Átomo
de Bohr, ratos de laboratório e Gisele Bündchen: O que
é que eles têm em comum?
Roberto
J. M. Covolan e Li Li Min
Apesar
do gosto discutível de misturar elementos tão díspares
no título acima, a pergunta tem sim uma resposta: é
que todos e cada um à sua maneira são simplesmente...
modelos. É isso mesmo. Veja bem: átomo de Bohr
é um modelo teórico, um rato de laboratório
pode eventualmente ser um modelo experimental e Gisele Bündchen
é a nossa mais famosa e ilustre modelo no mundo da
alta moda. Simples, não é?
Passada
a perplexidade inicial, alguém tendo em mente dois conceitos
lançados na frase anterior, modelos teóricos e
modelos experimentais, sentindo-se provocado e dando curso livre
à imaginação poderia se perguntar "sendo
modelo, em qual dessas categorias se encaixaria a Gisele?".
Tendo refletido um pouco, o leitor deve estar pensando "OK,
essa história de que são todos modelos passa,
mas é possível perceber que se trata de coisas distintas:
nos dois primeiros casos estamos falando de modelos científicos;
no caso da Gisele trata-se de outro tipo de modelo que tem a ver
com moda, desfiles, um outro mundo. Querer ir além disso
é querer confundir alhos com bugalhos".
Muito
bem, estaria completamente correto o leitor que assim raciocinasse.
Mas, forçando um pouco a mão, vamos repropor a questão
anterior na forma do seguinte exercício: mesmo considerando
que ciência e moda têm pouco ou mesmo nada em comum,
poderia o leitor identificar nas atividades e nas funções
desempenhadas por uma modelo profissional características
que tivessem a ver com os modelos teóricos e experimentais
que existem no campo científico? Antes de tentar esboçar
qualquer resposta para esta questão, precisaríamos
ser capazes de distinguir entre um conceito e outro de modelo. Para
isso, vamos procurar tornar um pouco mais claras as nossas idéias
a respeito desse assunto. Ao final, juntamente com o leitor, retomaremos
o "caso Gisele".
Modelos Teóricos
Falou-se
acima em modelo teórico. Mas, o que é mesmo uma teoria
científica? E o que é que modelos têm a ver
com teorias? Afinal, o que é um modelo teórico? Para
responder a essas questões, vamos retomar um período
particularmente interessante da história da Física,
preliminar à formulação da moderna teoria atômica
originada da Mecânica Quântica.
No
início do século XX, a única partícula
subatômica conhecida era o elétron. Físicos
e químicos tentavam obter informações a respeito
da estrutura interna da matéria a partir de uma variedade
de estudos que iam do balanceamento de reações químicas
a análise da transmissão de eletricidade através
de gases confinados. Tornava-se cada vez mais evidente que átomos
continham elétrons. J. J. Thomson formulou, nessa época,
um modelo de átomo no qual os elétrons eram corpúsculos
eletricamente negativos homogeneamente distribuídos em uma
massa de carga positiva, o que resultava na matéria eletricamente
neutra conforme era (e é) usualmente observada. Essa concepção
de átomo ganhou entre nós o apelido de "modelo
de pudim de passas", embora a expressão original inglesa
fosse plum pudding model (modelo do pudim de ameixas). À
parte a questão da receita do pudim, existe nisso um aspecto
mais fundamental que é a tentativa de traduzir uma realidade
física inacessível à observação
direta para uma imagem (um modelo) que facilite a compreensão
do que está sendo medido experimentalmente.
Segundo
esse modelo, os elétrons deveriam ser distribuídos
uniformemente nos átomos em decorrência da repulsão
eletrostática entre eles (cargas de sinais iguais se repelem),
mas poderiam oscilar em torno de suas posições de
equilíbrio emitindo radiação eletromagnética
(segundo o Eletromagnetismo, elétrons oscilando emitem radiação).
Embora esse aspecto do modelo de Thomson, emissão de radiação,
fosse qualitativamente consistente com as observações,
não apresentava concordância quantitativa com o que
era medido experimentalmente, indicando que esse modelo deveria
ser abandonado.
Em
1911, um ex-aluno de Thomson, Ernest Rutherford, fez com que fosse
descartado de vez o modelo do antigo mestre através de uma
série de brilhantes experimentos nos quais partículas
alfa (dois prótons e dois nêutrons ligados) emitidas
por substâncias radioativas eram espalhadas ao atravessar
delgadas folhas de ouro. Através desses experimentos, Rutherford,
que já havia recebido o prêmio Nobel de Química
pelos seus trabalhos com substâncias radioativas, obteve resultados
surpreendentes ao observar que um certo número dessas partículas
alfa não só eram espalhadas de um ângulo muito
grande, mas que algumas delas chegavam a ser ricocheteadas para
trás.
O
que é que havia de notável nisso? Se o modelo de Thomson
fosse verdadeiro, ou seja, se ele representasse de forma fidedigna
a estrutura microscópica da matéria, não haveria
razão alguma para que as partículas alfa não
atravessassem as lâminas de ouro sem sofrer praticamente qualquer
desvio em sua trajetória.
