendo estudados, ainda não existem estudos internacionais mais amplos sobre a aceitabilidade deste tipo de medicamento.

 
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Atualizado em 10/12/2003
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