Resistência
à tecnologia pode ter fundo político
Pode
parecer folclórico para alguns mas, em um mundo cada vez
mais dominado pela ciência e pela tecnologia, cresce o número
de pessoas que evitam ou mesmo restringem completamente o uso de
certos objetos tecnológicos. Nesse pacote de restrições
podem estar desde os computadores, os telefones celulares e a televisão
- imediatamente associados à tecnologia - até os alimentos
industrializados e até mesmo o automóvel. Os motivos
para o boicote são, em geral, diversos, mas, em todos os
casos, parece haver um fundo político para isso, significando
um posicionamento com relação ao que essas tecnologias
representam.
Esses
"resistentes" não necessariamente são "tecnófobos"
- classificação dada pelos psicólogos aos indivíduos
que tem dificuldade em adequar-se às novas tecnologias -
muitos, ao contrário, trabalham ou já trabalharam
em áreas que utilizam alta tecnologia. É o caso do
engenheiro Clemm Noernberg, dono da empresa de tecnologia Areias
System, na Califórnia, que não tem nenhum aparelho
de televisão em casa. Noernberg classica a si mesmo como
um bom conhecedor de tecnologia e diz acreditar que ela melhora
a vida das pessoas, citando como exemplo os progressos da medicina.
Ele conta que, antes de se casarem, nem ele nem sua esposa eram
donos de aparelhos de televisão, pois moravam com pessoas
que tinham TV. Ao se casarem, em setembro de 1992, decidiram tentar
viver sem a TV, e conseguiram.
"Eu
acredito que não ter uma TV fez minha vida ser muito mais
completa. Somado ao fato de que gasto 15 minutos para ir à
pé ao trabalho, eu tenho muito mais tempo para gastar com
a minha família, casa e atividades físicas",
afirma Noernberg. Ele conta que tem em sua casa uma horta e um pomar
e que boa parte da comida que ele, sua esposa e suas duas filhas
comem é colhida no próprio quintal. Para informar-se,
Noernberg prefere as fontes escritas, que compensam o maior tempo
gasto por ele com uma abordagem mais aprofundada. "Além
do mais, boa parte dessa 'informação' não afeta
a minha vida. O que mais eu perco? Todos aqueles programas sem-cérebro
feitos só para capturar minha atenção?",
questiona. "Recomendo a todos não ter uma TV em casa",
completa.
O que
Noenberg apenas evita - os alimentos industrializados - é
a restrição colocada pela psicóloga Sueli Souza
de Nuccio. Ela, desde 1983, não se alimenta com comidas processadas,
refinadas ou enlatadas, além de não consumir nenhum
tipo de carne. "Isso começou quando passei a questionar
a minha qualidade de vida e a me identificar mais com algumas coisas
e menos com outras", diz. Suas restrições aos
alimentos estão relacionadas à manutenção
de sua saúde e a preocupações ambientais. "Não
como carnes porque não gosto da violência imposta aos
animais. Evito os produtos industrializados porque o processo industrial
de produção é uma violência contra o
meio ambiente". Ela conta que, em sua casa, todos seguem essas
restrições alimentares. "Aqui não temos
nenhum plano de saúde. Meu filho de 18 anos, que é
vegetariano desde que nasceu, é saudável e tem um
desempenho escolar acima da média".
Com
relação aos aparelhos eletro-eletrônicos, a
psicóloga procura manter o que acredita ser uma saudável
distância. "Não tenho microondas e uso o celular
o mínimo possível, apenas em caso de emergência,
não como meio de comunicação". Ela acredita
que esses aparelhos geram ondas que podem prejudicar a saúde
e diz ter se informado sobre isso por meio de literatura específica,
programas de televisão e amigos. A ciência tradicional
frequentemente não corrobora a ligação entre
aparelhos eletrônicos e malefícios à saúde,
algo mais corrente na literatura alternativa.
Mas
a resistência à tecnologia não se dá
somente com relação a produtos que foram mais recentemente
introduzidos no cotidiano, como os aparelhos celulares e os computadores.