Essas
observações ensejaram o aparecimento do chamado modelo
atômico de Rutherford, pelo qual o átomo apresenta
um estrutura nuclear, ou seja, ao contrário do modelo de
Thomson que previa uma distribuição uniforme de cargas,
ficou demonstrado que dentro do átomo existe um núcleo
central formado por uma alta concentração de cargas
positivas, ao passo que os elétrons estariam distribuídos
ao seu redor.
O
modelo de Rutherford, embora permitisse explicar qualitativa e quantitativamente
o desvio de partículas alfa (positivas) em rota de colisão
frontal com núcleos atômicos (também positivos),
deixou no ar dúvidas com respeito à estabilidade atômica
pois os elétrons tenderiam a ser atraídos pelo núcleo
central, colapsando sobre ele.
Anos
mais tarde, Niels Bohr chegou à formulação
de um modelo mais avançado, segundo o qual os elétrons
estariam orbitando em torno do núcleo, cada órbita
correspondendo a um nível de energia. Esse modelo permitiu
descrever os espectros de emissão e de absorção
de radiação pelos átomos. Em síntese,
a idéia era que os elétrons poderiam absorver radiação
eletromagnética saltando para um nível de energia
superior ou emiti-la, caindo para um nível de energia inferior.
Esse
modelo foi muito útil pois permitiu descrever dados experimentais
de espectros atômicos que estavam sendo acumulados desde meados
do século XIX e para os quais haviam sido encontradas certas
relações matemáticas "misteriosas",
as séries espectrais, sem que se soubesse a sua origem. O
modelo de Bohr permitiu que essas relações matemáticas
fossem derivadas de um modelo teórico pela primeira vez.
Com
o tempo, esse modelo de Bohr foi superado pela Mecânica Quântica1
que não admite o conceito de trajetória, eliminando
assim a idéia de órbitas atômicas análogas
às de um sistema planetário. Em seu lugar, surgiram
os orbitais atômicos, que são o resultado de
complexos cálculos matemáticos e que representam a
probabilidade de se encontrar elétrons em determinadas regiões
do espaço.
Como
sabemos, essa história não para aí. Poderíamos
continuar, relembrando como o conceito de orbitais juntamente com
o uso de sofisticadas técnicas experimentais permitiu desvendar
a estrutura de macromoléculas e como isso levou ulteriormente
à descoberta da estrutura do DNA, além de outras importantes
aplicações. Daquilo que já se disse, porém,
podemos depreender alguns pontos bastante interessantes que dizem
respeito a modelos:
- um
bom modelo teórico deve dar conta tanto dos aspectos qualitativos
quanto dos resultados quantitativos obtidos em observações
experimentais de um determinado fenômeno ou processo;
- modelos
teóricos concebidos a partir de certas observações
experimentais eventualmente devem ser abandonados em decorrência
de outras observações com as quais entrem em conflito;
- em
geral, modelos teóricos apresentam uma estrutura matemática
por se apoiarem em leis naturais que são expressas em termos
matemáticos;
- em
razão do aspecto anterior, os modelos teóricos apresentam,
em geral, uma certa capacidade de predição, que
permite que eles sejam comprovados ou refutados. Isso ocorre em
função dos acertos e erros decorrentes do confronto
dessas predições com dados experimentais, fazendo
com que esses modelos sejam aperfeiçoados ou abandonados
por outros mais adequados;
- conforme
um modelo teórico é aperfeiçoado, tornando-se
mais preciso e mais abrangente, ele passa a contribuir para a
formulação de uma teoria científica.
Vemos
assim que, em ciência, os experimentos desempenham um papel
fundamental, freqüentemente definitivo. Apenas aquelas idéias
e conceitos que passam pelo crivo das análises experimentais
numa espécie de darwinismo científico, sustentam-se
e contribuem para a formulação de teorias. Estas sintetizam
e consolidam o conhecimento acumulado em determinado campo de estudo.
O rigor com que tem sido aplicado esse modus operandi ao
longo do tempo, desde Galileu Galilei que o concebeu, é que
efetivamente dá origem à credibilidade de que goza
o saber científico.
Note-se
que os exemplos de modelos teóricos dados anteriormente foram
propositadamente extraídos da Física, onde os aspectos
que queríamos ressaltar aparecem com mais nitidez e simplicidade
(a idéia de simples está sendo usada aqui não
como sinônimo de fácil, mas em contraposição
a complexo).
Recentemente,
tem surgido uma nova forma de elaborar modelos teóricos cada
vez mais complexos em função do desenvolvimento de
um instrumento de grande impacto: estamos falando dos processadores
computacionais, que estão cada vez mais velozes. Com o uso
de computadores ultra rápidos, tornou-se possível
enfrentar problemas teóricos extremamente complexos como
a realização de previsões metereológicas
confiáveis ou a simulação de eventos neurológicos
através de redes neurais artificiais. Chega-se, inclusive,
a especular a respeito da possibilidade de se criar a inteligência
artificial (a propósito, alguém já sugeriu
que se deveria tentar inventar antes a "burrice artificial":
presumivelmente seria mais fácil).
