Modelos
e Modelagens
Carlos
Vogt
I
Ferdinand
de Saussure, o grande fundador da lingüística moderna,
no livro Curso de Lingüística Geral, publicado,
postumamente, no início do século, por iniciativa
de alguns de seus alunos, a partir de suas anotações
das aulas do mestre suíço, escreve que a língua
é um todo em si mesmo e um princípio de classificação.
O que
exatamente pretendia Saussure com essa afirmação,
à primeira vista misteriosa e totalmente contra o senso comum?
Na
verdade, Saussure não se referia a nenhuma língua,
em particular, como o português, o francês, o húngaro,
o tupi, ou qualquer outra das que são ou foram faladas na
história dos povos e das civilizações.
Referia-se,
ao contrário, não a um fenômeno particular,
mas a um objeto teórico, isto é, a um artefato da
teoria, a um objeto da ciência, a um constructo, como gostavam
os estruturalistas de dizer, a uma simulação dos fenômenos
lingüísticos, de sua estrutura e de seu funcionamento,
a um modelo, enfim, da linguagem e suas ocorrência históricas,
sociais e culturais.
A "criação"
da língua como objeto da lingüística é
que permitiu o salto epistemológico fundador da moderna ciência
da linguagem.
Ao
dizer que a língua é um todo em si mesmo, Saussure
enunciava a condição de consistência e de coerência
intrínseca a que deve satisfazer todo objeto científico;
ao qualificá-lo como "princípio de classificação",
afirmava a sua condição de adequabilidade aos fenômenos
lingüísticos, às diversas línguas do mundo,
cujo funcionamento e estrutura seria capaz de descrever, consequentemente,
classificar.
O desenvolvimento
da ciência e da própria lingüística, abandonaria,
na seqüência, a simples ambição taxinômica
dos fenômenos para afirmar, amplamente, o poder explicativo
dos seus modelos teóricos e a língua, ao invés
de ser, enquanto modelo teórico, um princípio de classificação,
seria, nesse sentido, um princípio de explicação
com potenciais de previsibilidade indispensáveis para a ocorrência
de novos fenômenos ainda não ocorridos, mas previsíveis
na lógica de construção do modelo, tanto por
suas regras de adequação interna, isto é, sua
consistência e coerência sintáticas, quanto por
suas regras de adequação externa, isto é, suas
regras semânticas de correspondência com o mundo e com
os fenômenos que nele ocorrem, nesse caso, os fenômenos
de linguagem.
Os
modelos teóricos da ciência, de inspiração
lógica-matemática, são reducionistas por definição.
Abstraem do fenômeno a ser explicado apenas as características
relacionais com alto potencial de conceitualização
e conseqüente poder de generalização.
Nesse
processo, há sempre residuais de realidade que, por não
estarem contidos nas equações do modelo explicativo,
de um lado, dão historicidade à ciência, tensionando-a
continuamente contra seus limites e sua falibilidade e, de outro,
dinamizam, por constituirem desafios ao conhecimento, as suas mudanças
e sofisticação.
II
Assim,
de um modo geral, são os modelos científicos.
As
modelagens são um produto dessa sofisticação
teórica da ciência e o seu objetivo é constituir
objetos mais simples com as ferramentas da matemática, em
particular as equações diferenciais, visando à
sofisticação de instrumentos que permitam não
apenas uma compreensão adequada de um determinado fenômeno
e de suas tendências no tempo, mas também a formulação
de programas de intervenção que possam ordenar, organizar,
mudar, prever e mesmo prevenir, no que diz respeito à sua
ocorrência e seus desdobramentos, fenômenos, sejam eles
físicos, naturais, sociais ou culturais.
Os
estudos demográficos são particularmente felizes para
ilustrar o potencial dessa ferramenta e por envolverem questões
relacionadas aos quatro aspectos fenomelógicos acima mencionados.
De
fato, o estudo das populações humanas, suas tendências
de equilíbrio e de crescimento negativo ou positivo, tem
uma larga tradição que remonta ao trabalho sobre o
tema de Thomas Robert Malthus, ministro anglicano e professor de
história na Universidade de Cambridge, na Inglaterra do século
XVIII.
Como
se sabe, Malthus em seu Ensaio sobre a População
aponta, entre outras, para duas formulações bastante
conhecidas: uma, a de que a taxa de crescimento de uma população
é proporcional ao seu tamanho, isto é, quanto maior
a população, mais ela cresce; a outra, a de que as
populações crescem em proporção geométrica
e os alimentos, meios de sua subsistência, crescem em proporção
aritmética.
Em
outras palavras, o equilíbrio, sob este ponto de vista, é
função da taxa de natalidade, da taxa de mortalidade
e da capacidade da população, através de sua
organização social e política, de suprir suas
necessidades de subsistência e seus desejos de melhoria contínua.
É
claro que as coisas são muito mais complexas que isso, mas
o fato é que os estudos populacionais de que se ocupa a demografia
sofisticaram-se enormemente ao longo dos anos e hoje fornecem, a
partir de dados estatísticos e de modelos matemáticos
adequados, ferramentas indispensáveis não só
para simular o crescimento populacional futuro, mas também
para permitir, com base nessas projeções, a formulação
de políticas públicas eficientes e eficazes para o
atendimento qualificado das demandas sociais e culturais das gerações
futuras.
