Modelagem
Matemática Aplicada à Saúde Pública
Hyun
Mo Yang
A
matemática teve o seu progresso intimamente associado ao
esforço para a compreensão dos fenômenos naturais,
graças aos espíritos inquiridores de pensadores que
não se contentaram apenas com as descrições
qualitativas dos mesmos. Desde tempos antigos, a geometria, por
exemplo, tem sido desenvolvida para tratar de problemas de mensuração
para calcular áreas de terras e volumes de celeiros. A linguagem
concisa, precisa e abrangente - em termos de símbolos (ou
notações) - da matemática tem sido útil
para elaborar idéias e metodologias para compreender e explorar
o mundo físico. Não foi sem razão que Galileu
defendeu ardentemente uma descrição quantitativa -
e dedutiva - dos fenômenos naturais que pudesse ser preditiva
(utilizando fórmulas matemáticas), deixando de lado
a comodidade de descrições apenas qualitativas e factuais
dos fenômenos.
Uma
vez que a compreensão de fenômenos naturais deve ser
baseada em idéias desenvolvidas a partir de intuições
(pensamento novo) e conhecimentos já adquiridos, o uso de
modelos é de grande valia. Os modelos são desenvolvidos
a partir de uma elaboração cuidadosa de idéias
voltadas para partes do fenômeno, que permitirão a
aferição das suas hipóteses em confronto com
as observações. Assim, modelos podem ser modificados,
aprimorados ou substituídos por outros para se obter uma
compreensão correta daquilo que está ocorrendo na
natureza. O desenvolvimento de modelos matemáticos para explicar
as observações do mundo físico teve grande
avanço desde tempos antigos. Por exemplo, a lei da atração
gravitacional é um resultado de modelagem matemática,
e a sua importância deve-se ao fato de ser uma lei universal,
ou seja, consegue explicar tanto o movimento das estrelas e galáxias
quanto o movimento de pequenos objetos em queda livre na terra.
O extraordinário desenvolvimento dos modelos físicos
deve-se ao fato de que os fenômenos naturais envolvem seres
inanimados que são passíveis de serem observados repetitivamente,
o que não é verdade em se tratando de seres vivos.
Portanto, devido à extraordinária complexidade de
fenômenos biológicos, modelos quantitativos para compreensão
destes fenômenos bio-médicos têm menos história
que a dos modelos em Física.
Entretanto,
desde há muito tempo, a preocupação de alguns
médicos com a saúde pública levou-os a uma
acurada investigação a respeito de fatores relacionados
à transmissão de doenças que assolavam muitas
cidades. Das suas observações e conclusões
resultaram a moderna epidemiologia - que consiste em determinar
e isolar o agente etiológico, a forma de transmissão,
a patogenicidade e o nível de prevalência na população.
As observações epidemiológicas e a coleta de
dados, junto com o acúmulo de conhecimentos bio-médicos,
permitiram determinar os fatores relacionados com a transmissão
de agentes patogênicos. Neste contexto, as aplicações
de análises estatísticas - muitas delas desenvolvidas
para explorar e explicar os dados epidemiológicos - foram
essenciais pois permitiram discriminar e ordenar fatores envolvidos
na transmissão das infecções.
Assim,
a determinação de agentes microbianos causadores das
infecções e as claras evidências da forma de
transmissão pelos modelos epidemiológicos e estatísticos
criaram condições para elaboração de
modelos matemáticos com a finalidade de entender a dinâmica
da sua transmissão. Os modelos matemáticos aplicados
à saúde pública têm duplo objetivo: descritivo
e preditivo. Em primeiro lugar, um modelo matemático deve
explicar a situação vigente de uma epidemia em uma
comunidade. Se um modelo não descrever as observações
epidemiológicas, então deve-se proceder a uma reformulação
de idéias quanto à transmissão da doença.
Se um modelo passar por esse primeiro teste, ele pode ser usado
para predizer as possíveis mudanças resultantes de
alterações nas condições bióticas
ou abióticas. É claro que, quando possível,
deve ser feita uma nova validação do modelo. Um modelo
é considerado robusto se explicar, também, essas mudanças
satisfatoriamente.
Exemplo:
Epidemiologia matemática de doenças infecciosas.
Para desenvolver um modelo matemático em epidemiologia, deve-se
conhecer a biologia da propagação de epidemias para,
então, empregar métodos de quantificação
dos aspectos essenciais da dinâmica da transmissão
do agente infeccioso. Em relação à biologia
da transmissão de epidemias, a análise dos conhecimentos
biológicos permite a escolha dos fatores essenciais (levando
em consideração o que se deseja elucidar) envolvidos
na dinâmica da transmissão. A posterior quantificação
permite uma síntese das idéias a respeito da transmissão
de epidemias. A análise biológica e a síntese
matemática permitem desenvolver modelos minimalistas, tão
essenciais na compreensão de fenômenos biológicos,
pois: 1) ressaltam os efeitos de um fator biológico envolvido
na transmissão de epidemias, e 2) oferecem meios de comparação
entre dois fatores atuantes na dinâmica. Dessa forma, um modelo
matemático minimalista preocupa-se em fazer uma caricatura
da realidade, com o intuito de extrair algumas informações
úteis.
Um
dos fundamentos biológicos a ser considerado no modelo é
o tempo de geração de uma infecção.
Este tempo é a soma dos períodos latente e infeccioso.
