Dinâmica
de populacões: de angstroms a quilômetros, de íons
a "sapiens"
Wilson
Castro Ferreira Jr.
"'Art
is the lie that helps us see the truth' , said Picasso, and
the same can be said of modelling. On seeing a Picasso sculpture
of a goat, we are amazed that his caricature seems more goatlike
than the real animal, and we may gain a much stronger feeling
for 'goatness'. Similarly, a good mathematical model -though
distorted and hence 'wrong', like any simplified representation
of reality- will reveal some essential components of a complex
phenomenon". Lee A. Segel -"Modelling dynamic phenomena
in molecular and cellular biology", Cambridge Univ.Press
1984. |
O termo
"Dinâmica de Populações" usualmente
evoca no leitor não especialista a idéia de Demografia
e censo estatístico ou mesmo outras interpretações
com significados ainda mais distantes daquele empregado na Biomatemática
contemporânea. Na verdade, a Dinâmica de Populações
é uma poderosa síntese matemática que permite
identificar, transferir e interfertilizar diversas teorias da Biologia
Teórica, desde o nível molecular em Processos Físico-Químicos,
passando pelo nível celular em Fisiologia, e chegando até
a Epidemiologia e a Sociobiologia de organismos superiores, o que
inclui naturalmente as sociedades humanas. Sem essa teoria, áreas
de conhecimento tão distintas e variadas na sua origem biológica
tenderiam a permanecer amarradas e obscurecidas pelo jargão
paroquial específico, inatingíveis às técnicas
matemáticas e aos desenvolvimentos conceituais de outras
áreas resultando assim em um enorme desperdício e
confusão intelectual, não de todo raro em Biologia.
Na
via de influência aberta pelas aplicações da
Matemática à Biologia observa-se também nos
últimos tempos o surgimento de um notável refluxo,
na contramão do sentido original. Isto é, conceitos
e argumentos já amplamente estabelecidos e de profundo significado
científico em Biologia, especialmente provenientes de teorias
evolucionistas e neurobiológicas, têm sugerido novas
abordagens e métodos matemáticos que prenunciam um
incipiente ramo de pesquisas que poderíamos denominar "Matemática
Biológica".
Historicamente,
essa forma de simbiose tem o seu exemplo paradigmático na
interação entre a Matemática e a Física,
e de tal forma bem sucedida que se supunha até pouco tempo
uma característica única e impossível de ser
reeditada. Exatamente pelo mesmo motivo é razoável
supor que o futuro da Biomatemática como ramo científico
distinto e vigoroso da matemática aplicada dependerá
claramente do desenvolvimento de um trânsito duplo e relevante
nos dois sentidos dessa interface. Neste caso, a Dinâmica
de Populações deverá ser a moeda universal
e apropriada para tal intercâmbio.
O estudo
da Dinâmica de Populações ocorreu episodicamente
em vários trabalhos esparsos ao longo de dois séculos
desde o anedótico problema dos coelhos de Fibonacci (século
XIII), passando pelo fundamental artigo de Leonhard Euler (1707
-1783) em 1760, ("A general investigation into the mortality
and multiplication of the human species", Th. Pop. Biol. 1
1970, 307-314), até os trabalhos do matemático Vito
Volterra e do químico Alfred Lotka no princípio do
século XX. Entretanto, uma certa coerência de princípios
e técnicas que caracterizam uma área de conhecimento
bem definida somente ocorreu com nitidez na segunda metade avançada
do século XX, portanto bem recentemente.
O objetivo
final da Dinâmica de Populações é a descrição
do número de indivíduos de uma população
ao longo do tempo, este, uma variável que pode ser representada
discreta ou continuamente. O que diferencia a dinâmica populacional
da Demografia no sentido estatístico são os meios
pelos quais se pretende estabelecer essa descrição.
Em Demografia utiliza-se métodos estatísticos alimentados
por dados de observações passadas com o objetivo de
fornecer uma distribuição probabilística de
cenários futuros. Em Dinâmica Populacional as informações
biológicas são transformadas em hipóteses teóricas
básicas que alimentam conceitualmente um modelo matemático
cuja finalidade é descrever a evolução temporal
do sistema a partir de cada dado inicial.
Os
modelos matemáticos da Dinâmica de Populações
são representados por uma estrutura matemática às
vezes denominada sistema dinâmico markoviano, onde o estado
do sistema, (isto é, aquilo que se descreve a respeito da
população), é determinado inequivocamente ao
longo do tempo, (em geral como solução de uma equação
recursiva finita ou "infinitesimal"), uma vez conhecido
o seu estado inicial. O conceito de sistema dinâmico markoviano
expressa matematicamente princípios de causalidade e determinismo
em um sentido amplo, (que inclui processos aleatórios), e
de uma forma ou de outra fundamenta toda a matemática aplicada
que trata de modelos matemáticos de processos temporais desde
a formulação da mecânica newtoniana.
