Percepção
pública da ciência e desenvolvimento científico
local1
Carmelo Polino
tradução: Sabine Righetti
A tradição
de pesquisa científica nos países latino-americanos
se remete, por assim dizer, a décadas em que intelectuais
e políticos comprometidos com o destino dos países
estavam convencidos de que a ciência seria um fator de coesão
social que levaria as grandes massas ao progresso e ao desenvolvimento
das nações. É inegável que aquele ideal
de esperança do século XIX nunca terminou de se modelar.
Os repetidos golpes de estado - com as incertezas e regressos conseqüentes
- e as péssimas políticas econômicas e de desenvolvimento
social que tornaram opaca a vida cultural e política, frustraram
o grande projeto da ciência moderna a serviço do destino
nacional. Mas o fracasso da utopia também pode se explicar
devido ao fato de que a sociedade não foi capaz de articular
os laboratórios das universidades com as oficinas e as fábricas,
o ensino com valorização do conhecimento, a ciência
e a política de estado com a resolução dos
problemas sociais profundos.
Trata-se,
pois, de um obstáculo histórico de longa data em matéria
de política econômica, educativa e científica,
mas, também, de um problema de percepção social
da ciência. Não é por acaso que atualmente nas
sociedades da América Latina - e, por certo, também
na Espanha e Portugal - flutue no ambiente a idéia errônea
- mas fixa - de que a ciência e a tecnologia são luxos
que podem se permitir os países desenvolvidos; na América
Latina, entretanto, introduzimos o conhecimento do exterior. A conseqüência
desta imagem valorativa é perigosa posto que, por um lado,
alimenta o pessimismo social enquanto a capacidade - e a conveniência
- do desenvolvimento científico local mas, mais alarmante
ainda, legitima a idéia de que o país deve se acostumar
a que não existem caminhos alternativos possíveis
a respeito.
Poderiam
se usar dois indicadores de ciência e tecnologia disponíveis
para demonstrar que este raciocínio está pelo menos
desajustado - se bem, como costuma ocorrer, leva uma cota de verdade.
Desde meados dos anos 50, se desenharam políticas científicas,
em certas ocasiões com planos e programas de reconhecido
êxito. Também existem grupos de pesquisa de relevância
internacional, com uma vasta tradição disciplinar,
assim como empresários que, com as limitações
que os rodeiam, se esforçaram por se adequar às exigências
da internacionalização da economia e da inovação.
Todavia, o divórcio entre ciência e sociedade tem manifestações
concretas. Em geral, a sociedade não espera que a ciência
solucione seus problemas mais imediatos.
O dado
do investimento em pesquisa e desenvolvimento nos países
da América Latina e no Caribe para o ano 2000 é eloqüente:
representava 0,54% do PIB regional2.
Mas, por outro lado, ainda quando a massa de recursos financeiros
foi adequada e se chegasse ao desejado 1% de investimento do PIB,
a comunidade científica estaria preparada ou orientada para
solucionar os problemas de desenvolvimento e finalizar o mandato
da modernidade? Este é um debate aberto e com muitas frentes
em disputa. Em um informe recente, Albornoz Señala:
"Existe
um paradoxo no fato de que os países da América
Latina e Caribe, num contexto de crise econômica e social,
apareçam como fortemente inclinados até o extremo
mais básico e teórico da investigação
científica. Isto contrasta com a realidade de países
como os Estados Unidos, onde o desenvolvimento experimental constitui
61% da P&D, situação que se repete em outros
países mais desenvolvidos da OCDE3."
Neste
cenário complexo, devem circunscrever-se os temas relativos
à cultura científica da sociedade, seus alcances e
limitações, questão que excede - e não
está, por assim dizer- a mera busca por aumentar a alfabetização
científica entre os indivíduos. Por certo, a percepção
pública da ciência, as imagens que a sociedade projeta
da atividade científica local não se ajustam às
pretensões de objetividade do dado estatístico. Trata-se,
sem dúvida, de fenômenos qualitativos de tratamento
difícil, com conexões múltiplas que, por baixo,
se tornam mais complexas na medida em que existe consciência
crescente de que a sociedade deve se envolver na definição
da trajetória da ciência e da tecnologia. Em outros
termos, que se deve fomentar a participação cidadã
para a verdadeira democratização do conhecimento,
ainda que não se saiba muito bem quais são as condições
e de que forma se poderia levar isso à prática de
forma efetiva.
Para
nós que estamos preocupados em estabelecer laços entre
ciência e sociedade que revertam parte dessas idéias
dominantes, os temas que envolvem a percepção pública
da ciência, a cultura científica e a participação
cidadã em ciência e tecnologia adquirem uma relevância
singular.
Pesquisa
de percepção pública da ciência da RICYT
e da OEI
Uma forma de abordar este assunto é através da obtenção
de indicadores que reflitam o conhecimento, as atitudes e opiniões
dos cidadãos sobre ciência e tecnologia. Os Estados
Unidos, através da National Science Foundation (NSF),
foi o país pioneiro em gerar indicadores desse tipo e incorporá-los
a seu manual estatístico desde 1972. Logo se somaram os países
da União Européia (com o Eurobarômetro). Nos
países da região, a preocupação é
mais recente e está em seu começo, ainda que Brasil
conte com uma pesquisa nacional de 1987, realizada pelo Ministério
da Ciência e Tecnologia, assim como Colômbia (1994),
Espanha (2002), México (1998 e 2001) e Panamá (2001)4.