Um outro fundamento biológico a ser levado em consideração
refere-se à capacidade de indução da imunidade
por meio de vacina. Uma vez que um indivíduo suscetível
(os que nunca tiveram contato com vírus) seja vacinado, o
seu sistema imunitário é estimulado e, então,
induzido à produção de anticorpos. Um último
fundamento biológico considerado no modelo relaciona-se à
capacidade de transmissão da infecção. Para
que uma nova infecção ocorra em uma população,
um encadeamento de fatores deve ocorrer. O primeiro desses fatores
está intimamente ligado com o complexo relacionamento existente
entre os indivíduos em uma comunidade. Para que uma nova
infecção ocorra, é necessário que indivíduos
infectantes (os que tiveram contato com vírus, sobreviveram
durante o período latente, e estão eliminando vírus
para o meio-ambiente) e suscetíveis tenham encontros relativamente
próximos (no caso de transmissão aérea de vírus)
para, então, propiciar condições favoráveis
para transmissão do agente infeccioso. Entretanto, a efetiva
transmissão da infecção depende de transmissibilidade
ou infectividade do vírus (a capacidade do vírus circulante
infectar um indivíduo suscetível).
Considerando-se
esses fatores biológicos, são feitas as hipóteses
de quantificação para infecções de transmissão
direta. Primeiro, o processo infeccioso inicia-se quando um indivíduo
suscetível entra em contato com o agente infeccioso, passando
a ser designado de latente (não transmissor da doença),
pois nesse período o vírus aumenta de concentração
no seu organismo. Posteriormente, vem o período infeccioso,
quando os indivíduos são denominados de infectantes,
caracterizado pela eliminação do vírus no meio-ambiente
e, concomitantemente, pelo combate ao agente invasor com a produção
de anticorpos específicos, resultando na eliminação
do invasor do seu organismo. Finalmente, tem-se o período
imune que, em geral, é permanente e os indivíduos
são denominados de recuperados ou imunes. Assim, o modelo
considera uma comunidade dividida em quatro compartimentos não
interceptantes. Segundo, uma estratégia de vacinação
reside em inocular vírus atenuado que possa estimular o sistema
imunitário, porém sem o poder de gerar doença
(patogenicidade), transferindo os indivíduos suscetíveis
diretamente para o compartimento dos indivíduos recuperados,
quebrando a cadeia de transmissão da doença. Estuda-se,
assim, a vacinação como uma forma de controle de epidemias
e, também, de evitar morbidade. Finalmente, no que se refere
à transmissão de infecção, uma nova
infecção ocorre se um indivíduo suscetível
entrar em contato com vírus expelido pelo indivíduo
infectante. Esse encontro de pessoas permite, em uma primeira aproximação,
considerar que o risco de uma pessoa sadia tornar-se doente é
diretamente proporcional ao número de indivíduos infectantes,
resultando em um dos fundamentos da epidemiologia matemática,
a lei da ação das massas (a hipótese do encontro
aleatório entre os indivíduos suscetíveis e
infectantes homogeneamente misturados em uma população).
Esse risco é designado força de infecção,
cujo valor multiplicado pelo número de indivíduos
suscetíveis resulta na incidência (número de
novos casos da doença por unidade de tempo).
Um
modelo baseado nas considerações acima é denominado
modelo matemático determinístico compartimental. É
um modelo muito simples que descreve muito bem a dinâmica
de transmissão de infecções quando a população
em estudo é composta por um número muito grande de
pessoas. Uma característica desta modelagem é a presença
de valores limiares, que é um outro fundamento da epidemiologia
matemática. Em outras palavras, a estabilidade dos pontos
de equilíbrio é dada unicamente pelo valor limiar
relacionado ao parâmetro de contatos. Essa fórmula
escrita em função de outros parâmetros fornece
o valor limiar (número mínimo) do tamanho da população
para que a doença possa se estabelecer em níveis endêmicos.
Usando-se os resultados deste modelo, pode-se caracterizar epidemicamente
uma comunidade, ou seja, faz-se ajuste dos parâmetros epidemiológicos
do modelo. Uma vez determinados os valores para todos os parâmetros
do modelo, pode-se considerar a aplicação do modelo.
Um
dos objetivos da epidemiologia de doenças infecciosas consiste
em delinear os mais eficientes mecanismos de intervenção,
quantificando o esforço de cada um deles. Uma das importâncias
da modelagem matemática reside na sua aplicação
para prever a magnitude de variações quando se varia
um conjunto de parâmetros epidemiológicos. Para muitas
doenças infecciosas a vacina é uma forma eficiente
de controle. Nesse sentido, modelos matemáticos fornecem
valores concernentes ao esforço de vacinação
(proporção de indivíduos suscetíveis
que devem ser vacinados) para diferentes esquemas de vacinações.
O nível
de endemicidade de doenças infecciosas pode ser explicado
evocando diversos fatores, sejam bióticos ou abióticos.
Nesse contexto, modelos matemáticos podem fornecer subsídios
para determinar qual o fator preponderante na dinâmica da
transmissão de infecções. Para tanto, não
se requer gastos elevados na preparação e na execução
de experimentos de campo. Por exemplo, a esquistossomíase
é uma doença que prevalece em muitas regiões
e os esforços de controle desta doença, baseados na
aplicação de moluscicidas, em evitar contato com águas
infestadas com cercárias e em saneamento básico não
conseguiram eliminá-la. Mesmo que todos esses fatores sejam
importantes, a dificuldade na erradicação desta doença
é mostrada quando se leva em consideração os
efeitos da imunidade concomitante na modelagem matemática.
Portanto, devido às capacidades preditiva e comparativa,
os modelos matemáticos estão ocupando uma posição
muito importante na epidemiologia contemporânea.
Hyun
Mo Yang é professor do Departamento de Matemática
Aplicada do Instituto de Matemática, Estatística e
Computação Científica da Unicamp
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