Contudo,
quando se trata de estudar organismos vivos, a quantidade de variáveis
e a complexidade dos processos envolvidos são tais que tornam
praticamente impossível a elaboração de modelos
teóricos realistas. Surge assim a necessidade de se recorrer
a modelos experimentais.
Modelos
Experimentais
O
avanço no entendimento dos sistemas biológicos em
seres humanos é limitado pela metodologia existente. A resolução
temporo-espacial das técnicas de investigação
não-invasivas ainda é muito limitada para estudos
in vivo. Além disso, testes pré-clínicos
voltados para o desenvolvimento de novos instrumentos bio-compatíveis
e novas terapias requerem provas que garantam uma margem de segurança
mínima para a sua aplicação. Dessa
maneira, por motivos éticos, utilizam-se outros seres vivos
(não humanos) que permitam experimentação e/ou
que sirvam de modelos para o estudo de determinados sistemas biológicos.
Os animais utilizados são os mais variados, sendo mais comum
o camundongo, conhecido popularmente como "ratinho de laboratório".
Esses modelos experimentais são escolhidos conforme suas
semelhanças com as características fisiológicas
ou patológicas humanas. Na maioria das vezes, modelos animais
podem ser desenvolvidos especificamente para determinadas finalidades,
como por exemplo:
- Modelos
de doenças humanas
- Modelos
geneticamente modificados para estudos bioquímicos e fisiológicos
- Modelos
para monitorizar alterações funcionais e genéticas
-
Modelos para estudos dos mecanismos moleculares de comportamento,
dependência química e tolerância a stress.
- Modelos
para desenvolvimento e aplicação de terapia gênica
Hoje
dispomos de inúmeros modelos animais que se prestam ao estudo
de diferentes patologias humanas. Por exemplo, para a epilepsia,
a condição neurológica grave de maior prevalência
no mundo, conta-se com uma grande variedade de modelos experimentais.
Um modelo clássico é o modelo animal com crises induzidas
por estimulação elétrica. Goddard, na segunda
metade dos anos 60, em Montreal, Canadá, estava estudando
alterações comportamentais em camundongos através
de estimulações elétricas repetitivas, de baixa
intensidade, nas estruturas cerebrais, quando observou para sua
surpresa que esses animais desenvolviam posteriormente crises espontâneas.
Esse modelo de abrasamento elétrico é comumente conhecido
pelo seu termo inglês kindling.
Avanços
do conhecimento na área de biologia molecular têm possibilitado
a geração, cada vez mais freqüente, de animais
geneticamente modificados. Nessa linha, estão as técnicas
de transgênese e gene knockout. Na técnica gene
knockout ocorre uma troca de um gene endógeno específico
por um gene mutado. No caso transgênico, não há
uma substituição, mas sim integração
de cópias adicionais chamados de transgenes. Essas técnicas,
muitas vezes questionadas do ponto de vista ético, têm
permitido o desenvolvimento de modelos experimentais para o estudo
de doenças hereditárias e têm possibilitado
a geração de meios efetivos de cura para patologias
que não poderiam ser estudadas de outra forma.
Modelos
de passarela
A maioria
dos leitores que nos acompanharam até aqui certamente estará
pensando: "OK, depois disso tudo, está muito claro que
modelos científicos, sejam teóricos ou experimentais,
e modelos de passarela definitivamente nada têm em comum...
exceto a palavra modelo".
Porém,
aqueles leitores mais renitentes e que tenham sido capturados pela
brincadeira proposta no início poderiam argumentar: "Olha,
modelos teóricos são baseados em conceitos e uma modelo,
ao desfilar pela passarela, certamente é uma portadora de
conceitos. Além disso, já se falou muito em atletas
de laboratório. Quem sabe se essas modelos, dotadas de compleição
e características físicas tão especiais, não
seriam elas mesmas modelos experimentais resultantes de mutações
transgênicas."
Para
escapar a esse tipo de especulações geradas pelo título
pretensamente espirituoso, devemos salientar que não há
nenhuma evidência de que essas top models tenham passado
por qualquer tipo de modelamento genético a não ser
aquele proporcionado pela Natureza e pelo qual elas foram particularmente
beneficiadas. Por outro lado, embora modelos da alta moda sejam
certamente portadoras de conceitos tratam-se, na verdade, de conceitos
estéticos, dificilmente relacionáveis a conceitos
físicos e códigos matemáticos. Portanto, la
Bündchen está a salvo (ufa!) de ser comparada a
átomos e camundongos. Que bom!
Contudo,
cabe ainda uma palavra final a respeito do esforço realizado
pelo espírito humano na busca pelo desenvolvimento da ciência.
Mais do que conhecimento científico, capacidade de abstração,
senso ético e estético, o ofício de formular
modelos e teorias compatíveis com a Natureza requer, por
vezes, a capacidade de transcender. Aliás, parece ser justamente
isso o que William Blake nos sugere em Auguries of Innocence:
To
see a World in a Grain of Sand
And a Heaven in a Wildflower,
Hold Infinity in the palm of your hand
And Eternity in an hour.
|