Editorial:

A parábola do cão digital
Carlos Vogt

Reportagens:
Governo se compromete com o SocInfo
Escolas públicas sem computadores
Realidade digital nas relações de trabalho
Internet de alta velocidade
Novas tecnologias de hardware
Certificação digital, segurança possível
Web semântica
Direitos autorais e copyleft
Hackers e crackers
Arquivos abertos e modelos de publicação
Telemedicina, aplicações para o Brasil
Artigos:
Computação ubíqua e cooperativa
Ricardo Anido

A Internet é autosustentável?
Peter Schultz

A maturidade da informação
Karma Rubio
Castells e a "era da informação"
Osvaldo Ruiz
Controle social e gestão da Internet
Carlos Afonso
Jovens e computadores
Tom Dwyer
Nova Internet
Nelson Simões
Poema:
Media Watching
Carlos Vogt
 
Bibliografia
Créditos

 

 

Manuel Castells e a "era da informação"

Osvaldo López Ruiz

A principal dificuldade que oferece este livro (a coleção A Era da Informação, de Manuel Castells) de quase mil e quinhentas páginas, em três volumes, é sua própria extensão. Por exemplo, não seria possível reproduzir, no espaço desta resenha, seu sumário em forma completa. São inúmeros os temas que o autor aborda no que ele chama "o trabalho de minha vida" e cuja elaboração lhe levou doze anos. Pelo mesmo motivo, um trabalho como esse corre o risco de ser objeto de leituras superficiais: o sistema precisa de descrições rápidas de si mesmo. Daí a dúvida que suscita quando um livro de teoria social se torna um best seller: ajuda aos leitores a repensar criticamente a sociedade ou apenas reafirma sua lógica de funcionamento, legitima "o que ela é"? Por acreditar que os argumentos de Castells merecem ser considerados detidamente, tentarei sinalar os principais fios da trama na qual ele coloca muitos dos problemas sociais fundamentais nesse fim-começo de milênio; certamente, sem ter a pretensão de que o resultado seja mais do que uma pequena amostra desse grande pano de fundo que é a complexa sociedade mundial na qual vivemos, tal como é vista pelo olhar desse renomeado sociólogo catalão.

Três processos históricos paralelos

Segundo Castells, três processos independentes começam a se gestar no final dos anos sessenta e princípios dos setenta e convergem hoje para a "gênese de um novo mundo". Eles são: 1) a revolução das tecnologias da informação; 2) a crise econômica tanto do capitalismo quanto do estatismo e sua subsequente restruturação; 3) o florescimento de movimentos sociais e culturais - feminismo, ambientalismo, defesa dos direitos humanos, das liberdades sexuais, etc. O primeiro processo, a revolução das tecnologias da informação, atua remodelando as bases materiais da sociedade e induzindo a emergência do informacionalismo como a base material de uma nova sociedade. Nesse sentido, ela tem uma importância igual ou maior à da Revolução Industrial. As tecnologias da informação tornam-se as ferramentas indispensáveis na geração de riqueza, no exercício do poder e na criação de códigos culturais. Particular importância adquire, no entanto, ao potencializar as redes - na verdade, muito velhas formas de organização social - para se tornarem o modo prevalecente de organização das atividades humanas transformando, a partir de sua lógica, todos os domínios da vida social e econômica.

O outro processo, a crise dos modelos de desenvolvimento tanto do capitalismo como do estatismo levou a ambos a se restruturarem a partir de meados dos anos 70. O estatismo acabou mostrando sua inabilidade para manejar sua transição para a Era da Informação, enquanto, nas economias capitalistas, as firmas e os governos, adotaram medidas e políticas que, em conjunto, levam a uma nova forma de capitalismo caraterizado pela globalização das atividades econômicas centrais, a flexibilidade organizacional e um maior poder para o gerenciamento em suas relações com o trabalho. Essa nova forma de capitalismo, o capitalismo informacional acabou prevalecendo. A conseqüência fundamental desse processo é que, pela primeira vez na história, o mundo todo está organizado tendo como base um conjunto de regras econômicas comuns. Trata-se de um capitalismo muito mais duro em seus objetivos, porém, incomparavelmente mais flexível que qualquer um de seus predecessores em seus meios. "Informacional", então, porque mais do que nunca está fixado na cultura e é propulsado por essa tecnologia.

