O
fogo cruzado do jornalismo de ciência
Maurício
Tuffani
Os
jornalistas da área de ciência são freqüentemente
convidados a explicar como se faz divulgação científica
para um público não especializado. Às várias
respostas que já foram dadas a esse tipo de pergunta, acrescento
mais uma: assim como em todas as áreas do jornalismo, a atividade
do profissional de imprensa que cobre ciência pressupõe
um fogo cruzado cujos "disparos" partem de três
direções: do leitor, das fontes e do próprio
veículo de comunicação.
Os
disparos do leitor das matérias jornalísticas de ciência
não partem necessariamente de indivíduos de carne
e osso, mas de um tipo de ser muito peculiar. Trata-se de uma entidade
fictícia, o chamado "leitor médio". Mesmo
que as pesquisas sobre seu perfil indiquem que ele já concluiu
o ensino médio e esteja cursando ou tenha terminado um curso
superior, grande parte dos jornalistas insiste em considerá-lo
como alguém que só sabe ler e escrever e, portanto,
seria incapaz de compreender qualquer matéria que não
tenha sido elaborada sob o mais severo didatismo. Isso implica que
as reportagens sobre temas científicos precisam ser devidamente
contextualizadas com infográficos, matérias explicativas,
cronologias e até mesmo com glossários.
Por
mais que pareça um exagero - e de fato é -, essa atitude
editorial tem colaborado para atrair a atenção de
leitores que em princípio não se interessariam por
muitos temas científicos. Em todo o mundo, esse esforço
pelo didatismo tem proporcionado resultados positivos para a divulgação
científica e também para os veículos de comunicação.
Para que escapem dos disparos do implacável "leitor
médio" que anseia pelo didatismo, os jornalistas que
cobrem ciência não têm outra saída senão
a especialização. Essa, aliás, é a tendência
atual dos profissionais que atuam em quase todas as áreas
do jornalismo. E é a especialização o ponto
que nos leva ao segundo foco dos disparos do fogo cruzado em que
trabalham repórteres e editores de C&T.
Além
de outras publicações, as principais fontes de informação
dos repórteres de ciência são pesquisadores,
professores e outros profissionais de áreas técnicas,
assim como as instituições em que eles trabalham -
universidades, centros de pesquisa, hospitais, empresas privadas
e ONGs - e também órgãos governamentais, inclusive
as agências de apoio à pesquisa.
Até
poucos anos atrás, muitos dos disparos que vinham das fontes
acadêmicas tinham um significado bem específico para
os jornalistas: "não se aproximem". Era muito comum
ver pesquisadores com receio de dar entrevistas, e isso tinha como
causas principais a insegurança com a capacidade de os repórteres
compreenderem e depois explicarem o tema da entrevista solicitada
- muitas vezes reforçada por exemplos de reportagens desastrosas
-, o despreparo dos pesquisadores e de suas instituições
para o relacionamento com a mídia e até mesmo o comodismo
desses profissionais e de suas entidades, que conseguiam viver sem
preocupação com a visibilidade pública de seu
trabalho.
Nos últimos anos, esse quadro mudou, e o tipo de disparos
também. Quase não há mais "rajadas de
barreira defensiva" vindas das fontes de informação
para os jornalistas de ciência. Como as instituições
de pesquisa e ensino vivem hoje uma restrição orçamentária
sem precedentes, elas estão em uma constante busca de recursos,
que é uma atividade mais fácil quando se tem grande
visibilidade pública. E, para isso, o contato com a imprensa
torna-se conveniente.
Os
anos 1990 assistiram a um rápido crescimento de equipes de
comunicação a serviço de instituições
de pesquisa, assim como dos cursos especializados em divulgação
científica em diversos níveis. A comunidade acadêmica
passou a se preocupar cada vez mais com a qualidade da "tradução"
que jornalistas "sem formação em ciência"
oferecem dos "complexos conteúdos" da produção
científica contemporânea, como bem ressaltou Mônica
Teixeira em seu artigo "Pressupostos do Jornalismo de Ciência
no Brasil".1 Tamanha
foi essa mobilização que atualmente ela é reproduzida
pelos próprios jornalistas em cursos universitários
e em eventos relacionados à divulgação científica.
O lado
positivo dessa preocupação por parte da comunidade
científica está nos esforços que ela tem feito
para fazer com que profissionais de imprensa estejam mais familiarizados
com a linguagem e os métodos da ciência. É preciso
reconhecer também que essa mobilização tem
feito não só com que os órgãos de pesquisa
estejam cada vez mais bem assessorados por profissionais de comunicação
no seu relacionamento com a mídia, como também tem
colaborado para o crescente número de pesquisadores preparados
para o contato com a imprensa.