Ela pode se voltar também contra produtos que estão
enraizados na cultura contemporânea e que já mostraram
claramente suas vantagens e desvantagens, como os automóveis.
Os ambientalistas, desde os mais radicais que pregam a extinção
dos carros até os moderados que apenas evitam o uso excessivo
de automóveis, são um exemplo desse posicionamento.
Para debater e convencer aqueles que se apegam à velocidade
dos automóveis, muitos utilizam, direta ou indiretamente,
os argumentos contidos no texto "A
ideologia social do carro a motor", de 1972, do intelectual
francês André Gorz. Nesse artigo, Gorz afirma que os
carros - além de terem prejudicado cabalmente a arquitetura
das cidades e de terem arruínado outros meios de transporte,
como o trem - são parte inerente do capitalismo. Segundo
ele, o carro é um bem de consumo semelhante a uma mansão
à beira-mar, cujo valor se acaba se estiver disponível
a toda a população. Diz ele sobre a democratização
das mansões à beira-mar que "para dar a todos
sua parte teria-se que cortar as praias em tiras pequenas - ou espremer
tão fortemente as mansões - que seu valor de uso seria
nulo e sua vantagem sobre um complexo hoteleiro desapareceria".
Do mesmo modo, segundo ele, se toda família tivesse um carro
a situação seria caótica pois ninguém
conseguiria usar as estradas.
Na
mesma linha, de associar certas tecnologias ao desenvolvimento do
capitalismo está o artigo Resisting
the neoliberal discourse of technology (Resistindo ao discurso
neoliberal da tecnologia ) do estudioso de mídia e política
John Armitage, professor da Universidade de Northumbria, no Reino
Unido. Partindo da perspectiva teórica trabalhada por filósofos
como Paul Virilio, que afirma que as tecnologias não são
neutras, pelo contrário, nelas estaria latente o totalitarismo.
"Tecnologias como a realidade virtual não caem - como
a chuva - do céu. Elas tem que ser planejadas, tem que ser
produzidas, por humanos reais. As tecnologias de informação
e comunicação, por exemplo, contêm e significam
valores culturais e políticos de determinadas sociedades
humanas. Do mesmo modo, essas tecnologias sempre são expressões
de interesses políticos, geográficos e sócio-econômicos",
diz no artigo.
Segundo
Armitage, aqueles a quem chama de "faraós modernos",
como o ex vice-presidente dos EUA, Al Gore, e o dono da Microsoft,
Bill Gates, constantemente afirmam que estamos em uma era de revolução
tecnológica e que o futuro nos reserva uma democracia eletrônica.
Esses argumentos, na verdade, estariam ligados à nova fase
de desenvolvimento do capitalismo, cuja base estaria dada nas tecnologias
de informação, transformadas agora no único
valor de produção. Quando afirma isso, Armitage está
fazendo referência ao contínuo barateamento da produção
de manufaturas causado, entre outros, pelas transformações
tecnológicas, que reduziram o valor do trabalho humano. Na
atual fase do capitalismo, as informações que um produto
contém ou que são necessárias para a sua produção
ganharam um peso muito maior nos custos de produção.
Segundo
o pesquisador, as novas elites do capitalismo terão, em algum
momento, que se defrontar com um processo de luta de classes e o
discurso neoliberal da tecnologia já seria parte dessa luta
ideológica. Uma interpretação crítica
da tecnologia, que promova um entendimento radical de suas consequências,
seria necessária. "É preciso envolver uma multiplicidade
de indivíduos e grupos. Isso deve abranger desde estudantes
descontentes com a troca da educação pela mera informação
tecnocrática até trabalhadores marginalizados da indústria
de computadores, ou simplesmente comunidades locais que buscam controlar
seus ambientes tecnológicos", diz.
Pensando
as novas e velhas tecnologias de maneira tão crítica
como Armitage ou não, a resistência à tecnologia
está disseminada sob diversas formas na sociedade, gerada
pela luta por sustentabilidade ambiental, anti-capitalista ou simplesmente
por uma melhor qualidade de vida. Escolher quando e quais tecnologias
utilizar são opções individuais mas também
ideológicas.
|