Contudo, Castells é explícito ao afirmar que "a tecnologia não determina a sociedade." Muitos e múltiplos fatores intervêm segundo um complexo padrão interativo na configuração que ela toma em cada momento da história. Daí a importância que tiveram, na conformação da sociedade atual, os poderosos movimentos sociais que eclodiram a partir de 1968. Eles reagiram de múltiplas formas contra o uso arbitrário da autoridade, se revoltaram contra a injustiça e procuravam a liberdade necessária para a experimentação pessoal. Em essência, tratou-se de movimentos culturais e não políticos e o que queriam era mudar a vida e não tomar o poder. É por isso que, contrariamente ao que pode se pensar, eles não foram derrotados. Eles se retiraram deixando por trás uma alta produtividade histórica. Em sua luta, questionaram as bases profundas da sociedade e rechaçaram os valores estabelecidos. Levantaram-se contra o patriarcalismo e marcaram a crise da família patriarcal e dos valores que vinham organizando a sociedade durante séculos, rechaçaram os tradicionalismos religiosos e os nacionalismos e, assim, prepararam o cenário para uma ruptura fundamental na sociedade. No entanto, embora esses movimentos sociais fossem em princípio culturais e independentes das transformações econômicas e tecnológicas, seu espírito libertário influenciou, de forma considerável, a mudança para os usos individualizados e descentralizados da tecnologia. Sua cultura aberta estimulou a experimentação, com a manipulação de símbolos e seu internacionalismo e cosmopolitismo estabeleceu as bases intelectuais para um mundo interdependente.

A interação desses três processos, paralelos mas independentes, durante o último quarto do século XX produz uma redefinição histórica das relações de produção, de poder e de experiência (individual e social) que acabaram produzindo uma nova sociedade. Essa nova sociedade é caraterizada, então, por uma nova estrutura social dominante: a sociedade rede, uma nova economia: a economia informacional global e uma nova cultura: a cultura da virtualidade real. Contudo, a caraterística da sociedade rede não é o papel crucial do conhecimento e da informação. Conhecimento e informação, na verdade, foram centrais para todas a sociedades1. O que é novo hoje, é o conjunto de tecnologias da informação com as quais lidamos, centradas ao redor das tecnologias da informação/comunicação baseadas na microeletrônica e a engenharia genética - tecnologias para agir sobre a informação e não apenas a informação para agir sobre a tecnologia, como no passado. Elas estão transformando o próprio tecido social, permitindo a formação de novas formas de organização e interação social através das redes de informação eletrônicas.

O Paradigma Tecnológico Informacional e a Cultura da Virtualidade Real

É assim que, de acordo com Castells, temos entrado em um novo paradigma tecnológico, no sentido dado por Thomas Kuhn às revoluções científicas, isto é um intervalo que induz um padrão de descontinuidade nas bases materiais da economia, da sociedade e da cultura. As principais caraterísticas do paradigma tecnológico informacional são: 1) a informação é a matéria prima fundamental; 2) a penetrabilidade dos efeitos das novas tecnologias: o processamento de informação torna-se presente em todos os domínios de nosso sistema eco-social e, por isso, o transforma; 3) a lógica de redes, lógica bem adaptada à crescente complexidade das interações e a modos imprevisíveis de desenvolvimento; 4) a flexibilidade, entendida como a capacidade de reconfiguração constante sem destruir a organização - porém, essa flexibilidade pode ser tanto uma força libertadora quanto se tornar uma tendência repressiva, salienta o autor -; 5) a convergência de tecnologias específicas num sistema altamente integrado. Pela primeira vez na história, diz Castells, a mente humana é uma força produtiva direta e não apenas um elemento decisivo do sistema de produção.

Sob o paradigma informacional, emerge uma nova cultura onde as expressões e a criatividade humanas são padronizadas e (hiper) ligadas em um hipertexto eletrônico global que modifica substancialmente as formas sociais de espaço e tempo: do espaço dos lugares ao espaço dos fluxos, do tempo marcado pelo relógio ao "tempo intemporal" das redes. Esse hipertexto eletrônico, sintetizado pela Internet2, torna-se o marco de referência comum para o processamento simbólico de todas as fontes e de todas a mensagens. É por isso que esse hipertexto constitui a coluna vertebral da nova cultura, a cultura da virtualidade real, na qual a virtualidade torna-se o componente fundamental de nosso ambiente simbólico e, por isso também, da nossa experiência como seres comunicacionais. A virtualidade é nossa realidade, afirma Castells, porque vivemos em um sistema no qual a própria realidade (a existência material/simbólica das pessoas) está totalmente imersa num ambiente de imagem virtual, num mundo simulado no qual os símbolos não são apenas metáforas mas incluem a experiência real. Nesse ambiente, os valores dominantes e os interesses são construídos sem referência ao passado ou ao futuro, mas na intemporal paisagem das redes de computadores e dos mídia eletrônicos.

