Manuel
Castells e a "era da informação"
Osvaldo
López Ruiz
A principal dificuldade que oferece este livro (a coleção
A Era da Informação, de Manuel Castells) de
quase mil e quinhentas páginas, em três volumes, é
sua própria extensão. Por exemplo, não seria
possível reproduzir, no espaço desta resenha, seu
sumário em forma completa. São inúmeros os
temas que o autor aborda no que ele chama "o trabalho de minha
vida" e cuja elaboração lhe levou doze anos.
Pelo mesmo motivo, um trabalho como esse corre o risco de ser objeto
de leituras superficiais: o sistema precisa de descrições
rápidas de si mesmo. Daí a dúvida que suscita
quando um livro de teoria social se torna um best seller:
ajuda aos leitores a repensar criticamente a sociedade ou apenas
reafirma sua lógica de funcionamento, legitima "o que
ela é"? Por acreditar que os argumentos de Castells
merecem ser considerados detidamente, tentarei sinalar os principais
fios da trama na qual ele coloca muitos dos problemas sociais fundamentais
nesse fim-começo de milênio; certamente, sem ter a
pretensão de que o resultado seja mais do que uma pequena
amostra desse grande pano de fundo que é a complexa sociedade
mundial na qual vivemos, tal como é vista pelo olhar desse
renomeado sociólogo catalão.
Três
processos históricos paralelos
Segundo Castells, três processos independentes começam
a se gestar no final dos anos sessenta e princípios dos setenta
e convergem hoje para a "gênese de um novo mundo".
Eles são: 1) a revolução das tecnologias da
informação; 2) a crise econômica tanto do capitalismo
quanto do estatismo e sua subsequente restruturação;
3) o florescimento de movimentos sociais e culturais - feminismo,
ambientalismo, defesa dos direitos humanos, das liberdades sexuais,
etc. O primeiro processo, a revolução das tecnologias
da informação, atua remodelando as bases materiais
da sociedade e induzindo a emergência do informacionalismo
como a base material de uma nova sociedade. Nesse sentido, ela tem
uma importância igual ou maior à da Revolução
Industrial. As tecnologias da informação tornam-se
as ferramentas indispensáveis na geração de
riqueza, no exercício do poder e na criação
de códigos culturais. Particular importância adquire,
no entanto, ao potencializar as redes - na verdade, muito velhas
formas de organização social - para se tornarem o
modo prevalecente de organização das atividades humanas
transformando, a partir de sua lógica, todos os domínios
da vida social e econômica.
O
outro processo, a crise dos modelos de desenvolvimento tanto do
capitalismo como do estatismo levou a ambos a se restruturarem a
partir de meados dos anos 70. O estatismo acabou mostrando sua inabilidade
para manejar sua transição para a Era da Informação,
enquanto, nas economias capitalistas, as firmas e os governos, adotaram
medidas e políticas que, em conjunto, levam a uma nova forma
de capitalismo caraterizado pela globalização das
atividades econômicas centrais, a flexibilidade organizacional
e um maior poder para o gerenciamento em suas relações
com o trabalho. Essa nova forma de capitalismo, o capitalismo
informacional acabou prevalecendo. A conseqüência
fundamental desse processo é que, pela primeira vez na história,
o mundo todo está organizado tendo como base um conjunto
de regras econômicas comuns. Trata-se de um capitalismo muito
mais duro em seus objetivos, porém, incomparavelmente mais
flexível que qualquer um de seus predecessores em seus meios.
"Informacional", então, porque mais do que nunca
está fixado na cultura e é propulsado por essa tecnologia.
Contudo,
Castells é explícito ao afirmar que "a tecnologia
não determina a sociedade." Muitos e múltiplos
fatores intervêm segundo um complexo padrão interativo
na configuração que ela toma em cada momento da história.
Daí a importância que tiveram, na conformação
da sociedade atual, os poderosos movimentos sociais que eclodiram
a partir de 1968. Eles reagiram de múltiplas formas contra
o uso arbitrário da autoridade, se revoltaram contra a injustiça
e procuravam a liberdade necessária para a experimentação
pessoal. Em essência, tratou-se de movimentos culturais e
não políticos e o que queriam era mudar a vida e não
tomar o poder. É por isso que, contrariamente ao que pode
se pensar, eles não foram derrotados. Eles se retiraram deixando
por trás uma alta produtividade histórica. Em sua
luta, questionaram as bases profundas da sociedade e rechaçaram
os valores estabelecidos. Levantaram-se contra o patriarcalismo
e marcaram a crise da família patriarcal e dos valores que
vinham organizando a sociedade durante séculos, rechaçaram
os tradicionalismos religiosos e os nacionalismos e, assim, prepararam
o cenário para uma ruptura fundamental na sociedade. No entanto,
embora esses movimentos sociais fossem em princípio culturais
e independentes das transformações econômicas
e tecnológicas, seu espírito libertário influenciou,
de forma considerável, a mudança para os usos individualizados
e descentralizados da tecnologia. Sua cultura aberta estimulou a
experimentação, com a manipulação de
símbolos e seu internacionalismo e cosmopolitismo estabeleceu
as bases intelectuais para um mundo interdependente.