Um
modelo matemático dinâmico não tem por objetivo
apenas descrever a história "passada" do sistema
mas sim prever os "estados futuros e ainda não observados"
do sistema. Assim, o modelo matemático deve estabelecer uma
dinâmica que determine as populações (quantidade
de indivíduos), futuras uma vez conhecida a população
atual. Suponhamos então que o estado desta população
se modificará apenas por conta de nascimentos e mortes, sem
processos de migração. O modelo de Malthus aborda
esta questão propondo as dinâmicas mais simples para
este caso:
O modelo
malthusiano baseia-se na hipótese biológica de que
as taxas de nascimento e morte são proporcionais ao número
de indivíduos. Portanto, a informação biológica
do estado presente, (que no caso consiste apenas do número
total de indivíduos), deve bastar para: 1) determinar recursivamente
o estado no instante seguinte no modelo discreto e, 2) estabelecer
a taxa de variação em termos do estado atual, no modelo
contínuo. O modelo de Malthus pode fornecer uma excelente
descrição, ("caricatura"), da evolução
temporal de uma população enquanto ela se mantém
homogênea no que diz respeito a esses aspectos vitais.
O modelo
de Malthus não contempla a variação da natalidade
e da mortalidade com a distribuição etária;
ele é cego para essas, (e outras tantas!), informações.
Mas suponhamos, por exemplo, uma população constituída
majoritariamente de idosos que produzirá menos filhos e mais
mortos do que uma população com o mesmo número
de indivíduos se estes agora estiverem concentrados na idade
jovem. (Supõe-se que essa população seja igualmente
dividida entre os dois sexos e continue sendo!). Portanto, no caso
de populações com natalidade e mortalidade significativamente
variáveis com a faixa etária, ainda que tivéssemos
por objetivo único conhecer apenas o número total
de indivíduos ao longo do tempo, independente de qualquer
qualificação, reconhecemos que um modelo matemático
dinâmico deverá necessariamente descrever o estado
da população com maiores detalhes em cada instante;
esta informação será indispensável para
determinar o estado "seguinte". Euler introduziu vários
conceitos que permitiram estudar populações humanas
que são notoriamente heterogêneas quanto às
taxas de natalidade e mortalidade etárias.
No
exemplo citado acima, podemos perceber de forma clara o inevitável
conflito dialético entre O DESEJÁVEL E O NECESSÁRIO
que é indissociável da atividade do biomatemático.
Diante desse impasse, a ingenuidade "realista" , muito
comum, sempre aponta para uma solução imediatista
"óbvia": a expansão liberal do estado do
sistema incluindo todos os mínimos detalhes sobre a população.
Entretanto, mais do que depressa, essa estratégia impensada
se mostra desastrosa em decorrência das dimensões intratáveis
que a dinâmica do modelo matemático assume. O "tamanho"
de um modelo matemático pode ser medido pelo número
de parâmetros (adimensionais) necessário para descrevê-lo
e uma boa estimativa de sua complexidade é fornecida pela
exponencial desse número.
O Princípio
da Parcimônia, atribuído a William of Ockham (1288-1348),
vem em auxílio e para consolo do biomatemático que
reconhece a sua humildade diante da impotência descritiva
de seus modelos que, por maior impacto científico que tenham
alcançado, (e muitos já o tiveram), não passam
de meras caricaturas ou, enfatizando Lee Segel, são "cabeludas
mentiras" que nos auxiliam a vislumbrar minúsculos brilhos
da "verdade". Este princípio, que é mais
um alerta do que uma "lei" lógica, sugere como
precaução filosófica fundamental a escolha
da solução mais simples dentre todas as úteis
e possíveis. Esse princípio em geral indica uma linha
de ação sensata para o matemático aplicado
pelo que minimiza de saída a possibilidade de um conflito
insolúvel e paralisante, entre a ilusão de um "realismo
descritivo" e a capacidade real de análise matemática
do modelo, ou seja, a sua própria utilidade. Modelos matemáticos,
ao contrário e à semelhança de outros, não
são feitos para desfile e oclusão mas, respectivamente,
para uso e transparência.
Neste
ponto, é oportuno lembrar aos partidários da ciência
discursiva, em geral provenientes da Biologia, que essa restrição
não é específica dos modelos matemáticos;
qualquer linguagem utilizada na descrição formal de
fenômenos naturais está submetida à ela. Na
verdade, a única descrição perfeita de um fenômeno
natural é o próprio fenômeno, ocorrência
por ocorrência, uma vez que jamais se reproduzem totalmente!!
A função de um modelo matemático, ou qualquer
que seja ele, é exatamente a "caricaturização"
, ou seja, o realce de alguns aspectos de um fenômeno em detrimento
do resto, e portanto, depende do ponto de vista que se deseja observar,
e consequentemente do que é necessário observar.