A Sociedade rede e os Movimentos Sociais3

As redes são para Castells mais do que uma nova metáfora que superaria as mecanicista e organicista, nas quais a sociologia se baseou historicamente. As redes interativas de informação tornaram-se tanto os componentes da estrutura social quanto os agentes da transformação social: são a morfologia social de nossas sociedades. Por isso, para o autor, é justificado falar em sociedade rede nomeando assim a nova estrutura social dominante. Embora as redes tenham existido sempre como forma de organização social, com as vantagens de ter maior flexibilidade e adaptabilidade que outras formas, elas tinham um problema inerente: a incapacidade de administrar a complexidade parr além de um certo tamanho crítico. Essa limitação substancial foi superada com o desenvolvimento das tecnologias da informação. É por isso que a flexibilidade pode ser alcançada sem sacrificar a performance e é por isso também que, por sua capacidade superior de desempenho, as redes vão gradualmente eliminando, em cada área específica de atividade, as formas de organização hierárquicas e centralizadas. Existem, por isso também, redes baseadas em valores alternativos aos dominantes, embora sua morfologia seja similar. É assim que os conflitos sociais acabam tomando a forma de lutas baseadas em redes que tentam reprogramar outras redes, inscrevendo assim novos códigos (por exemplo, novos valores) entre os objetivos que organizam a atuação das redes opostas. Dessa forma a luta principal na era da informação passou a ser a luta pela redefinição dos códigos culturais, e esses códigos, em última instância, residem na mente humana. A mente humana tornou-se, assim, o principal local do poder.

No entanto, a mudança social na sociedade rede é uma tarefa bem complicada devido a grande capacidade das redes de absorver qualquer novo insumo para acrescentar à própria rede e/ou para neutralizá-lo. É por isso que existem poucas possibilidades de mudança social dentro de uma rede dada. As possibilidades de transformação vêm normalmente de fora, seja através da negação de sua lógica pela afirmação de valores que não podem ser processados por rede nenhuma: apenas ser obedecidos e seguidos, seja por redes alternativas com projetos alternativos que consigam dar comunicabilidade a códigos para além de sua autodefinição específica. Neste contexto, onde os partidos políticos parecem ter esgotado seu potencial como agentes autônomos da mudança social, os sujeitos potenciais da Era da Informação são os movimentos sociais, e o serão na prática se conseguirem ser produtores e distribuidores de códigos culturais alternativos. Para isso, segundo Castells, eles têm que se posicionar como mobilizadores de símbolos e atuar sobre a cultura da virtualidade real que emoldura a comunicação na sociedade rede.

Identidade e Fundamentalismo

Entretanto, ao mesmo tempo que esses "embriões de uma nova sociedade", os movimentos sociais, conseguem desenvolver suas potencialidades, uma distância social infinita vai se estabelecendo entre, por um lado, as metaredes do sistema financeiro internacional e os fluxos globais de riqueza, poder e imagens e, por outro, a maioria das pessoas, as atividades e os locais do mundo. A globalização está se tornando um grande movimento de conexão de tudo o que vale para a razão instrumental do mercado e, ao mesmo tempo, de desconexão de tudo o que não vale para essa razão. Nesse cenário, as pessoas tendem a se reagrupar em torno de identidades primárias (religiosas, étnicas, territoriais, nacionais), e o fazem a procura de segurança pessoal e de sentidos para (re) organizar suas vidas. Assim, aparece a contraposição bipolar entre a Rede e o Ser e, em oposição à sociedade rede, se torna manifesto o poder da identidade. O enorme poder que tem a identidade, se expressa tanto no nascimento de alternativas ao sistema por via de movimentos sociais articulados a partir de identidades específicas, quanto na formação de grupos que ficam encerrados em si mesmos e na auto-afirmação de valores e sentidos definidos como forma de proteção diante de um sistema que os exclui. É por isso, afirmava Castells em meados dos anos noventa, que o surgimento de fundamentalismos religiosos não é casual nesse contexto. Parece responder a uma lógica de excluir os agentes da exclusão. "Quando a Rede desliga ao Ser, o Ser, individual ou coletivo, constrói seu significado sem a referência instrumental global: o processo de desconexão torna-se recíproco após a recusa, pelos excluídos, da lógica unilateral de dominação estrutural e exclusão social."

Osvaldo López Ruiz é sociólogo, professor na Universidade Nacional de Cuyo, Argentina e doutorando em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas.

Notas:

  1. Nesse sentido, Castells sugere que deveríamos abandonar a noção "sociedade da informação", noção que ele mesmo reconhece ter usado erroneamente (Castells 2000a: 10). [voltar]
  2. As alusões à Intenet e, principalmente, à engenharia genética cobram maior presença nos artigos posteriores à aparição da primeira edição da Era da Informação (1996-1998). Vale a pena salientar que no ano 2000 foi publicada em inglês uma segunda edição atualizada. Segundo me informara a editora Paz e Terra, responsável pela edição brasileira, essa edição atualizada corresponderá à sexta edição em português a sair proximamente. [voltar]
  3. A meu ver, a tradução de network society para o português como "sociedade em rede" é inapropriada e pode induzir a erros conceituais. Mas isto é matéria para uma discussão na qual não podemos entrar - como em tantas outras - no espaço desta resenha. [voltar]
 

Atualizado em 10/04/2002

http://www.comciencia.br
contato@comciencia.br

© 2002
SBPC/Labjor
Brasil

Contador de acessos: