Computação
ubíqua e cooperativa
Ricardo
Anido
Em
1875, os responsáveis pelo que viria a se tornar o hoje lendário
Oxford English Dictionary assumiram a tarefa de produzir um dicionário
da língua inglesa com citações que exemplificassem
não apenas o significado das palavras, mas que também
captassem a trajetória das alterações de significado
ao longo do tempo. Para levar adiante essa tarefa, os editores decidiram
solicitar a ajuda de voluntários, imprimindo mil panfletos
para serem distribuídos em livrarias, com convite para participação
na empreitada. Os voluntários tinham uma tarefa bem definida:
procurar, em livros específicos (se necessário fornecidos
pela editora), citações interessantes de palavras
interessantes, e preencher tiras de papel especialmente preparadas,
contendo as informações necessárias para processamento
posterior pelos editores. Não compreendendo, na época,
a dimensão da tarefa a que se propunham, os editores inicialmente
estimavam que quatro anos de trabalho seriam suficientes para completar
o trabalho. Até 1881 quase setecentas mil tiras de papel
completadas tinham sido compiladas por voluntários e necessitavam
de triagem. A primeira parte do dicionário, cobrindo palavras
de A a ant, somente foi publicada em 1884; o dicionário completo
somente ficou pronto em 1928, tendo sido processadas um total de
mais de seis milhões de tiras de papel.
Embora
o dicionário não tenha sido o primeiro trabalho intelectual
cooperativo, certamente foi uma das mais notáveis e monumentais
obras produzidas com ajuda de trabalho voluntário. Uma questão
interessante é o quanto a Internet atual, com sua capacidade
de disseminação de informação, teria
contribuído para a agilização do processo (obviamente,
muito do trabalho de catalogação hoje em dia também
seria muito mais eficientemente feito com a ajuda de computadores,
mas a leitura cuidadosa dos textos em busca de citações
ainda teria que ser feita por humanos).
Quando
se comenta o futuro da Internet, muita atenção é
dedicada a aspectos relacionados à velocidade e à
capacidade de transferência das tecnologias de redes de computadores
do futuro. Esses são, sem dúvida, aspectos importantes
que terão grande impacto no desenvolvimento de novas aplicações
para a Internet, não possíveis ou nem mesmo imagináveis
com a tecnologia atual. Nesse sentido, a FAPESP iniciou recentemente
um programa para fomentar o desenvolvimento de tecnologia básica
de redes de alta velocidade e de suas aplicações (Programa
TDIA - Tecnologia da Informação no Desenvolvimento
da Internet Avançada).
No
entanto, mesmo com a velocidade e capacidade de transferência
atuais, a Internet representa uma novidade tão grande em
termos de comunicação que muitos novos usos ainda
devem ser inventados. Duas vertentes interessantes são trabalho
cooperativo e computação ubíqua.
Computação
ubíqua, como o nome implica, refere-se à capacidade
de estar conectado à rede, e fazer uso da conexão,
constantemente, a todo o momento, nas mais variadas situações.
Na última semana de março uma empresa "start-up"
inglesa realizou um experimento preparatório para o lançamento
de um novo produto para a Web. As pessoas escolhidas para o experimento
estavam acostumadas com o uso de novas tecnologias: participantes
de um seminário sobre computação que aconteceu
no St. John's College, da Universidade de Cambridge. Os participantes
receberam gratuitamente, por uma semana, um telefone celular de
última geração (tecnologia GSRM). O equipamento
era mais parecido com uma agenda eletrônica atual, com tela
de cristal líquido sensível ao toque, reconhecimento
de caracteres manuscritos, e, mais importante para o experimento,
um navegador Web integrado (o ubíquo Internet Explorer da
Microsoft). No sistema de telefonia GSRM o usuário não
paga por conexão, mas sim pela quantidade de informação
trocada. Assim, ao contrário do que ocorre com o acesso residencial
através de uma linha normal de telefone, onde á necessário
conectar-se, através de um modem, com o provedor no início
de uma sessão e desconectar-se ao final, no sistema GSRM
é possível manter-se conectado o tempo todo.
O
novo negócio da empresa é baseado nessa possibilidade.
A idéia é bastante simples, e somente terá
sucesso se realmente (com se espera), o usuário fizer uso
da Web a todo momento, não importando o local: a empresa
desenvolveu pequenos botões, de baixo custo, capazes de comunicação
infra-vermelha de curto alcance. A agenda/telefone distribuída,
assim como a maioria das agendas eletrônicas modernas, também
possuía capacidade de comunicação infra-vermelha,
e ao passar por um desses botões bastava o usuário
apontar o seu telefone para o botão e apertar uma tecla para
receber o endereço de uma página Web com alguma informação
específica. A idéia da empresa é espalhar esses
botões pelas cidades: em outdoors de propaganda (para o cliente
receber maiores informações sobre o produto anunciado
ou mesmo adquirir instantaneamente o produto), pontos de ônibus
(para o cliente consultar o tempo de espera até a passagem
do próximo ônibus -- assumindo que a empresa de ônibus
detecte continuamente a posição de seus veículos,
como já fazem algumas), ao lado de quadros de uma exposição
ou em museus (para o usuário receber mais informações
sobre a obra exposta), etc.
O
mais interessante é que a empresa aposta principalmente na
conveniência, pois em qualquer das situações
acima ao invés do botão poderia ser fornecido o endereço
da página desejada, e o usuário digitaria esse endereço
em sua agenda/telefone. No entanto, com a esperada proliferação
da disponibilização de informações na
Web, os endereços certamente terão que ser cada vez
mais extensos, justificando o uso de botões de acesso.