A
interação desses três processos, paralelos mas
independentes, durante o último quarto do século XX
produz uma redefinição histórica das relações
de produção, de poder e de experiência (individual
e social) que acabaram produzindo uma nova sociedade. Essa nova
sociedade é caraterizada, então, por uma nova estrutura
social dominante: a sociedade rede, uma nova economia:
a economia informacional global e uma nova cultura:
a cultura da virtualidade real. Contudo, a caraterística
da sociedade rede não é o papel crucial do
conhecimento e da informação. Conhecimento e informação,
na verdade, foram centrais para todas a sociedades1.
O que é novo hoje, é o conjunto de tecnologias da
informação com as quais lidamos, centradas ao redor
das tecnologias da informação/comunicação
baseadas na microeletrônica e a engenharia genética
- tecnologias para agir sobre a informação e não
apenas a informação para agir sobre a tecnologia,
como no passado. Elas estão transformando o próprio
tecido social, permitindo a formação de novas formas
de organização e interação social através
das redes de informação eletrônicas.
O
Paradigma Tecnológico Informacional e a Cultura da Virtualidade
Real
É
assim que, de acordo com Castells, temos entrado em um novo paradigma
tecnológico, no sentido dado por Thomas Kuhn às revoluções
científicas, isto é um intervalo que induz um padrão
de descontinuidade nas bases materiais da economia, da sociedade
e da cultura. As principais caraterísticas do paradigma
tecnológico informacional são: 1) a informação
é a matéria prima fundamental; 2) a penetrabilidade
dos efeitos das novas tecnologias: o processamento de informação
torna-se presente em todos os domínios de nosso sistema eco-social
e, por isso, o transforma; 3) a lógica de redes, lógica
bem adaptada à crescente complexidade das interações
e a modos imprevisíveis de desenvolvimento; 4) a flexibilidade,
entendida como a capacidade de reconfiguração constante
sem destruir a organização - porém, essa flexibilidade
pode ser tanto uma força libertadora quanto se tornar uma
tendência repressiva, salienta o autor -; 5) a convergência
de tecnologias específicas num sistema altamente integrado.
Pela primeira vez na história, diz Castells, a mente humana
é uma força produtiva direta e não apenas um
elemento decisivo do sistema de produção.
Sob
o paradigma informacional, emerge uma nova cultura onde as expressões
e a criatividade humanas são padronizadas e (hiper) ligadas
em um hipertexto eletrônico global que modifica substancialmente
as formas sociais de espaço e tempo: do espaço dos
lugares ao espaço dos fluxos, do tempo marcado pelo relógio
ao "tempo intemporal" das redes. Esse hipertexto eletrônico,
sintetizado pela Internet2,
torna-se o marco de referência comum para o processamento
simbólico de todas as fontes e de todas a mensagens. É
por isso que esse hipertexto constitui a coluna vertebral da nova
cultura, a cultura da virtualidade real, na qual a virtualidade
torna-se o componente fundamental de nosso ambiente simbólico
e, por isso também, da nossa experiência como seres
comunicacionais. A virtualidade é nossa realidade, afirma
Castells, porque vivemos em um sistema no qual a própria
realidade (a existência material/simbólica das pessoas)
está totalmente imersa num ambiente de imagem virtual, num
mundo simulado no qual os símbolos não são
apenas metáforas mas incluem a experiência real. Nesse
ambiente, os valores dominantes e os interesses são construídos
sem referência ao passado ou ao futuro, mas na intemporal
paisagem das redes de computadores e dos mídia eletrônicos.
A
Sociedade rede e os Movimentos Sociais3
As
redes são para Castells mais do que uma nova metáfora
que superaria as mecanicista e organicista, nas quais a sociologia
se baseou historicamente. As redes interativas de informação
tornaram-se tanto os componentes da estrutura social quanto os agentes
da transformação social: são a morfologia social
de nossas sociedades. Por isso, para o autor, é justificado
falar em sociedade rede nomeando assim a nova estrutura social
dominante. Embora as redes tenham existido sempre como forma de
organização social, com as vantagens de ter maior
flexibilidade e adaptabilidade que outras formas, elas tinham um
problema inerente: a incapacidade de administrar a complexidade
parr além de um certo tamanho crítico. Essa limitação
substancial foi superada com o desenvolvimento das tecnologias da
informação. É por isso que a flexibilidade
pode ser alcançada sem sacrificar a performance e é
por isso também que, por sua capacidade superior de desempenho,
as redes vão gradualmente eliminando, em cada área
específica de atividade, as formas de organização
hierárquicas e centralizadas. Existem, por isso também,
redes baseadas em valores alternativos aos dominantes, embora sua
morfologia seja similar. É assim que os conflitos sociais
acabam tomando a forma de lutas baseadas em redes que tentam reprogramar
outras redes, inscrevendo assim novos códigos (por exemplo,
novos valores) entre os objetivos que organizam a atuação
das redes opostas. Dessa forma a luta principal na era da informação
passou a ser a luta pela redefinição dos códigos
culturais, e esses códigos, em última instância,
residem na mente humana. A mente humana tornou-se, assim, o principal
local do poder.