O lado
negativo desse esforço da comunidade científica -
no que se refere aos princípios do jornalismo - está
na pressuposição de que à imprensa cabe um
papel passivo na divulgação científica. Reproduzo
aqui as palavras irretocáveis de Mônica Teixeira: "Importa,
para a aferição da qualidade do que escreve o jornalista
(jornalista de televisão também escreve), estar o
texto ou não de acordo com o que reza a ciência, concretizada
na conclusão do artigo científico mais recente".2
As
conseqüências desse critério acadêmico de
aferição têm sido as mais variadas, inclusive
submeter o texto final à fonte para aprovação.
Dessa forma, as fontes das reportagens de ciência teriam um
status diferenciado daquelas das outras áreas do jornalismo,
como política, economia e polícia, por exemplo. No
entanto, nenhum repórter que preza a profissão submeteria
seu texto à anuência prévia do parlamentar,
ministro ou delegado de polícia que teria entrevistado. E
mesmo que o fizesse, só conseguiria publicar alguma coisa
se tivesse consultado uma única fonte ou várias fontes
com a mesma visão sobre o tema da reportagem, o que também
fere os princípios do bom jornalismo.
Essas
considerações levam a outro problema do relacionamento
da comunidade científica com a imprensa: em grande parte
do noticiário de ciência, não existe o contraditório.
Embora os pesquisadores tenham a obrigação de citar
em seus trabalhos científicos os estudos com conclusões
até mesmo antagônicas às suas, as reportagens
sobre suas pesquisas não mostram que existem outras visões
sobre o mesmo assunto. A informação que geralmente
chega ao leitor é mostrada como uma verdade absoluta, e o
papel do jornalista acaba não sendo muito diferente daquele
que seria de um assessor de imprensa do pesquisador que deu a entrevista.
A comparação
com personagens do noticiário de outras áreas do jornalismo
pode, para muitos pesquisadores, parecer injusta e até ofensiva,
principalmente tendo em vista que são muitas as atividades
de pesquisa que só têm continuado graças à
persistência e à abnegação de suas equipes.
No entanto, existem conflitos e disputas acirradas entre grupos
de pesquisa, principalmente quando estão envolvidos recursos
financeiros. O próprio sistema de avaliação
de projetos de estudos por pares, o chamado peer review, vem sendo
constantemente alvo de acusações de perseguição
e de favorecimento. Além disso, é crescente o número
de publicações que têm exigido dos autores de
trabalhos científicos que se manifestem formalmente se têm
ou não algum vínculo financeiro ou de outro tipo que
possa caracterizar conflito de interesse e, portanto, possa influir
nas conclusões de sua pesquisa.
Sendo
assim, o bom jornalista de ciência precisa trabalhar com o
contraditório, assim como seus colegas que cobrem política,
economia, polícia e outras áreas. Ele precisa ser
capaz de compreender que pode haver uma pauta muito mais importante
para o leitor do que aquela proposta por uma instituição
de pesquisa que o convida para conhecer um laboratório ou
para viajar a um posto avançado. Ele precisa, como quer a
comunidade científica, ter familiaridade com a linguagem
e os métodos da ciência, mas acima de tudo precisa
ter uma atitude crítica com relação às
suas fontes.
O Programa
Antártico Brasileiro é um exemplo dessa necessidade
de um posicionamento crítico. Após 20 anos de existência
e de dezenas de reportagens feitas por jornalistas que viajaram
à Base Comandante Ferraz convidados pelo governo, somente
em janeiro de 2002 a chamada grande imprensa mostrou o que estava
acontecendo havia alguns anos. Foi quando o jornalista Cláudio
Ângelo, da Folha de S. Paulo, após uma viagem
à Antártida, escreveu que o Proantar padecia da falta
de objetivos científicos claros; que mais de 30 projetos
disputavam a verba anual de R$ 1 milhão do CNPq sem definição
de prioridades; que pesquisadores haviam chegado à base e
foram surpreendidos por outros cientistas que já haviam realizado
estudos semelhantes e com uma metodologia considerada melhor.3
Em
1996, emissoras de televisão mandaram equipes de reportagem
ao Vale do Ribeira, no estado de São Paulo, para mostrar
uma cena bucólica: vários papagaios-de-peito-roxo
(Amazona vinacea) - uma espécie em extinção
- sobreviviam na área de uma pedreira às margens da
Rodovia Régis Bittencourt. Um pouco mais de espírito
crítico teria levado os repórteres a mostrar que estava
sendo autorizada a duplicação dessa rodovia em um
trecho cuja escolha tinha sido alvo de pesadas críticas por
parte de pesquisadores do governo - um deles chegou a ser demitido
após não ter dado parecer favorável à
escolha dessa área - e que a própria pedreira estava
prestes a retomar suas atividades, inclusive as detonações
de explosivos. E tudo isso estava acontecendo na área de
uma unidade de conservação, o Parque Estadual de Jacupiranga.