As
pesquisas internacionais incluem perguntas comuns que, aplicadas
em diferentes países, permitem a comparação
internacional, característica básica que se deve contemplar
o desenvolvimento dos indicadores. Todavia, a natureza do objeto
"percepção" e "cultura científica"
faz com que perguntas que podem ser válidas nos Estados Unidos
ou em alguns países da Europa não se ajustem às
realidades - institucionais ou sociais - dos países ibero-americanos.
Entende-se, como acreditamos, que a ciência, se bem que com
leis que têm mostrado validade universal, se realiza, projeta
e impacta em sociedades de indivíduos com características
distintas, então se adverte a pertinência de um enfoque
particular sobre as sociedades locais, já que esta mesma
sociedade modifica, se apropria, molda, utiliza discute ou refuta
a ciência segundo suas crenças, normas, valores, normas
de comportamento e, também, sua estrutura econômico-produtiva.
Conscientes
da importância de atender estas questões e ampliar
o terreno dos indicadores captando as especificidades regionais,
e garantindo a comparação internacional, a Rede Ibero-americana
de Indicadores de Ciência e Tecnologia (RYCYT/CYTED) e a Organização
de Estados Ibero-americanos (OEI) ampliaram ao fim de 2002 e princípio
de 2003 uma pesquisa piloto em quatro países da região:
Argentina, Brasil, Espanha e Uruguai5.
A pesquisa
não guarda critérios de representação
estatística senão, fundamentalmente, de consistência
para a análise dos indicadores. Neste sentido, o objetivo
da pesquisa era avançar a ponto de chegar a uma metodologia
que permita compreender o papel que ocupa a atividade científica
no imaginário, as práticas, os símbolos e as
instituições das sociedades dos países da região,
integrando diferentes metodologias (Eurobarômetro, National
Science Foundation etc) e desenvolvendo, ao mesmo tempo, uma visão
própria sobre a medição desses processos. Esse
estudo faz parte de um projeto mais amplo, sobre desenvolvimento
de indicadores de ciência e tecnologia de caráter ibero-americano
impulsionado pela RICYT e pela OEI.
Alguns
resultados: percepção de ciência e de tecnologia
local
A pesquisa aborda três eixos mais ou menos explícitos,
porém entrelaçados: imaginário social, comunicação
de ciência e participação cidadã. Neste
breve artigo6 se apresentaram
unicamente alguns dados sobre o imaginário das pessoas sobre
ciência na sociedade em que vivem7.
Uma
primeira pergunta explorou a valorização do público
a respeito da trajetória da ciência no âmbito
do seu desenvolvimento.
Nos
quatro países a imagem do desenvolvimento científico-tecnológico
local o que predomina é que existe "um pouco de ciência
e tecnologia em algumas áreas (temáticas)." Nos
casos da Argentina, Brasil e Espanha, esta categoria oscila entre
55% e 64% do total. No Uruguai, a orientação é,
entretanto, mais notória (80%). Assim mesmo, é marginal
à porcentagem de quem afirma que a ciência e a tecnologia
locais estão "muito desenvolvidas", ainda que no
Brasil, esta idéia tenha uma adesão marcadamente superior.
Também em todos os casos são muito poucos os que pensam
que "não existe" desenvolvimento científico
local (3% na média).
Também
se perguntou sobre a valorização que se faz do financiamento
estatal em ciência e tecnologia (Gráfico 2)
Os
resultados são claros na mesma direção: a imagem
que predomina é a de que o estado financia a pesquisa de
forma insuficiente em todos os países. Na Argentina, Espanha
e Uruguai, a estimativa alcança 87% das respostas. Todavia,
o Brasil apresenta novamente um comportamento diferente, na medida
em que uma porcentagem marcadamente superior (27,8%) ao resto dos
países opina que o estado financia de maneira "razoavelmente
suficiente" a investigação nesse país.
A insuficiência
do financiamento estatal é também considerada quase
unanimemente a causa pela qual "não há desenvolvimento
científico e tecnológico" local (Gráfico
3).
Com
efeito, 82% da mostra na Argentina, 63,3% no Brasil e 78,9% na Espanha
apontam que o "pouco apoio estatal" é o principal
fator que limita o desenvolvimento nessas áreas, descartando
a responsabilidade dos empresários (ainda que esta categoria
no Brasil, apesar de ser baixa, tem uma incidência consideravelmente
superior ao que ocorre nos outros países), o desinteresse
da população em geral e, com maior destaque, a inexistência
de bons cientistas - somente apontam esta causa uma média
de 1,5% dos casos.
Assim
mesmo, os entrevistados foram consultados a respeito de sua percepção
sobre a utilidade dos resultados da atividade científica
e tecnológica nacional (Gráfico 4).
