Uma
nota sobre controle social e gestão da Internet
Carlos
Alberto Afonso
No início de abril, alguns fatos aparentemente não
relacionados entre si foram notícia de jornal.
Um
fato: o novo ministro das Comunicações anunciou um
plano de apoio às empresas de telefonia, para que estas possam
instalar e manter linhas telefônicas em áreas de baixa
renda. Os recursos para esse apoio virão, segundo o ministro,
do Fundo de Universalização de Serviços de
Telecomunicações (FUST).
Isso
é duplamente curioso e preocupante. Por um lado, o FUST está
submetido a uma lei que já foi regulamentada, definindo em
que projetos os recursos poderão ser alocados. O que o ministro
está afirmando, portanto, é que passará por
cima desses regulamentos e reorientará essa alocação
de recursos.
Por
outro lado, os contratos de concessão já determinam
as metas de universalização de acesso a serem cumpridas
em cronograma predeterminado pelas operadoras de telefonia, para
as quais não está previsto subsídio nenhum
- pelo contrário, estão previstas sanções
que podem chegar até à perda da concessão.
Justamente
por causa das cláusulas de universalização
de acesso previstas nesses contratos é que se orientou o
FUST a ser um fundo para alavancar a inclusão digital e o
acesso universal à Internet no país, através
de projetos de instalação de redes em escolas públicas,
nas unidades de saúde, em bibliotecas e centros comunitários,
já que da expansão geográfica da infra-estrutura
cuidam os próprios contratos de concessão. De fato,
sem a instalação de espinhas dorsais digitais chegando
a todos os municípios seria impossível atender as
determinações de acesso universal desses contratos.
Esse é um espaço para o qual não há
nenhum outro projeto em escala nacional, e o Brasil continua atrasado
em relação a outros países com economia de
porte similar nessa universalização, como têm
concluido várias avaliações de e-readiness
desde o ano 2000.
Outro
fato: o Comitê Gestor da Internet Brasil decidiu que de agora
em diante (mais precisamente, a partir de 4 de abril de 2002 às
12 horas) deixa de existir a restrição de um máximo
de dez nomes de domínio por entidade. É uma boa notícia,
na verdade essa restrição vinha atrapalhando, há
anos, muitos projetos de informação via Internet que
necessitavam caracterizar componentes de serviços com nomes
específicos. Mas, por que isso foi decidido só agora,
como foi decidido etc, são questões que ficam guardadas
com o Comitê Gestor, um grupo de voluntários nomeados
pelo governo federal que determina, em grande medida, as estratégias
de desenvolvimento da Internet no país. Outras questões,
como a destinação dos recursos arrecadados pela venda
do serviço de registro de domínio, podem ser levantadas.
Ambos
os fatos acabam revelando uma carência central na gestão
dos destinos da chamada "sociedade da informação"
no Brasil. As decisões são tomadas por autoridades
ou grupos delegados sem participação pública
efetiva (as consultas públicas promovidas por agências
como a Anatel, por exemplo, acabam sendo apenas cosméticas),
sem controle social. No primeiro caso, trata-se de participar da
destinação de um fundo que acumula cerca de R$1 bilhão
por ano e que, a depender de decisões ministeriais, pode
simplesmente retornar à origem - as próprias operadoras
de telefonia - sem ter realizado o que está determinado em
lei e nos regulamentos originais. No segundo caso, trata-se de definir
os caminhos de desenvolvimento da rede no país, incluindo
componentes que afetam diretamente o desenvolvimento de serviços
de valor agregado e os reflexos dessas estratégias na inclusão
digital e acesso universal.
A questão
do controle social dos recursos públicos no Brasil, obviamente,
não se esgota nesses exemplos, como estamos cansados de ver
todos os dias nos jornais. Esses são apenas exemplos reveladores
de que, também na busca da chamada "sociedade da informação",
é crucial atentar para o controle social dos processos e
centros de decisão que afetam estrategicamente esse desenvolvimento.
Para
muitos (entre os quais está o autor), a "sociedade da
informação" será um espaço social,
cultural, econômico e político de igualdade de oportunidades
de acesso aos recursos de informação, bem como de
inclusão digital generalizada - onde todos terão acesso
às redes de informação e saberão como
lidar com seus instrumentos. O chamado "e-governo", nesse
contexto, perde o sentido para a grande maioria da população
se não for seguido da inclusão digital que possibilite
igualdade de acesso efetivo às informações
e serviços respectivos.
No
caso da gestão da infra-estrutura, é interessante
notar que modelos de decisão similares, em geral fechados
ou restritos a determinados grupos de interesse, repetem-se de cima
para baixo, desde a ICANN (Internet Corporation for Assigned Names
and Numbers), passando pelos organismos regionais de registro e
chegando às entidades responsáveis pela administração
dos domínios em cada país.
A ICANN
é uma entidade extremamente frágil, formalmente constituída
como uma sociedade civil sem fins de lucro, na Califórnia
e, portanto, em primeiro lugar, submetida às leis dos EUA
enada impede, legalmente, que o Departamento de Comércio,
em um cenário de conflito de poder, retire as atribuições
de gestão mundial de nomes de domínio e números
IP da entidade. Esforços de transformar a ICANN em um organismo
internacional têm sido sabotados por interesses econômicos
e políticos privados, e o próprio presidente da entidade
(M. Stuart Lynn) está propondo que esta deixe de ter representação
dos usuários e seja muito mais fechada do que é hoje.
Se vingar o chamado "plano Lynn", fecha-se a possibilidade
de a administração mundial da rede estar coordenada
por um organismo efetivamente internacional.
Formalmente,
a ICANN reconhece até hoje apenas três organismos regionais
de administração da infra-estrutura Internet - ARIN,
APNIC e RIPE/NCC, que constituem os chamados RIRs (Regional Internet
Registries).
Ao
longo dos últimos dois anos, instituições ligadas
à operação da Internet na América Latina
e Caribe têm feito um esforço para criar uma entidade
de registro regional. Este esforço parece estar agora rendendo
frutos, já que foi constituída a estrutura formal
da organização e foi definida a instituição
que irá operar tecnicamente os serviços de designação
de números e nomes para os ccTLDs da região. Desde
novembro de 2001, a Fapesp opera tecnicamente os ccTLDs regionais
sob contrato com o LACNIC. A ICANN ainda não reconheceu formalmente
o LACNIC como um RIR. No entanto, há uma pressão conjunta
dos outros RIRs, formalizada em carta ao presidente do Conselho
da ICANN, para esse reconhecimento imediato.
Pelo
menos até o momento o LACNIC é basicamente constituído
por representantes de governos, comunidade acadêmica e empresas.
Não há representação de usuários
ou de associações civis. Ou seja, as mesmas questões
relativas a representatividade e controle social, já mencionadas
no âmbito da ICANN, devem ser levadas em conta no caso deste
ente regional.
A experiência
da criação do LACNIC pode funcionar como uma semente
para outros projetos regionais conjuntos, incluindo por exemplo:
-
apoio a iniciativas de inclusão digital e acesso universal
na região;
- incentivo
à regionalização efetiva do tráfego
Internet entre os países da região, que hoje em
quase todos os casos passa por operadoras nos EUA (e o tráfego
é pago em sua totalidade às operadoras dos EUA);
- formulação
conjunta de estratégias de desenvolvimento da infra-estrutura
preservando os possíveis interesses comuns dos países
da região;
- incentivo
à preservação de conteúdos digitais
e à disseminação da produção
cultural;
- criação
de sistemas de informação comuns, bem como estímulo
a políticas para que conteúdos latino-americanos
residentes em servidores nos EUA ou Europa venham para a região;
- uma
política comum de descentralização da administração
de nomes de domínio por grupos de interesse específicos,
tal como já começa a ocorrer no âmbito da
ICANN com os domínios .coop, .union e .org.
Nos
países, não há uma forma institucional preponderante
de administração dos chamados domínios nacionais
de primeiro nível (os "country code top level domains"
ou ccTLDs). No entanto, a tabela abaixo mostra que no máximo
10% destes são administrados por entidades civis sem fins
de lucro. Surpreende a grande quantidade de países que entregam
a empresas privadas a administração de seus domínios
- muitas vezes, as empresas sequer são nacionais.
Distribuição
das operadoras de ccTLDs quanto ao tipo de atividade
Tipo
de organização
|
número
de operadoras
|
Governamental |
78
|
32%
|
Empresa |
77
|
31%
|
Acadêmica
|
62
|
26%
|
Não
governamental sem fins de lucro |
24
|
10%
|
Sem
informação |
2
|
1%
|
Total
de operadoras |
243
|
100%
|
No
Brasil, a gestão está desde 1995 a cargo do Comitê
Gestor (CG) já mencionado. O CG desde então oficializou
a Fapesp como a instituição operadora dos serviços
de registro e controle.
Desde
sua criação o CG tem sido um comitê sem personalidade
jurídica própria, sob controle estrito do governo
federal. Todos os seus membros são nomeados por uma lista
gerada pelos ministérios acima mencionados - é sintomático
que a maioria deles, incluindo seu secretário executivo,
voltaram a ser os mesmos de 1995.
É
inusitada a precariedade na divulgação de informações
estatísticas de qualquer tipo sobre o desenvolvimento e estado
exato da Internet no Brasil. Não há informação
sobre a alocação dos blocos de números IP,
sobre a distribuição nacional e internacional do tráfego,
sobre o desenvolvimento e estado de pontos de presença locais
(medida da expansão da infra-estrutura para o acesso universal)
e disponibilidade de serviços de conexão na chamada
última milha etc.
O registro
de domínios, especialmente no caso das sociedades civis sem
fins de lucro, é particularmente rigoroso, requerendo prova
cabal do status jurídico - o que é importante, para
evitar uso indevido do domínio .org.br. Curiosamente, no
entando, o próprio CG viola suas regras, ao designar domínios
.org.br a entidades de outra natureza, a começar do próprio
CG, em que o domínio cg.org.br está registrado em
nome de uma pessoa física. Outro exemplo de domínio
.org.br sendo indevidamente utilizado pelo governo federal é
socinfo.org.br, este registrado em nome de um organismo federal
(o IBICT).
Tal
como ocorreu depois de um longo período com a RNP, esboça-se
agora a formalização do atual CG em uma sociedade
civil sem fins de lucro. Nada indica até agora que mudará
o critério de representatividade efetiva e controle social
sobre as estratégias de desenvolvimento da Internet no Brasil.
Questões
cruciais sobre a governabilidade da Internet no país (exatamente
as mesmas questões que se colocam para a estrutura mundial
de governo da Internet), e sobretudo sobre a participação
democrática no seu desenvolvimento e políticas, têm
diretamente a ver com as características e estrutura dessa
nova organização, mas o processo de eventual criação
dessa nova entidade tem sido conduzido a portas fechadas, o que
não chega a ser novidade.
Carlos
Alberto Afonso estudou engenharia naval na Escola Politécnica
da USP e é Mestre em Economia pela York University (Toronto,
Canadá), onde cursou um doutorado em Pensamento Social e
Político. É co-fundador do IBASE, com Betinho e Marcos
Arruda, e idealizador do primeiro provedor de serviços Internet
do país, o AlterNex. Foi membro do Comitê Gestor da
Internet no Brasil (1995-1997) e atualmente é diretor de
desenvolvimento da Rede de Informações para o Terceiro
Setor, RITS.
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