Desse
modo, a modelagem matemática oferece-se como um importante
mecanismo para o planejamento do futuro, com resultados tanto mais
acertados quanto maior for o número de variáveis pertinentes
com que o modelo trabalha e maior for a capacidade de formulação
e análise das tendências que ela estabelece.
O que
vai aqui dito para o estudo das populações humanas
de que se ocupa a demografia, vale também para os estudos
biológicos das relações entre organismos e
seus ambientes, próprios da ecologia, ou ainda os estudos
de população de vírus e bactérias que
realiza a micro-biologia.
As
aplicações da modelagem matemática, com o amplo
desenvolvimento das tecnologias de informação, abrem-se,
contudo, para os mais diversos campos do conhecimento e dos interesses
tecnológicos e econômicos: desde o futebol, em que
o Tira-Teima aparece na telinha da Globo para dirimir dúvidas
sobre lances polêmicos do jogo, passando por programas mais
sofisticados, como o Juiz Virtual, até as aplicações
em medicina, em bio-matemática, em economia e finanças,
em meteorologia, em meio ambiente, em manutenção de
equipamentos pesados e de alta complexidade, em música, em
administração e planejamento de projetos empresariais,
em inteligência artificial, enfim, nos mais diferentes aspectos
da vida e de suas manifestações culturais.
III
Quer
dizer então que estamos capacitados para tudo planejar, prever
e solucionar em relação ao futuro?
Longe
disso, embora tenhamos hoje uma capacidade de previsão, por
exemplo, meteorológica impossível há alguns
anos atrás, que nos permite medidas de defesa e de prevenção
capazes de evitar tragédias e antecipar soluções.
No
entanto, as enchentes e as secas continuam a ameaçar as populações
do planeta, quando não são outras catástrofes
de maior monta e de maior impacto como furacões, terremotos
e erupções vulcânicas.
O que
se sabe nem sempre é o que se pratica e, muitas vezes, a
imprevisibilidade de certos acontecimentos introduz variáveis
que não haviam sido contempladas pelo sistema, e o modelo,
embora coerente e consistente, mostra-se semântica e pragmaticamente
desconexo e ineficaz.
Há
mais ou menos 40 anos, para falar de um tema caro à mídia
em nossos dias e assustador para os brasileiros, houve em Nova Iorque
um apagão cujas conseqüências para a dinâmica
populacional da cidade foi importante já que o número
de bebês aumentou e a taxa de natalidade cresceu no período
correspondente.
Essa
variável, a do apagão não estava no gibi, como
também a do nosso recente apagão não constava
do figurino. Que conseqüências terá tido esse
evento para a economia, para a saúde, a educação,
para a população, para a sociedade, para os indivíduos,
seus medos, esperanças, incertezas e planejamentos existenciais?
É
possível modelar tudo?
Se
sim qual o modelo para prever o desfecho da história narrada
por Somerset Maugham no conto The Lotus Eater (Os Comedores
de Lótus) segundo a qual o turista inglês Thomas Wilson
abandona o seu país, o seu trabalho, sua família,
o seu passado para viver em Capri, no sul da Itália, dedicado
ao prazer de usufruir a cada dia a beleza e a magia histórica
do lugar, e nada mais.
Ao
deixar o banco onde trabalha, antes da deflagração
da primeira guerra mundial, Wilson não tem tempo de serviço
suficiente para garantir uma pensão para toda sua vida. Pode,
no entanto, contar com ela por 25 anos. Planeja, então, viver,
simples e prazerosamente por esse tempo, findo o qual, se não
fosse antes retirado da vida por morte natural ou acidental, ocupar-se-ia
ele próprio em tomar a iniciativa dessa retirada.
Passam-se
os 25 anos e Wilson vê-se sem dinheiro e sem apoio a que recorrer.
Consegue manter-se por mais um ano com os empréstimos e adiantamentos
que obtém, afiançados pela correção
de seu comportamento durante todo tempo anterior, e ainda por mais
cinco, pela caridade contrariada de seus antigos senhorios, depois
de tentar, sem muita convicção, um suicídio
mal sucedido.
Um
dia, pela manhã, é encontrado morto no alto de uma
das colinas de onde podia contemplar, à luz da lua, a beleza
deslumbrante que o seduzia e o aniquilara.
Se
se fizesse o exercício de modelar matematicamente o conto
para estimar e prever o comportamento futuro do personagem, que
variáveis permitiriam planejar o esperado e que outras interfeririam
para o seu desvio e frustrações do previsto?
Um
dos corolários da modelagem matemática é que
é possível tratar um problema complexo abstraindo-o
para um mais simples, comensurável, isto é, com um
número de variáveis determinado, com regras de relação
precisas e claras e conseqüente capacidade de representação
do problema tratado.
Aqui,
como de um modo geral, na construção de modelos teóricos,
a dinâmica do residual da realidade é intensa e, em
casos como o do comportamento humano, com variáveis de imponderabilidade
freqüentes e determinantes.
Razão
para não crer na importância de modelos e modelagens
para o conhecimento e para os aspectos práticos da vida contemporânea?
Ao
contrário, razão constante para aperfeiçoar-lhes
a forma e o alcance de suas explicações.
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