Esse caso ilustra não só o prejuízo decorrente
de sucumbir sem nenhum espírito crítico à orientação
de uma pauta de ciência proposta por um órgão
técnico, mas também o efeito do terceiro foco de disparos
do fogo cruzado em questão, que é o próprio
veículo de comunicação.
É
impressionante o papel que cabe ao noticiário de ciência
na cabeça de jornalistas que não cobrem essa área
e dos tomadores de decisão em empresas de comunicação.
Para muitos deles, as reportagens de ciência precisam ser
bonitas, agradáveis, instrutivas e só. É como
se os assuntos de ciência, tecnologia, saúde e meio
ambiente não comportassem polêmicas. Jornalismo investigativo
em ciência, nem pensar. É como se em vez de vez de
lidar com diferentes versões, o jornalista de ciência
fosse um mero comunicador, que se resume a reunir diferentes fatos
em um formato mais agradável.4
É como se às reportagens de ciência coubesse
o papel de sobremesa no cardápio indigesto do noticiário
em geral.
Em
vez de terem na figura do leitor médio uma baliza para o
esforço constante e muitas vezes até utópico
em busca do didatismo, os veículos de comunicação
estão cada vez mais propensos a utilizá-lo como critério
do que deve ou não deve ser notícia. Como já
havia dito em outra oportunidade, na cabeça de muitos editores,
é o cidadão que foge de temas complicados, que nem
sequer se dá conta da freqüente omissão da imprensa
em buscar o contraditório.5
É o mesmo "homem de massa" que só sabe compreender
uma visão única e simplista de realidade, mostrado
pelo filósofo espanhol José Ortega y Gasset em sua
obra "A Rebelião das Massas", de 1929.
Na
verdade, muitos dos veículos de comunicação
repassam aos seus jornalistas a pressão que recebem do mercado
publicitário. No caso do noticiário de ciência,
e, de uma forma muito mais intensa, das publicações
que trabalham especificamente com ciência, eles repassam a
idéia dominante nos meios publicitários, sem base
em nenhuma pesquisa que mereça esse nome: a idéia
de que o leitor de ciência é o nerd, um sujeito
que vive alienado do mundo, que não segue a moda e, acima
de tudo não é um consumidor.
Em
seu livro Mudança estrutural da esfera pública,
de 1965, o filósofo alemão Jurgen Habermas descreveu
o surgimento da indústria da comunicação, a
partir da crise econômica de 1929 como a invasão de
forma dissimulada dos interesses publicitários nas informações
de interesse público. Hoje, muitos jornalistas já
"vestiram a camisa" dessa mudança estrutural.
Com
maior ou menor intensidade em cada um dos três focos de disparos
de acordo com cada veículo de comunicação,
é esse o fogo cruzado em que se produz atualmente o noticiário
de ciência.
Notas:
1.
TEIXEIRA, Mônica - "Pressupostos do Jornalismo de Ciência
no Brasil". in MASSARANI, L. ET AL (orgs.) Ciência
e Público: Caminhos da divulgação científica
no Brasil. Casa da Ciência, Universidade Federal do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro. 2002. pp. 133-141
2. Idem, pág. 133.
3. ÂNGELO, Cláudio - "Brasil cria plano
para a Antártida". São Paulo. Folha de S. Paulo. 14/01/2002.
pág. A-12.
4.MARCONDES FILHO, Ciro - A saga
dos cães perdidos. São Paulo. Hacker Editores. 2000. p. 66.
5.TUFFANI, Maurício - Divulgação
científica e educação. Comunicação apresentada no 1º Congresso
Internacional de Divulgação Científica: "Ética e divulgação científica:
os desafios do novo milênio". São Paulo. Unesco e Universidade de
São Paulo. 28 de agosto de 2002.
Maurício
Tuffani é editor-chefe da revista Galileu.
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