No
entanto, a mudança social na sociedade rede é
uma tarefa bem complicada devido a grande capacidade das redes de
absorver qualquer novo insumo para acrescentar à própria
rede e/ou para neutralizá-lo. É por isso que existem
poucas possibilidades de mudança social dentro de uma rede
dada. As possibilidades de transformação vêm
normalmente de fora, seja através da negação
de sua lógica pela afirmação de valores que
não podem ser processados por rede nenhuma: apenas ser obedecidos
e seguidos, seja por redes alternativas com projetos alternativos
que consigam dar comunicabilidade a códigos para além
de sua autodefinição específica. Neste contexto,
onde os partidos políticos parecem ter esgotado seu potencial
como agentes autônomos da mudança social, os sujeitos
potenciais da Era da Informação são os movimentos
sociais, e o serão na prática se conseguirem ser produtores
e distribuidores de códigos culturais alternativos. Para
isso, segundo Castells, eles têm que se posicionar como mobilizadores
de símbolos e atuar sobre a cultura da virtualidade real
que emoldura a comunicação na sociedade rede.
Identidade
e Fundamentalismo
Entretanto,
ao mesmo tempo que esses "embriões de uma nova sociedade",
os movimentos sociais, conseguem desenvolver suas potencialidades,
uma distância social infinita vai se estabelecendo entre,
por um lado, as metaredes do sistema financeiro internacional e
os fluxos globais de riqueza, poder e imagens e, por outro, a maioria
das pessoas, as atividades e os locais do mundo. A globalização
está se tornando um grande movimento de conexão de
tudo o que vale para a razão instrumental do mercado e, ao
mesmo tempo, de desconexão de tudo o que não vale
para essa razão. Nesse cenário, as pessoas tendem
a se reagrupar em torno de identidades primárias (religiosas,
étnicas, territoriais, nacionais), e o fazem a procura de
segurança pessoal e de sentidos para (re) organizar suas
vidas. Assim, aparece a contraposição bipolar entre
a Rede e o Ser e, em oposição à sociedade
rede, se torna manifesto o poder da identidade. O enorme
poder que tem a identidade, se expressa tanto no nascimento de alternativas
ao sistema por via de movimentos sociais articulados a partir de
identidades específicas, quanto na formação
de grupos que ficam encerrados em si mesmos e na auto-afirmação
de valores e sentidos definidos como forma de proteção
diante de um sistema que os exclui. É por isso, afirmava
Castells em meados dos anos noventa, que o surgimento de fundamentalismos
religiosos não é casual nesse contexto. Parece responder
a uma lógica de excluir os agentes da exclusão. "Quando
a Rede desliga ao Ser, o Ser, individual ou coletivo, constrói
seu significado sem a referência instrumental global: o processo
de desconexão torna-se recíproco após a recusa,
pelos excluídos, da lógica unilateral de dominação
estrutural e exclusão social."
Osvaldo
López Ruiz é sociólogo, professor na Universidade
Nacional de Cuyo, Argentina e doutorando em Ciências Sociais
pela Universidade Estadual de Campinas.
Notas:
- Nesse
sentido, Castells sugere que deveríamos abandonar a noção
"sociedade da informação", noção
que ele mesmo reconhece ter usado erroneamente (Castells 2000a:
10). [voltar]
-
As alusões à Intenet e, principalmente, à
engenharia genética cobram maior presença nos
artigos posteriores à aparição da primeira
edição da Era da Informação (1996-1998).
Vale a pena salientar que no ano 2000 foi publicada em inglês
uma segunda edição atualizada. Segundo me informara
a editora Paz e Terra, responsável pela edição
brasileira, essa edição atualizada corresponderá
à sexta edição em português a sair
proximamente. [voltar]
- A
meu ver, a tradução de network society para o
português como "sociedade em rede" é
inapropriada e pode induzir a erros conceituais. Mas isto é
matéria para uma discussão na qual não
podemos entrar - como em tantas outras - no espaço desta
resenha. [voltar]
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