Uma
outra possibilidade interessante que advém do poder de disseminação
da Internet é o desenvolvimento de trabalho cooperativo.
Um dos exemplos de trabalho cooperativo de maior sucesso com a ajuda
da Internet é o sistema operacional Linux. No início
da década de 90 Linus Torvalds, um estudante finlandês,
desenvolveu uma primeira versão de um núcleo de sistema
operacional para computadores pessoais, compatível com Unix,
um sistema operacional então muito utilizado em estações
de trabalho e computadores de maior porte. Linus Torvalds denominou
o seu sistema de Linux, disponibilizou o código de todo o
seu programa na Web e organizou o trabalho voluntário para
completar o trabalho de forma a produzir um sistema operacional
realmente utilizável. Hoje o sistema Linux, depois do trabalho
voluntário de milhares de programadores, alcançou
uma qualidade e estabilidade comparável aos sistemas comerciais
Unix, fazendo frente mesmo ao todo-poderoso Windows da Microsoft.
É interessante notar que hoje em dia Linus Towalds tornou-se
empresário, mora nos Estados Unidos, e, apesar de ainda exercer
enorme influência no contínuo trabalho de desenvolvimento
do Linux, não tem tempo de gerenciar o dia-a-dia, e passou
a incumbência e responsabilidade de desenvolver a próxima
versão do núcleo do Linux para um brasileiro, Marcelo
Tosatti, de Curitiba, uma das pessoas que mais entendem do núcleo
atual, apesar de ter apenas 18 anos.
Muitos
outros projetos de desenvolvimento colaborativo de software existem
no mundo. Na verdade, existem hoje várias organizações
que fomentam o desenvolvimento de software colaborativo (em geral,
fornecem espaço para armazenamento de várias versões
do software em desenvolvimento, disponibilizam ferramentas de gerência
para os usuários, etc., mas exigem que o software produzido
seja disponibilizado gratuitamente). Um dos maiores repositórios
de software sendo desenvolvidos é o SourceForge, que pode
ser encontrado em http://sourceforge.net.
No Brasil, a empresa de processamento de dados do Rio Grande do
Sul (PROCERGS)
também abriga vários projetos de desenvolvimento cooperativo
de software.
Um
outro exemplo de atividade voluntária, cooperativa, na Web,
é o sistema Rau-tu,
criado por Rubens Queiroz, no Centro de Computação
da UNICAMP. O Rau-tu (versão jocosamente tupiniquim da expressão
inglesa how-to) é um sistema de consulta de informações,
gratuito, em que qualquer pessoa pode fazer uma pergunta através
da Web. O diferencial do sistema é que as perguntas são
respondidas por voluntários, cuja única recompensa
é ter o seu nome listado entre os contribuintes para um determinado
tópico. Perguntas e respostas ficam disponíveis no
repositório do sistema, podendo ser acessadas por outros
interessados. O sistema é dinâmico: dependendo da demanda,
novos tópicos podem ser adicionados. Além disso, as
respostas são continuamente avaliadas (pelos leitores), de
forma que apenas as respostas consideradas satisfatórias
permanecem disponíveis no sistema.
Apesar
de atualmente os tópicos ativos serem, em sua maioria, sobre
assuntos técnicos de computação, o modelo do
Rau-tu é conceitualmente muito poderoso. A interação
proporcionada pela Internet, se associada a um espírito comunitário
de compartilhamento do conhecimento e possibilita a difusão
de conhecimento específico numa escala antes inimaginável.
Um
último exemplo de trabalho cooperativo retoma o tema de dicionários
utilizado na abertura deste texto. Sob orientação
do prof. Imre Simon, do Departamento de Ciência da Computação
da USP, está sendo compilada uma lista
de palavras em português, para ser usada por exemplo em corretores
ortográficos e gramaticais automatizados (presente em alguns
editores de texto). Embora o termo técnico normalmente utilizado
em computação para uma lista como essa seja dicionário,
o mais apropriado seria chamá-la de vocabulário, pois
ela é basicamente um compêndio de palavras, associadas
a regras de formação e regras de conjugação
de verbos. Todas as listas existentes até o momento são
protegidas por direitos autorais, o que proíbe a sua utilização
gratuita. A lista foi compilada inicialmente com o processamento
de textos livres de direito autoral, encontrados na Web, e vem sendo
continuamente aprimorada através de contribuições
voluntárias. Essa técnica de utilizar textos para
a formação de compêndios é eficaz para
formar o núcleo inicial do vocabulário, mas o crescimento
no número de novas palavras é muito lento se apenas
textos escritos forem sendo utilizados, porque muitas palavras são
utilizadas raramente. Uma das iniciativas para acelerar o ritmo
de crescimento do vocabulário foi o desenvolvimento de um
software reconhecedor de caracteres, capaz de processar automaticamente
uma página digitalizada. O software, distribuído gratuitamente,
pode ser usado por voluntários para extrair palavras de textos
antigos, cujos direitos autorais expiraram.
Em
resumo, quando se comenta o futuro da Internet é necessário
compreender que ela representa um avanço tão grande
em termos de possibilidades de troca de conhecimento que o "futuro"
muitas vezes já está disponível hoje.
Ricardo
Anido é diretor do Instituto de Computação
da Unicamp.
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