Observa-se nos resultados um notável interesse do ponto de
vista da política científica. A opinião predominante
nos países reconhece a utilidade da pesquisa científica
local. Praticamente nenhum entrevistado considera que a ciência
local produz conhecimento que logo se aplica. Entretanto, as respostas
no caso do Brasil seguem uma trajetória oposta ao resto dos
países. No Uruguai (66%), Argentina (59,4%) e, em menor medida,
Espanha (43,2%), os entrevistados destacam a carência de difusão
dos resultados das práticas científicas; não
obstante, a maioria dos brasileiros enfatiza, como um risco positivo
do sistema científico desse país, a aplicação
prática do conhecimento (54,9%). Esta opinião sobre
a ausência de canais de difusão adquire relevância
em dois níveis: por um lado, desde o ponto de vista da difusão
de tecnologias, como no mecanismo de vinculação entre
o setor científico e o tecido empresarial e produtivo. Por
outra parte, a difusão de conhecimento, no que compete as
ações de divulgação científica
para o público em geral.
Palavras
finais
A necessidade de continuar o caminho empreendido pela RICYT e a
OEI se manifestou na "Primeira Oficina de Indicadores de Percepção
Pública, Cultura Científica e Participação
Cidadã", organizada de forma conjunta pela RICYT, a
OEI e a Universidade de Salamanca (Espanha), e levado a cabo em
Salamanca ao fim de maio de 2003, da qual participaram representantes
acadêmicos e políticos de vários países
da região. Naquela oportunidade, se incitou a RYCT e a OEI
a continuarem o desenvolvimento de uma metodologia que permita a
obtenção de indicadores de percepção
pública aplicáveis aos países da região
e, ao mesmo tempo, gerar novos estudos empíricos e qualitativos
que contribuam para a análise e a compreensão da cultura
científica na dinâmica social.
Começa
a se compreender que a cultura científica não deve
ser interpretada unicamente enfatizando o conhecimento dos instrumentos,
metodologia e bagagem cognitiva que a ciência injeta na cultura
geral, mas sim, fundamentalmente, na capacidade que a sociedade
tem de incorporar a atividade científica na agenda dos temas
sociais, e na medida em que a mesma seja funcional aos objetivos
da sociedade. Dito de outro modo, em uma correta articulação
que resgate os melhores valores intrínsecos de uma modernidade
que, por sorte, nossos países se negam a perder.
Carmelo
Polino é do Centro de Estudos sobre Ciência, Desenvolvimento
e Educação Superior, Buenos Aires, Argetina: cpolino@ricyt.edu.ar
Notas:
1.
O conteúdo do presente artigo faz parte de um trabalho mais amplo
preparado para o encontro internacional "Cambio tecnológico, Innovación
y Desarrollo Social", Mdellín (Colômbia), 21 e 22 de agosto de 2003.
2. Mario Albornoz (2002). "Situação
da ciência e da tecnologia nas Américas", documento de trabalho
nº 3, Centro REDES, Buenos Aires, Argentina, novembro. Disponível
em www.cetroredes.org.ar. O Informe destaca que "quando se analisa
o panorama de cada país, considerando individualmente, se coloca
em evidência que as situações são muito diferentes entre cada um
deles. Em 2000, a investimento médio em P&D era amplamente superada
pelo Brasil, que alcançava 0,87% do seu PIB. Chile mostrava um valor
similar ao da média (0,54%) e o resto não alcançava a média regional.
3. Mario Albornoz (op. cit.)
4. Na Argentina, Cuba, Uruguai e outros
países existem pesquisas delimitadas e estudos qualitativos.
5. Para a Argentina foi estimada uma
mostra correspondente a 300 casos. A mostra se realizou por cotas
de acordo com a idade, sexo e nível educacional, a partir das características
populacionais do universo estudado. Foi contemplado, assim mesmo,
um nível sócio-econômico médio. Esta mostra guarda diferenças com
as de outros países. O Brasil, por sua vez, corresponde a 162 dos
casos. A metade da mostra deste país está composta por pessoas com
formação superior completa e inclui também 7,4% de pós-graduados.
Na Espanha e Uruguai as mostras correspondem a 150 casos para cada
pesquisa. A mostra da Espanha está concentrada basicamente no grupo
de jovens compreendidos entre 18 e 30 anos com nível de formação
superior - completo e incompleto. A mostra do Uruguai tem uma composição
similar a da Argentina enquanto a variável grupos de idade, observa
uma tendência mais acentuada ao número de universitários - com formação
completa e incompleta. Os investigadores que coordenaram a pesquisa
em cada país foram: Argentina, Leonardo Vaccarezza (grupo REDES);
Brasil, Carlos Vogt (Fapesp); Espanha, Miguel Angel Quintanilla
(Universidade de Salamanca); e Uruguai, Rodrigo Arocena (Universidade
da República).
6. O informe com os resultados da pesquisa
está disponível em www.centroredes.org.ar
7. Por imaginário social se entende
o conjunto de imagens, expectativas e valores sobre ciência e tecnologia
como instituição, como instrumento de ação, como fonte do saber
e a verdade e como grupo humano ou social com uma função específica.
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