Além
disso, a simplicidade dos modelos em biomatemática, (e na
matemática aplicada em geral), é um critério
não apenas de elegância intelectual mas de eficiência
científica. Ao contrário do que se proclama com certa
ingenuidade, (no mau sentido), a sofisticação matemática
de um modelo não é critério de relevância
em biomatemática, em geral exatamente o oposto. O modelo
matemático que descreve um fenômeno natural com o simples
uso de aritmética elementar tem um valor científico
incomparavelmente maior do que outro trabalho que faz o mesmo, ou
apenas um pouco mais, por meio de teorias matemáticas de
grande sofisticação. E, de qualquer forma, para a
maioria dos problemas biológicos o mais simples dos modelos
apropriados para a sua descrição pode ser suficientemente
complexo para que não se deseje torná-lo ainda mais
sofisticado.
A solução
adotada por Euler para abordar essa questão no estudo de
populações heterogêneas (quanto aos dados vitais)
traz uma lição de parcimônia aplicada e exemplar
nestas situações: amplia-se a descrição
do "estado" do sistema para que ele contenha todas as
informações necessárias, além das desejadas,
mas não mais do que isto. Ou, como disse Einstein: "Um
problema deve ser simplificado o máximo possível,
mas não mais do que isto".
Para
descrevermos as variações, contínuas ou abruptas
das caracterísiticas dos indivíduos tais como representadas
em um espaço de aspecto, teremos que abordar informações
biológicas que descrevam o seu comportamento com respeito
aos aspectos descritos no espaço de aspecto, o que nos leva
a ETOLOGIA, ou, seja a subárea da Biologia que estuda o comportamento
dos indivíduos. A Etologia é uma ciência rica
de informações cujo desenvolvimento nas últimas
décadas tem sido notável, graças aos trabalhos
de Konrad Lorenz e Nikko Tinbergen para animais superiores, Rudolf
Menzel, Rudiger Wehner, Jean-Louis Deneubourg, Deborah Gordon para
insetos, Howard Berg, Wolfgang Alt, Lee Segel para microorganismos
e células, e muitos outros.
Concluímos
imediatamente que o conflito entre o desejável e o necessário
tem as suas raízes na própria análise do comportamento
individual: quais aspectos são necessários conhecer
sobre o indivíduo em um instante, para que se possa prever
esses mesmos aspectos no "instante seguinte"?
O extraordinário
desafio com que se defronta o estudo da dinâmica de populações
é semelhante a inúmeros outros que ocorrem em vários
ramos da matemática aplicada: como transferir, parcimoniosamente
e adequadamente, informações de extrema complexidade
existentes no nível "microscópico" do comportamento
individual para o nível de descrição coletiva
e macroscópica? A interação de processos em
escalas distintas dentro de um mesmo fenômeno é notoriamente
um dos grandes problemas científicos contemporâneos,
desde a turbulência até a ecologia.
Refletindo
sobre a complexidade com que se confronta o biomatemático
em decorrência da espantosa multiplicidade das escalas envolvidas,
só podemos concordar com Albert Einstein quando afirmou que
o notável, afinal, não é que tenhamos entendido
melhor um fenômeno qualquer, mas que possamos entender qualquer
coisa que seja.
O princípio
fundamental que nos permite alguma compreensão é a
possibilidade de separação de escalas ou, pelo menos,
o acoplamento fraco entre fenômenos de escalas distintas,
pois caso contrário não teríamos sequer como
viver, já que os nossos sentidos apenas detectam informações
na nossa escala "macroscópica", ou "microscópica",
de espaço e tempo. A pressuposição de que é
possível separar escalas é a própria base do
método analítico com o qual Galileo desvinculou a
ciência moderna da obsessão pela pedra filosofal.
Na
verdade, a própria existência de vida "inteligente"
é um indício claro e confortador da possibilidade
de construir modelos matemáticos relevantes, isto é,
caricaturas descritivas, mesmo de fenômenos extremamente complexos
como a dinâmica de populações de organismos.
A análise
qualitativa de um modelo, ou seja, o mapeamento dos diversos comportamentos
previstos por ele com respeito aos seus parâmetros, (que inclui
as "variáveis"), é tarefa característica
para os métodos assintóticos; em Dinâmica de
Populações esses métodos permitem uma tradução
matemática entre o comportamento individual, microscópico
e a dinâmica coletiva, macroscópica.
A descrição
matemática desses conceitos biológicos deve-se ao
modelo matemático para a dinâmica do meio contínuo
formulado inicialmente por Euler no final do século XVIII.
Esse trabalho de Euler constitui-se um dos grandes trunfos da matemática
aplicada que tem influenciado extraordinariamente o desenvolvimento
da Física e da Química até os dias de hoje
e, por uma coincidência não de todo surpreendente,
é um dos fundamentos da Dinâmica de Populações
tal como se formula contemporaneamente.
Wilson
Castro Ferreira Jr. é professor do Instituto de Matemática
da UNICAMP
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